Análise | Com Operação Escudo, Tarcísio transforma vingança em política de Estado

Ao renovar operação denunciada dentro e fora do Brasil por torturas e execuções, governador de SP dobra aposta na truculência e evidencia seu plano de chegar ao Planalto montado numa pilha de corpos pobres, pretos e periféricos

Ilustração: Junião

A jornalista Rose Nogueira amamentava o filho de 33 dias quando foi presa pela ditadura militar, em 1969 (com a conivência da Folha de S.Paulo, onde trabalhava, que noticiou a prisão como sendo de uma terrorista e anotou em sua ficha funcional que Rose havia abandonado o emprego). Rose nunca esqueceria as torturas viveu no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), cujas sequelas a impediram de ter outros filhos. Uma das lembranças que guardou dos dias de horror foi uma declaração que conta ter ouvido da boca do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos principais carrascos da ditadura:

“Para cada agente do Estado que for morto, vamos matar outras dez pessoas, na base de dez para um.”

O lema deixava claro que, para os agentes da ditadura civil-militar de 1964-1985, a vingança não era uma prática emocionada de alguns guardas da esquina, mas uma estratégia racional, planejada e apoiada pelos comandantes das forças de repressão com o objetivo de instilar o terror no coração da população e garantir a obediência total ao governo.

Após o fim do regime militar, as mesmas técnicas de vingança continuaram a ser aplicadas, agora principalmente sobre a população pobre e negra, com quem as polícias brasileiras sempre adotaram a mesma forma truculenta de agir, não importando se os tempos eram de ditadura ou democracia. Nesse período, a maior ação de vingança da polícia ocorreu em maio de 2006, após os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) que mataram 59 pessoas no estado de São Paulo. A lógica do “dez para um” foi seguida muito de perto: a reação do Estado matou 505 pessoas, por meio tanto de execuções cometidas por policiais em serviço, disfarçadas de confrontos e registradas oficialmente como “resistências seguida de morte”, como por meio de ações cometidas por policiais encapuzados e sem identificação, à moda dos grupos de extermínio, registradas como homicídios comuns.

Uma nova versão, menos espalhafatosa, desse mesmo conflito e das ações de vingança policial tomou conta de São Paulo em 2012, quando o PCC decretou um novo “salve geral” entre seus membros, em reação às mortes de seus membros por policiais da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), que resultou na execução de 26 PMs nas ruas ao longo do segundo semestre. Logo após cada uma dessas mortes de policiais, vinha a vingança: homens encapuzados, de carro ou de moto, surgiam em algum bairro pobre próximo ao local onde o PM havia sido morto e saíam atirando em quem estivesse na rua ou nos bares.

A última dessas ações foi a chacina do Jardim Rosana, na zona sul da capital, que deixou sete mortos, entre eles o rapper Laércio Grimas, o DJ Lah, em 4 de janeiro de 2013 — oito policiais militares foram acusados pelo crime, mas apenas um acabou condenado. Uma lógica de vingança que seguiu aproximadamente a mesma aritmética de “dez para um”, resultando na morte de 306 pessoas.

Em 2015, a chacina de Osasco e Barueri, considerada a maior ocorrida nas ruas de São Paulo, também foi uma operação de vingança dez por um. Em resposta à morte de um PM e de um guarda civil municipal, homens encapuzados exterminaram 23 pessoas em bairros periféricos das duas cidades. O Ministério Público acusou três PMs e um guarda pelos crimes.

Note que a vingança dos policiais não é como a de um filme dirigido por Quentin Tarantino ou protagonizado pelo velho Charles Bronson, daqueles em que o protagonista vai atrás de acabar com a raça de cada um dos malditos motherfuckers que lhe fizeram mal. Os alvos dessas ações muitas vezes não têm qualquer relação direta com o crime que inspirou a retaliação. A vingança das polícias busca punir os indivíuos de um território — a periferia — e de uma categoria social —os moradores pobres, em sua maioria negros — a quem se atribui, desde sempre, o estigma de representar a face do crime, da delinquência, da subversão da ordem, da vagabundagem.

Outra diferença em relação aos filmes é que os vingadores das polícias brasileiras têm limites claros de raça e classe social para executarem suas retaliações. Um homem branco e rico nunca será alvo de uma vingança policial. Mesmo que dê tiros de fuzil e jogue granadas na polícia, ainda será tratado com simpatia e sorrisos — e como é louco pensar que isso não é uma hipérbole, mas a descrição precisa do que se passou em outubro com Roberto Jefferson.

Frequentemente a vendeta dos policiais escolhe moradores de regiões periféricas que tenham alguma passagem pela polícia, mas isso está longe de ser uma regra e, no fundo, nem importa tanto assim. O estigma da criminalização sobre os corpos pretos e periféricos é tão intenso que tranforma em bandidos todas as vítimas da polícia, como se a execução dessas mortes já trouxesse embutidos um julgamento e uma sentença de condenação. Morta aos 15 anos na Chacina de Osasco e Barueri, a estudante Letícia Vieira Hillebrand da Silva não teve a memória poupada pelo advogado João Carlos Campanini, defensor de um dos PMs acusado dos homicídios, que perguntou ao pai da vítima, durante o julgamento: “O senhor sabe se a sua filha se relacionava com alguém ligado ao crime?”. Se morava na periferia e foi morto pela polícia — mesmo que seja uma polícia encapuzada, atuando ilegalmente como grupo de extermínio —, alguma coisa de errado a pessoa devia estar fazendo.

A lógica do estigma é tão forte que engloba até os nunca nascidos. Entre as vítimas dos Crimes de Maio de 2006, estava Ana Paula Gonzaga dos Santos, grávida de nove meses, com uma cesárea marcada para o dia seguinte, que foi baleada na barriga, após arrancar o capuz de um dos matadores, que atirou no seu marido, e reconhecer um dos policiais que atuavam no bairro. “Filho de bandido, bandido é”, teria dito o policial, segundo testemunhas, antes de atirar na barriga de Ana Paula, atingindo o feto de 48 centímetros na mão e no joelho esquerdos. A mãe de Ana Paula, Vera Lúcia dos Santos, falecida em 2018, contava que o PM autor do crime — nunca identificado pelas autoridades, mas conhecido pela vizinhança — vivia se gabando desse assassinato junto aos moradores do bairro, para mostrar o quão perigoso ele era.

Ilegais. Cruéis. Injustas. Aleatórias. Sim, as vinganças policiais são tudo isso. Mas essas características, em vez de enfraquecer o poder simbólico dessas ações, são o que dão força à mensagem que buscam passar.

É que, ao demonstrar que qualquer pessoa dos territórios periféricos pode ser atingida pela violência policial, a aleatoriedade e a crueldade da vingança policial mostra o quanto os cidadãos são indefesos e como o Estado é poderoso e deve ser obedecido. Me fazem pensar em um relato que a repórter Dani Ferreira trouxe sobre a ocupação israelense em Hebron, na Cisjordânia, onde famílias palestinas frequentemente são alvo de um tipo de operação chamada “mapeamento”, em que os militares invadem suas casas de madrugada e ameaçavam os ocupantes sem qualquer motivo claro. Segundo o ex-militar israelense Ido Even-Paz, ouvido pela reportagem, o objetivo central dessas operações nunca foi o de combater possíveis focos de rebelião armada. O motivo era outro, e que explicava a aleatoriedade das ações: “Você rompe o entendimento na cabeça deles de que estão em controle das suas vidas”.

Como as vinganças privadas praticadas por autoridades são uma afronta óbvia demais aos princípios do Estado de Direito que as democracias liberais se orgulham de oferecer, a maioria dos governantes prefere fazer vista grossa para a prática em vez de assumi-las publicamente. Ao longo dos Crimes de Maio de 2006, o governador Claudio Lembo, que havia assumido o cargo enquanto Geraldo Alckmin concorria às eleições, evitou defender as execuções, admitiu que os policiais estavam matando inocentes e ainda deixou escapar seu desconforto com a matança, ao supreendemente culpar a “elite branca” pela violência.

Geraldo Alckmin também evitava admitir publicamente as ações de vingança e adotava o seu tradicional tom professoral e técnico, propagandeando que os policiais agiam dentro da lei e que eventuais desvios seriam apurados com rigor. Mesmo quando soltou a famosa frase “Quem não reagiu está vivo” ao se referir a uma chacina de nove pessoas cometida pela Rota em Várzea Paulista, em 2012, Alckmin ainda procurava dar uma impressão de respeito à legalidade, ressaltando que a polícia só havia atirado em legítima defesa — ainda que estivesse obviamente mentindo, já que a própria versão dos policiais era de que haviam interrompido um “tribunal do crime” do PCC durante a ação, sem conseguir explicar porque mataram inclusive o réu do tal julgamento informal.

A vingança oficial da Operação Escudo

A defesa pública da vingança policial e dos abusos provocados por ela é uma triste novidade do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), algo que São Paulo ainda não tinha visto. Desde o início da Operação Escudo, em 28 de julho deste ano, tanto o governador como o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, o primeiro policial militar a assumir essa cadeira, deixaram claro que havia sido deflagrada como resposta ao assassinato do policial Patrick Reis, da Rota. Os policiais foram enviados para as ruas com sangue nos olhos: espalharam nas redes sociais imagens de corpos e caveiras, revelando a vontade de espalhar o “espírito da morte” na Baixada Santista, e disseram aos moradores que pretendiam chegar a um placar de 60 mortes. Mesmo depois que essas declarações e postagens vieram a público, o governo não repreendeu nem responsabilizou qualquer dos policiais envolvidos, o que, para bons entendedores, valia como uma aprovação tácita.

Dessa vez, os policiais não estavam executando sua vingança vestindo toucas ninja e usando carros descaracterizados fora do horário de trabalho. Nada disso. Na Operação Escudo, os policiais agiram com toda a força do respaldo oficial, violando direitos humanos à luz do dia, de farda e viatura. Segundo testemunhas, a Operação Escudo torturou moradores dentro da própria comunidade para que todos ouvissem os gritos, tirou um bebê dos braços de um pai de família para matá-lo diante de todo mundo, derrubou casas, intimidou uma vítima dentro de um quarto de hospital, ameaçou matar crianças e obrigou que elas se jogassem no esgoto.

Os abusos da Operação Escudo tiveram repercussão dentro e fora do Brasil, chegando ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Outros governos teriam recuado diante de uma repercussão dessas. Mas nada disso intimidou Tarcísio, que chegou a admitir que a morte de inocentes durante a operação seria algo aceitável, ao dizer que “não existe combate ao crime sem efeito colateral”, trazendo para o litoral de São Paulo a linguagem militar que devia usar nos tempos em que atirava em negros do Haiti — e usando mal, porque a expressão consagrada, no caso, é “dano colateral”.

Tarcísio encerrou a Operação Escudo em 5 de setembro, após 28 mortes, mas logo em seguida dobrou a aposta. Dias depois o governo anunciou uma segunda edição da mesmíssima operação e deixou claro que a motivação, mais uma vez, era a morte de um PM, no caso, o sargento aposentado Gerson Antunes Lima. Sem deixar por menos, a nova fase estreou com a morte de Yasmin Isabel Alves do Carmo, 22 anos e mãe de três filhos.

Na nota em que abordou a retomada, a Secretaria da Segurança Pública deixou claro que a Escudo é uma operação de caráter permanente, “realizada desde janeiro em ocorrências em que policiais são hostilizados”. Pela primeira vez, a vingança policial se torna uma política de Estado.

Mortes e votos

Quando se olha para os números e para as práticas, o fato é que todo governo no Brasil é cúmplice do extermínio da população pobre, preta e periférica pela Polícia Militar. O que varia é a intensidade com que os governadores permitem que as matanças ocorram, segundo um ritmo mais ou menos intenso, que costuma variar conforme os ventos da opinião pública. É como se os governadores resolvessem afrouxar ou apertar a coleira dos seus policiais, conforme a violência estatal estiver em alta ou em baixa perante a população. É que, por mais que muita gente se mostre adepta do discurso de “bandido bom é bandido morto”, políticas de segurança pública linha-dura não se mostram politicamente sustentáveis indefinidamente, porque provocam os tais “danos colaterais” que não costumam ficar bonitas na TV e, em algum momento, podem fazer uma parte significativa dos eleitores mudar de ideia e pedir menos truculência.

O governo Mário Covas, por exemplo, foi um dos que mais se empenhou em criar obstáculos à violência policial, e nisso pesou a influência do caso Favela Naval, que expôs as imagens de uma execução por policiais militares em pleno Jornal Nacional, em 1997. Sucessor de Covas, Alckmin fez questão de soltar as amarras criadas antes dele e possibilitou um aumento inédito da truculência policial em São Paulo, mas mesmo ele soube recuar em momentos decisivos: trocou de secretário da Segurança Pública e adotou alguns medidas de restrição à letalidade estatal após as operações vingança de 2012 e desistiu de um plano de fechamento de escolas após a repercussão negativa dos tiros, porradas e bombas com que os estudantes contrários à medida foram tratados, em 2015.

Com João Doria não foi diferente. Eleito com a promessa de  “atirar para matar” e mandar “bandidos para o cemitério”, fez a letalidade policial chegar ao pior momento da história de São Paulo, em abril de 2020, quando a polícia paulista matou 119 pessoas. Mas aí veio o massacre de Paraisópolis, quando a ação da polícia provocou a morte de nove jovens, e de repente os policiais assassinos já não faziam tanto sucesso. Doria, entãoo, trocou o comando da PM e deu sinal verde para implantar câmeras corporais nas fardas. Seu sucessor, Rodrigo Garcia, foi pelo mesmo caminho e, no ano passado, as mortes pela polícia em São Paulo chegaram ao menor número desde 1995.

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Hoje, porém, não dá para garantir que o governo Tarcísio vai seguir essa mesma lógica de avanços e recuos em relação à violência policial. A polarização dos últimos anos gerou uma linha de políticos que não buscam mais alcançar o apoio da maioria da população, mas somente de uma fatia do eleitorado, aquela capaz de garantir sua vitória em segundos turnos cada vez mais disputados. Pode ser que a gente esteja diante de uma nova realidade, em que uma linha de endurecimento permanente da violência policial não se mostre mais politicamente insustentável a longo prazo. Nesse caso, o governo simplesmente não se importaria em desagradar setores importantes da opinião pública com os “efeitos colaterais” de sua política de segurança pública, desde que os apoiadores dos banhos de sangue se mostrassem numerosos o suficiente para garantir seu sucesso eleitoral. E permitissem a Tarcísio de Freitas seguir sonhando em chegar ao Planalto montado numa pilha de corpos pobres, pretos e periféricos.

*Fausto Salvadori é o direitor de redação da Ponte

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