Para Justiça Militar, PMs que taparam câmeras não cometeram crime

Oito policiais foram absolvidos por acusações que envolviam fraude processual, falsidade ideológica e omissão de socorro em ação que matou Kaique Passos e deixou um ferido no Guarujá, no litoral paulista, em 2022

Por unanimidade, os cinco juízes que compõem o Conselho Especial do Tribunal de Justiça Militar (TJM) absolveram oito policiais militares por acusações que envolviam fraude processual, falsidade ideológica e omissão de socorro em ação que matou Kaique de Souza Passos, de 24 anos, e deixou um jovem sobrevivente ferido em junho de 2022, no Guarujá, no litoral paulista. Na época, a Ponte revelou que os PMs taparam as câmeras nas fardas que utilizavam, não fizeram acionamento do áudio e se posicionaram de forma que o equipamento não registrasse imagens de parte da abordagem.

O julgamento foi dividido em dois momentos por conta do número de réus e aconteceu entre dezembro de 2023, em que cinco policiais foram julgados, e janeiro de 2024, sobre os três restantes. Apesar disso, três cabos que participaram da ação ainda são acusados de homicídio e tentativa de homicídio e vão a júri popular.

O crime de fraude processual foi atribuído aos oito PMs por uso indevido das câmeras nas fardas, com falta de acionamento de áudio, equipamento tapado com as mãos e posicionamento para evitar registro, como virar de costas: tenente Roberson Fabiano Alves Pereira, sargento Gilmar Oliveira do Carmo, cabo Paulo Ricardo da Silva, cabo Israel Morais Pereira de Souza, cabo Diego Nascimento de Sousa, soldado Eduardo Pereira Maciel, soldado William Lopes Bulgarelli e soldado Diego Souza Luna.

No voto, o relator e presidente do conselho, juiz Ronaldo João Roth, argumentou que a forma como os policiais usaram as câmeras não se enquadraria na previsão do artigo 347 do Código Penal, que trata do crime de fraude processual: “Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito”.

Para o magistrado, tentar “inovar” ou “alterar” o cenário seria algo proposital para modificar ou inserir “algo novo” na cena e enganar as autoridades, como limpar manchas de sangue, colocar uma arma na mão de uma pessoa que não estava armada ou até uma cirurgia plástica ou bigode para mudar a fisionomia de uma pessoa suspeita de cometer crime. “No caso do uso das COPs [câmeras operacionais portáteis], pelos acusados, a falta de registro ou gravação, na dinâmica empreendida na complexa ocorrência, nos três cenários descritos na denúncia, não se constituiu em modificar ou alterar o lugar, coisa ou pessoa”, argumentou.

Ele afirmou que a conduta poderia ser enquadrada em uma infração administrativa disciplinar, como a de número 60 do artigo 13 do Regimento Disciplinar da PM sobre o agente “trabalhar mal, intencionalmente ou por desídia, em qualquer serviço, instrução ou missão”, que é considerada de gravidade média, mas não um crime. Com isso, o colegiado acatou o pedido das defesas dos PMs sobre não considerar que houve fraude.

O cabo Diego Nascimento de Sousa, que foi acusado por omissão de socorro, também foi absolvido. Na ocasião, ele foi gravado pela câmera do soldado Eduardo Maciel dizendo “relaxe” a uma policial feminina que questionou a necessidade de resgate do rapaz ferido que sobreviveu. O cabo ainda teria questionado ao jovem se “não ia morrer logo” depois que teria atirado na perna dele já rendido.

Para o TJM não houve omissão de socorro porque Diego disse que acionou o socorro ao falar “relaxa” à colega e que falou “no calor da emoção” quando perguntou se o jovem não ia morrer antes do Samu aparecer. “Assim, se houve o socorro, como afirmou a própria vítima e a testemunha Cb [cabo] PM Amaro, não há de se falar no delito de omissão de socorro, tendo a conduta do réu sido atípica [que não aconteceu um fato para configurar um crime]”, escreveu Roth.

O cabo Diego Nascimento, o tenente Roberson Fabiano Alves Pereira e o sargento Gilmar Oliveira do Carmo também foram denunciados por falsidade ideológica porque não relataram a realização de disparos em parte das abordagens.

Para os magistrados, não houve crime porque Diego assumiu que disparou contra o jovem sobrevivente no boletim de ocorrência feito pela Polícia Civil e relatou ao tenente Roberson, mas não colocou essa informação no relatório de serviço porque o espaço do formulário “era insuficiente para esse esclarecimento”. “Não foi reconhecido o dolo [intenção] específico na conduta do acusado naquele comportamento, o que poderia configurar apenas uma infração disciplinar”, escreveu o presidente do conselho.

Com relação ao tenente e ao sargento, cujas câmeras que estavam sem acionamento de áudio e parecem mostrar movimentação de disparos para o lado de fora da janela da viatura, o magistrado entendeu que não houve falsidade ideológica porque os dois disseram que não dispararam. O promotor Rafael Magalhães Abrantes Pinheiro, da Promotoria Militar, tinha solicitado a absolvição dos dois porque “não houve perícia nas armas e nem contagem de disparos”, o que causava dúvidas sobre a conduta deles.

O promotor só tinha pedido a condenação dos cabos Diego Nascimento e Israel Morais e do soldado Eduardo Maciel por fraude processual e pediu a absolvição dos demais réus e pelos outros crimes. “Claro que o Estado pode determinar operações que não utilizem COPS, até teve julgado sobre isso no TJ/SP [Tribunal de Justiça de São Paulo], mas, uma vez usando as COPS, elas são instrumentos de trabalho, estão lá para garantir a captura das imagens, e, quando o policial coloca a mão e tampa a imagem, caracteriza fraude processual”, argumentou. “Isso é inovar alguma coisa, é um instrumento fundamental de captura das imagens, é um instrumento de produção de provas que fica obstruído pela ação do agente. Então, essa prova é lícita e é prova fundamental deste caso.”

Ele também sustentou que, quando o cabo Diego disse “não olhe” ao soldado Eduardo Maciel, a intenção foi de evitar a filmagem. “No caso, ele foge da cena do crime, ou seja, tira sua COP da gravação. A narrativa de que ele estava apoiando, que foi correr para ir em direção ao outro evento delitivo, até faz sentido no júri, mas os juízes militares sabem que esse procedimento é estranho, tanto que chamou atenção da Corregedoria. Está clara a responsabilidade dos dois réus, eles obstruíram as gravações. Não há nenhuma dúvida razoável de que esses dois policiais cometeram esse crime.”

À Ponte, a assessoria do Ministério Público de São Paulo (MPSP) disse que o promotor entrou com recurso contra a sentença em janeiro, o que ainda não foi julgado.

Além do processo na esfera militar, os cabos Paulo Ricardo da Silva, Israel Morais Pereira de Souza e Diego Nascimento Sousa ainda respondem a investigação no Tribunal de Justiça de São Paulo e serão levados a júri popular. No ano passado, o juiz André Rossi determinou que Paulo e Israel sejam julgados por homicídio qualificado pela morte de Kaique Passos com os agravantes de motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima, que podem aumentar a pena do crime, e Diego por tentativa de homicídio qualificado contra o jovem sobrevivente com os mesmos agravantes.

Para o magistrado, as imagens que foram capturadas pelos equipamentos, mesmo sem o acionamento de som por Paulo e Israel, contradizem as versões deles de que Kaique estivesse reagindo à abordagem, e a de Diego, já que o aparelho de do soldado Eduardo Pereira Maciel capta o som de um tiro mesmo quando o outro jovem já havia sido detido pela dupla.

Já o soldado Eduardo Maciel foi impronunciado, ou seja, o juiz entendeu que ele não deve ser julgado por júri popular porque não ficou evidente a colaboração dele com o cabo Diego, que havia ordenado que ele fosse procurar suspeitos do assalto.

Os três cabos ficaram presos por um ano até o juiz Edmilson Rosa dos Santos conceder a liberdade em dezembro de 2023 para exercerem funções administrativas na corporação.

Relembre o caso

Em 15 de junho de 2022, Kaique de Souza Passos foi morto por policiais militares com sete tiros no Guarujá, litoral paulista, após ter participado de um roubo em Bertioga, que é uma cidade vizinha. Um outro rapaz foi baleado durante a fuga, mas sobreviveu. Na época, na esfera da Justiça Comum, a promotoria não solicitou nem viu as gravações e tinha pedido o arquivamento do caso. O MPSP só denunciou os PMs envolvidos pelo homicídio seis meses depois por causa da apuração da Corregedoria da PM com base nas filmagens das câmeras corporais. A Ponte revelou o caso na mesma semana.

Parentes da vítima só descobriram como a ação aconteceu após a reportagem da Ponte. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafou Cassiane dos Santos Reis, 22, que planejava se casar com Kaique no final daquele ano. “No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirmou.

Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três PMs que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços, o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estaria se rendendo.

Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão (também não dá para ouvir nada pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MPSP) e Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, e ele obedece.

Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrada uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.

Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.

O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.

Durante as audiências, o rapaz que sobreviveu aos disparos efetuados por Diego, que vamos chamar de Pedro, disse que participou do roubo com Kaique e outro jovem, que vamos nomear de Henrique, a uma residência de uma família em Bertioga, cidade vizinha a Guarujá, mas não estavam portando armas de fogo e sim uma arma de brinquedo. O trio fugiu com o carro das vítimas e ele afirmou que os policiais atiraram com fuzil contra o veículo durante a perseguição na rodovia. Ao passarem por um bloqueio policial, decidiram abandonar o carro e cada um correu para um lado depois de pularem um muro, sendo que Kaique acabou levando a mochila com o simulacro de arma.

Pedro disse que os policiais continuaram atirando e que ele “não tinha nenhum objeto em mãos e não fez menção de estar armado”. Ele relatou que foi atingido por três tiros, sendo um o atingiu no tórax pelas costas e o segundo na perna, o que o impediu de continuar correndo. O terceiro, segundo ele, foi dado quando já estava caído por Diego à queima-roupa, “que atingiu seu pulmão”, quando se aproximou dele junto com o soldado Eduardo Maciel. No depoimento, consta que Pedro “contou que, após o disparo, Diego se aproximou do declarante [Pedro] e pediu para que levantasse a camisa. Em seguida, o declarante pediu socorro e Diego disse que o declarante estava demorando para morrer” e o outro nada disse. Essa frase foi captada pela câmera da farda.

Diego Nascimento negou que tenha disparado quando o jovem já estava rendido. Ele afirma que revidou tiros com um dos suspeitos que estava correndo na perseguição, mas nenhuma arma foi encontrada pelo soldado Maciel quando foi fazer a revista. Segundo ele, quando declarou “não olha” teria sido direcionado a Pedro quando mandou que ele deitasse no chão de bruços “com a finalidade de diminuir a capacidade de reação e de fuga do preso, porque até então não sabia da gravidade dos ferimentos” e não para que o colega de farda se virasse para deixar de registrar a ação. Ele disse que acionou o socorro e não zombou da vítima ao dizer que estava “demorando para morrer”, mas declarou que “se o fez, foi movido pelo stress da ocorrência”.

Paulo Ricardo disse que, ao perseguir Kaique, que havia invadido uma residência durante a fuga, “estava à frente, chutou a porta da residência e visualizou Kaique, que levantou as mãos. Nesse momento, pediu para os demais policiais pegarem o escudo e fala algumas vezes para Kaique: ‘Vem, vem, vem’, só que Kaique, ao invés de ir em sua direção, foi em direção à porta da residência, forçando para abri-la. Nesse momento, como tinha muita gritaria no interior da residência, inclusive de criança, foi em direção a Kaique e, ao chegar próximo da metade do corredor Kaique sacou uma arma e, então, o interrogando [Paulo] efetuou disparos. Disse que Kaique apontou a arma em sua direção e, por isso, se jogou para o lado esquerdo, onde tinha algumas bicicletas, tentando se proteger de um iminente disparo de arma de fogo. Nesse momento, o cabo Israel Moraes, que estava na sua retaguarda, efetua alguns disparos e pergunta se o interrogando estava bem, efetuando, após alguns segundos, outros disparos”.

Ele negou ter tapado a câmera, disse que segurou o equipamento “para que, com o impacto do chute, ela não caísse”, pois, segundo o cabo, “os integrantes da Força Tática precisam fixar as COPs [câmeras operacionais portáteis] com fios e barbantes, sendo que em ocorrências anteriores sua COP já caiu”. Isso, contudo, não se sustenta pois os policiais devem verificar os equipamentos antes de sair para a patrulha para que, caso algum problema seja observado, a câmera tem que ser trocada. Ele disse que viu Kaique e a arma ao lado.

O cabo Israel declarou que não tinha total campo de visão do local por ser estreito e que se posicionou ao lado de Paulo. “Em segundos, viu Paulo Ricardo um pouco mais à frente e escutou disparos de arma de fogo. Em seguida, viu Paulo Ricardo indo ao solo. Nesse momento, conseguiu ver o indivíduo com arma de fogo em punho e com ela apontada em sua direção, tendo, então, efetuado dois disparos. Olhou para Paulo Ricardo para ver se ele estava baleado e depois, ao direcionar o olhar para o criminoso, percebeu que ele ainda estava com a arma de fogo em punho, verbalizando por diversas vezes para que ele largasse a arma”, disse.

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Ele negou que tenha tapado a câmera que usava “mas em dado momento teve que se abaixar para ingressar no corredor, porque ele era muito estreito e para diminuir sua própria silhueta”.

Na ocasião, além de outros policiais que participaram da ação e as vítimas do roubo, foi ouvido o capitão Fábio Ferreira Cheles, que foi encarregado pela apuração na esfera militar. Ele disse em audiência que, além de ouvir o sobrevivente e mais 10 policiais, “pelo que analisou das imagens, não tem nenhuma dúvida a respeito do seu relatório; de que houve uma execução e uma tentativa de execução contra os ofendidos. Confirmou que não houve comprovação de que as vítimas estivessem em posição de ataque ou oferecendo agressão aos policiais ou, ainda, que estivessem armadas”.

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