Advogada e mestre em antropologia, Ana Luiza Bandeira analisa em livro como o sistema de Justiça silencia os suspeitos e pouco combate a violência policial nas audiências de custódia
O silenciamento do suspeito durante as audiências de custódia virou tema de livro da advogada e mestre em antropologia Ana Luiza Bandeira. Lançada nesta semana, a obra “Audiências de custódia: percepções morais sobre violência policial e quem é vítima” (Letramento, 2020) detalha como a versão da pessoa presa conta pouco na análise dos juízes, com manutenção das prisões e pouca resposta do Judiciário e Corregedoria em relação à violência policial.
Integrante do Innocence Project Brasil, Ana Luiza Bandeira presenciou a apresentação de 692 pessoas aos juízes entre fevereiro e dezembro de 2015, ano em que as audiências estrearam no Brasil. Ao se deparar com o processo, identificou o que definiu como “mecanismos de silenciamento” dessa pessoa. Uma lógica inversa ao tratamento dado à fala do policial, vista como verdade absoluta e prova incontestável do suposto crime cometido.
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“Existem diversos mecanismos nas audiências que ficam presentes e visíveis, de silenciamento, distanciamento e legitimidade”, sustenta, ao elencar quatro bases: a escuta seletiva, o procedimento silenciar a pessoa, um sistema de pergunta e desconfiança, e o perfil de quem é considerado vítima pela Justiça.
Ponte – Como funciona a audiência de custódia?
Ana Luiza Bandeira – Funciona como uma audiência de apresentação da pessoa presa em flagrante. Ela é presa, levada em até 24 horas ao juiz para definir se vai permanecer presa durante o processo ou esperar em liberdade até a audiência. Normalmente é levada da delegacia para a seccional de policia que concentra os presos e, depois, levado para o Fórum da Barra Funda, no caso aqui de São Paulo. Normalmente, a audiência acontece no dia seguinte, alguns casos é no mesmo dia, dependendo do fluxo.
Ponte – Qual a sua função?
Ana Luiza Bandeira – O objetivo é verificar se são cumpridos os requisitos para a prisão provisória ou para a liberdade. Se estão presentes para a pessoa ser liberada ou deve permanecer presa até aguardar o audiência e julgamento. O juiz fica responsável por apurar maus tratos policiais, fazer perguntas sobre a abordagem e sobre o tratamento em delegacia. Tem esses dois objetivos: ver os requisitos da liberdade, com decisão de relaxar o flagrante caso não tenham os elementos para a prisão, que é considerada ilegal; e também verificar maus tratos policiais quando as marcas ainda podem estar na pessoa custodiada.
Ponte – Nesses cinco anos de implementação, esses dois objetivos foram cumpridos?
Ana Luiza Bandeira – A ideia por trás das audiências era humanizar o processo penal. Falo disso no livro porque o termo denota duas coisas: um é o processo penal, até então, não humanizado; dois é que o instrumento trouxesse a pessoa na presença do juiz como uma forma de gerar empatia tão grande ao ponto de mudar a necessidade da prisão provisória. A audiência funcionaria como uma forma de alterar quase que a mentalidade completa de um sistema inteiro. Não é possível se ter um oásis em toda a Justiça, [ela] não será responsável. Acabou sendo frustrada, em certa medida.
Ponte – Houve mudança na prática, ainda que exista certa frustração?
Ana Luiza Bandeira – Diminuíram as taxas comparado a antes delas, mas não como se esperava. Não quer dizer que não seja relevante, é um avanço grande. Em termos numéricos, demonstrou existir várias outras resistências que não podiam ser previstas antes das audiências de custódia. Desconsiderava antes coisas que só aparecem na audiência, na presença da pessoa, como raça, que a informação no B.O. (Boletim de Ocorrência) pode estar vazia. E, na audiência, o juiz vê o custodiado. A repercussão de manter determinadas prisões em relações a outras, criou-se um questionamento. A audiência cumpriu o papel de efetivação de direitos, tem peso de lei. Agora é discutir melhor a implementação.
Ponte – Qual é a análise de uma possível violência policial ao se prender um suspeito?
Ana Luiza Bandeira – Existem várias questões da moralidade dentro da violência, como o quanto se considera uma pessoa que pode ser uma vítima e uma que não pode. Pelo sistema, pela formação, se coloca uma única categoria de vítima: a da pessoa do crime patrimonial. O custodiado não pode ser [a vítima], não cumpre um papel e não tem os requisitos, tanto jurídicos quanto morais.
Ponte – Por que uma pessoa roubada é considerada mais vítima do que uma pessoa agredida por um agente público?
Ana Luiza Bandeira – Nosso sistema, de forma geral, privilegia o crime contra o patrimônio como se movesse a Justiça. Na estatística das pessoas presas, a maioria da população carcerária está lá por crimes patrimoniais e, em seguida, por tráfico, considerado uma ação contra a saúde pública. Os crimes contra as pessoas ou à vida é a minoria da justiça criminal, o que deixa claro que a criminalidade é associada à desigualdade, de acesso a renda. Se crimes são patrimoniais, significa uma demanda de acesso a um patrimônio que não é feito de forma igualitária. A taxa de criminalidade reflete a de desigualdade, não a de violência. Não conseguimos ver correlação tão necessária de queda na violência com mais prisões. Existe uma configuração de que a vítima que perdeu o patrimônio é uma vítima que procura a polícia e gera a prisão em flagrante, mas a pessoa presa não pode ocupar esse lugar. A violação que ela sofreu é um crime que deve ser investigado e recai sobre ela a necessidade de provar ser ela uma vítima, ao contrário da palavra de quem é vitimizado por um crime patrimonial. A relação de desconfiança com o relato recai mais em relação à pessoa agredida que a denuncia em uma audiência do que quem foi vítima crime patrimonial.
Ponte – Como ocorre o silenciamento da versão apresentada por este suspeito levado à audiência?
Ana Luiza Bandeira – Existem diversos mecanismos nas audiências que ficam presentes e visíveis, de silenciamento, distanciamento e legitimidade. Os discursos que os atores têm prontos na cabeça, a comparação com o que está escrito.
Ponte – Destaca algum caso específico?
Ana Luiza Bandeira – Trago no livro a existência de quatro conceitos: a escuta seletiva, selecionando o que vai escutar e a confirmação do trabalho da policia; os mecanismos de silenciamento, antropologia da moral que o silêncio não é vazio, é provocado e a pessoa é levada a ficar em silêncio, sendo interrompida ou com o juiz falando mais alto; forma de pergunta e desconfiança, que a pessoa relata algum ato de violência e é imediatamente questionada “qual motivo [para alguém] te ameaçar?”, sendo devolvida a desconfiança; e a questão de quem é vítima, quem pode ser e, para o sistema, não é a mesma pessoa que cometeu um crime, que não pode ser suspeito e vítima ao mesmo tempo. Fica difícil traçar uma resposta.
Ponte – Por que acontece?
Ana Luiza Bandeira – Uma conjunção de fatores: diferença de classes, de conjunção jurídica, de não entender a pessoa como sujeito de direitos… É tanto uma formação de classe, de raça quanto dentro da carreira e das escolas de magistratura e do Ministério Público. Não estão preparadas para fazer uma escuta de modo integrado.
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Ponte – Dos cinco casos, qual te marcou mais?
Ana Luiza Bandeira – O último que narro no livro, o caso da Carla: uma moça submetida a horas de tortura. Os policiais fizeram roleta russa com ela dentro da casa da mulher, um relato muito difícil de ouvir. Um dos mais graves que pude ouvir nesse período. Se estendeu da [tortura] física para a psicológica, ameaçando sua companheira de morte na frente dela. Uma violência muito complexa e que trouxe indignação. Foram muitos minutos e não mobilizou os agentes para se preocuparem com o que aconteceu com ela. Não chamou muita atenção. Foi de uma frieza ímpar. Eu traria esse último caso como dos mais importantes.
Ponte – O que aconteceu com os policiais?
Ana Luiza Bandeira – Os PMs não responderam, o procedimento foi arquivado. A Justiça levou para o Dipo 5, mas não ficou constatado no IML (Instituto Médico Legal) nenhuma lesão significante, traumas leves, não graves. O procedimento foi arquivado.
Ponte – O que sustenta uma força tão grande às falas dos policiais à Justiça?
Ana Luiza Bandeira – O sistema de justiça está montado para confiar no profissional da ponta. O Brasil tem um sistema que o policial detém a maior parte da investigação. A maioria das provas são mantidas pelos juízes, não são questionadas. A defesa tem pouca oportunidade de questionar a polícia ao longo do processo. Muitas vezes a pessoa é ouvida sem a presença de sua defesa e o advogado só tem acesso depois da denúncia ou durante a investigação. A oportunidade para a defesa surge muito tempo depois, com as provas já feitas. Não há questionamento sobre como funciona a cadeia de custódia, as testemunhas que podem confirmar os flagrantes. Tudo é um pouco perdido no sistema não há esforço a trazer testemunhas. A maior parte dos crimes de tráfico não têm testemunhas, só a palavra do policial. Tem uma certa sacralidade essa versão, tem mais peso do que as outras testemunhas. O sistema dá muita voz porque não está preparado para fazer a instrução criminal de qualidade.
Ponte – Punir o policial é a solução para que a violência do estado, através do seu braço armado, diminua?
Ana Luiza Bandeira – Caímos muito na dualidade de não querer provocar um ultrapunitivismo. Estamos tentando diminuir o sistema penal, a malha penal. Difícil pensar na violência sem cair na necessidade de punição dos policiais. É uma oportunidade de pensar na violência estrutural, mais que individual, nos mecanismos estruturais. O judiciário, as Corregedorias devolvem os relatos de violências às delegacias, e o caso é arquivado. Se olharmos para números estatísticos, temos a capacidade de falar da violência como algo reafirmado. Mais do que a responsabilização individual, é pensar em mecanismos de escuta que a audiência nos dá a oportunidade que o sistema não daria antes. Toda vez que tem um relato, como ir atrás? Como investigar? As marcas estão visíveis, o relato está fresco, a memoria não foi prejudicada. É possível lembrar o nome, reconhecer. Então a oportunidade está nessa prova que pode levar a um pensamento institucional sobre o que significa a violência policial como prática rotineira.
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Ponte – O Brasil é signatário desde 1992 de tratado que fala sobra as audiências de custódia. Por que implementou somente em 2015?
Ana Luiza Bandeira – Havia alguns PLs (Projetos de Lei) correndo, inclusive do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que propunham a implementação das audiências de custódia. O então presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, assumiu as audiências no Brasil como uma pauta pessoal. Isso lá em 2014, 2015. Como não podia interferir em PL, poderia ter acordos técnicos junto aos tribunais com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para a criação das audiências. Foi o que fez.
Ponte – Tem uma explicação para tanta espera até virar uma realidade?
Ana Luiza Bandeira – Existia um mito de que as audiências nunca dariam certo no país, em especial no estado de SP. Como fazer a apresentação de uma pessoa em tempo hábil? Muito importante é que o artigo 8 do tratado não fala o prazo de apresentação, fala que a pessoa tem que ser apresentada em tempo rápido, hábil, para verificação de possíveis violências. Não determina prazo, é para ser aplicada na América Latina inteira e vai caso a caso. Quando o ministro falou que queria isso, houve a fala de ser impossível e resolveu começar por São Paulo. Era a ideia de “Se está dando certo aqui, vai dar em qualquer lugar”.
Ponte – De que forma conseguiu esse exemplo de que poderia ir adiante?
Ana Luiza Bandeira – Primeiro se teve o acordo com o Tribunal de Justiça de SP. Era uma definição muito sucinta, com pouquíssimos artigos. Fala pouco das audiências, mas tem assinatura de todos os órgãos falando de implementação gradual. Seccionais de policiais fizeram aos poucos, foram trazendo até termos a implementação completa. Pensaram em um processo de longo prazo, antecipando que seria difícil coordenar todas as delegacias a apresentar os suspeitos em 24h. E funcionou. Foi o argumento para levar aos outros tribunais estaduais.
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