Investigação da Polícia Militar concluiu que policiais agiram em “defesa própria e de terceiros” ao executar adolescente de 13 anos dentro de casa
Há pouco mais de três meses, Mizael Fernandes da Silva, 13 anos, teve sua vida interrompida, dentro de casa, enquanto dormia, no município de Chorozinho, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Executado na madrugada do dia 1º de julho, durante uma ação da Cotar (Comando Tático Rural), que pertence a Polícia Militar do Ceará, o adolescente teria sido morto em legítima defesa do sargento Enemias Barros da Silva e do soldado Luiz Antônio de Oliveira Jucá, concluiu a investigação da Polícia Militar.
De acordo com o Diário do Nordeste, a investigação do IPM (Inquérito Policial Militar) foi concluída no dia 24 de agosto deste ano, mas estava sob sigilo de Justiça até o último dia 29 de setembro. Para o tenente-coronel Paulo André Pinho Saraiva, responsável pelo IPM, os policiais efetuaram os disparos porque Mizael teria se negado a soltar uma arma que estava com ele.
Em julho, em entrevista à Ponte, Lizangela Rodrigues Fernandes da Silva Nascimento, tia de Mizael, havia detalhado como foi a execução do sobrinho. Ela narrou que dois policiais haviam entrado em sua casa, um mais alto e outro de média estatura.
“Quando eu pisei na sala, eu só vi o clarão no quarto e o tiro. Aí eu falei ‘moço, você matou a criança que tava dormindo aí no quarto?’. O policial maior, que atirou, não respondeu e veio correndo, falando ‘fiz merda, fiz merda’. E me empurrou para fora. Mandaram a gente ficar mais afastado, mais ou menos 200 metros da minha casa”, descreveu.
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Na época, Lizangela contou que os policiais saíram da casa, mas voltaram pouco depois. “O policial que matou Mizael entrou de novo, limpou alguma coisa, tirou a colcha lilás da cama. Ele também levou o travesseiro e o telefone do Mizael. Até então a gente não sabia que o Mizael estava morto. Eu pensei que alguém tinha entrado no quarto e tinha matado esse bandido. Eles entraram e ficaram mais de 1 hora lá”, continuou.
“Embolaram o corpo do Mizael, igual um porco, e colocaram dentro da viatura. Voltaram e pegaram um pano que tinha dentro do carro para limpar o sangue. Não ficou nem um tiro de sangue no chão. Levaram o edredom da cama”, detalhou.
Depois de um tempo, os dois PMs chamaram Lizangela novamente. “O [policial] de média estatura perguntou se eu sabia da arma, que se encontrava com a pessoa, porque ele nem sabia o nome. Aí eu falei que na minha casa não tinha arma”, relata, destacando que o sobrinho não estava armado. “Também disse que, mesmo que tivessem chamado ele, o que não aconteceu, ele não teria uma arma. O policial não disse nada, simplesmente atirou”.
A tia contou que, junto com o marido, pediu aos policiais para mostrarem a tal arma. “Aí eles deram uma resposta brusca e não mostraram nada. Perguntei se eles tinham tirado foto dele segurando essa arma, porque se tinha uma arma deveriam ter feito isso. Entraram sem dar explicação, mataram sem dar explicação e acabou a história”.
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Cinco dias depois da morte de Mizael, o governador do Ceará, havia solicitado o afastamento dos policiais envolvidos na execução de Mizael. De lá para cá, as investigações do caso foram conduzidas em sigilo: uma da Polícia Militar e outra da CGD (Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário).
Nessa segunda investigação, de acordo com o jornal O Povo, presidida pelo tenente-coronel Paulo André Pinho Saraiva, vai contra a apuração da CGD feita delegada da Polícia Civil Adriana Câmara, que indiciou o sargento Enemias Barros da Silva por homicídio qualificado e por fraude processual. Outros dois soldados também foram indiciados por fraude processual.
O Povo também afirmou o relato dos policiais apresentava “série de incongruências” em relação à arma que Mizael estaria portava quando baleado. O documento a que o jornal teve acesso apontou também haver “indícios fortes” de que a cena do crime foi alterada.
“Foi uma operação baseada numa informação de um homem de apelido ‘Sequestro’, que não tinha notícia de mandado de prisão, foi realizada na madrugada, em que as formalidades legais não foram sequer observadas, sem tempo de avaliar a veracidade da informação repassada, culminando com a morte do Mizael”, dizia um trecho do relatório.
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Para Ana Letícia Lins, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança do Ceará, a investigação da Polícia Militar levou em consideração apenas “o relato dos policiais envolvidos”. “É absurdo ter que denunciar que um adolescente de 13 anos, dormindo, não apresentava risco para os policiais.
Desde o início, aponta a pesquisadora, os policiais defenderam a versão de que Mizael estaria armado, mas nenhuma testemunha ou familiar foi ouvida no IPM. “Precisamos levar essa conclusão do IPM em consideração principalmente pelo impacto simbólico que é muito grande. Eles invadiram a casa durante a madrugada, mataram um adolescente que estava dormindo e se garante que isso seja legítima defesa. Eles estão zombando da sociedade, da família e da vítima”.
“Vemos, mais uma vez, que a Polícia Militar está agindo para proteger os agentes de segurança pública mesmo quando eles atuam de forma ilícita e truculenta. Não há, no caso do Mizael, elementos que aponte que eles agiram em legítima defesa. Quando a instituição se coloca nesse sentido ela está legitimando a ilicitude e normalizando que os agentes podem agir dessa forma”, aponta Lins.
Outro lado
A reportagem procurou a Polícia Militar, sob o comando do governador Camilo Santana (PT), para obter um posicionamento sobre a conclusão da investigação e solicitar entrevista com os policiais envolvidos na morte de Mizael, e aguarda retorno.
À Ponte, a CGD informou que solicitou o indiciamento de um dos policiais por homicídio e fraude processual e de outros dois por fraude processual e está aguardando o posicionamento do Ministério Público do Ceará.