Rafael Braga e Rennan da Penha: quem pode ser beneficiado com decisão do STF

    Decisão que vetou prisão automática após 2ª instância afeta pouco população negra e pobre; DJ carioca pode estar entre beneficiados, mas Rafael Braga, não

    Rennan da Penha (à esq.), preso após condenação no TJ, e Rafael Braga (à dir), preso preventivamente durante o processo | Foto: Montagem/Divulgação/ Luiza Sansão

    A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) desta quinta-feira (7/11), que considerou que decisões em segunda instância não são mais suficientes para prender pessoas se todas as possibilidades de recurso não estiverem esgotadas, deve trazer poucas consequências para a maior parte da população carcerária brasileira, hoje acima dos 812 mil presos.

    É o que explica o professor Irapuã Santana, doutorando em direito processual na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ex-assessor do STF (Supremo Tribunal Federal). “A população negra e pobre, pelos dados do Infopen [Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias], está aguardando ainda a sentença de primeiro grau, o que é a realidade de 40% dos encarcerados. A repercussão não é tão grande, geralmente essas pessoas são presas em flagrante ou preventivamente”, explica. Ele lembra que, para recorrer em liberdade às instâncias superiores, como prevê a decisão do STF, “tem que pagar advogado e normalmente pessoas pretas não tem recurso”.

    Por 6 votos a 5, o Supremo interpretou que, de acordo com a Constituição, um réu condenado só pode começar a cumprir pena depois de esgotar todos os recursos, ou seja, após o trânsito em julgado. O momento em que isso ocorre pode variar muito de acordo com o acesso que a pessoa tem ao Judiciário. Como recorrer a instâncias superiores custa dinheiro, para muitos presos o trânsito em julgado ocorre já com a decisão em primeiro grau, individual, de um juiz. Para os que podem ser assessorados por advogados, é possível recorrer às instâncias superiores, em que as decisões são colegiadas, tomadas por mais de um magistrado: a segunda instância, nos tribunais de justiça, e as instâncias superiores, no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e no STF.

    Mas o ordenamento jurídico brasileiro também prevê as prisões cautelares, anteriores ao julgamento, em que que os réus ficam presos não para cumprir pena, mas para não prejudicar as investigações ou o processo legal. As prisões cautelares podem ser de dois tipos: temporárias (necessárias para o andamento da investigação policial, com prazo de cinco dias renováveis por mais cinco), e as preventivas (para evitar novos crimes ou garantir a ordem e a segurança, que não têm prazo para acabar). As prisões cautelares são a realidade, como lembrou Irapuã, de 40% dos presos no Brasil, que ainda aguardam um julgamento. E a decisão do STF não afeta em nada essa população.

    Um dos casos mais conhecidos envolvendo um preso preventivo é o do ex-catador Rafael Braga, preso em 12 de janeiro de 2016, no Rio de Janeiro, acusado de tráfico de drogas, num caso que diversos especialistas apontam como frágil e que transformou Rafael num símbolo do racismo do sistema penal brasileiro. Apesar da comoção popular nas redes sociais comemorar a decisão do STF como uma vitória para Rafael, ela não altera seu caso.

    Segundo o advogado Carlos Eduardo Martins, defensor de Rafael, sua prisão era anterior às condenações pelo fato de a Justiça considerar que ele apresentava risco para a sociedade. Assim, ele estava preso preventivamente, antes de obter direito a prisão domiciliar para tratar de tuberculose. “Ele não tinha cumprido execução provisória da pena por decisão do TJ, já tinha o regime de aguardar o trânsito em liberdade porque não sofreu a execução provisória da pena. A segunda instância decidiu não aplicar a pena no caso dele. Então, a situação dele não se altera”, explica.

    “Só as prisões que têm natureza de ‘pena privativa de liberdade’, cuja execução foi iniciada logo após a confirmação da condenação pela segunda instância, é que podem ser revogadas. Todas as outras que não se encaixem nessa situação seguirão mantidas”, explica a advogada criminal Bárbara Furtado. “A decisão somente se aplica aos casos que ainda não tenham transitado em julgado. Irá beneficiar todos os acusados que tenham iniciado o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, à exceção daqueles que já se encontravam detidos anteriormente por força de prisão preventiva”, pontua o promotor Felipe Zilberman, do Ministério Público de São Paulo.

    O advogado criminalista Humberto Fabretti, professor de direito penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie, explica que o novo entender do STF faz com que a prisão seja analisada caso a caso, e não mais uma consequência automática da segunda condenação. “É uma possibilidade, não consequência. Um argumento que o próprio [ministro] Gilmar Mendes usou para mudar o voto dele. Segundo o Gilmar, desfiguraram o que os ministros decidiram lá atrás, que era o poderia, não que seria obrigatoriedade, como se fez com a jurisprudência criada”, explica.

    Humberto pontua como exemplo para a liberdade exatamente o processo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT). Ele se junta a 4.895 pessoas, segundo análise do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), beneficiadas pela decisão do Supremo. “Vamos pensar no caso do Lula e do porquê ele deveria sair: foi preso pela decisão de 2º grau do TRF (Tribunal Regional Federal) 4, que manteve a condenação anterior, e aí o recurso subiu para o STJ. Lula foi preso por decisão condenatória de 2º grau e o Tribunal entendeu que, como tinha decisão do STF em 2016, poderia executar a pena dele e foi preso pelo efeito automático”, detalha.

    Após a decisão do STF, a defesa do ex-presidente entrou com pedido, que foi acatado na tarde desta sexta-feira (8/11) pelo juíz Danilo Pereira Jr. Lula deixou a prisão da PF (Polícia Federal) em Curitiba, onde permaneceu por um ano e sete meses.

    Há também o caso do DJ Rennan da Penha, preso no Rio de Janeiro após condenação em segunda instância por associação ao crime organizado, numa processo que, como o de Rafael Braga, também é considerado marcado pelo racismo. Sua defesa pedirá a soltura imediata. “Estamos aguardando a publicação da ata do julgamento de ontem do Supremo Tribunal Federal. Tão logo isso ocorra, entraremos com pedido de soltura junto ao STJ”, define o empresário do DJ, Billi Barreto, à Folha de São Paulo.

    Ministros do STF decidiram, por 6 votos a 5, que prisão se dará somente após análise de todos os recursos da defesa | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

    Ficar preso ou responder em liberdade

    A desembargadora Ivana David Boriero, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, explica que há duas formas de um suspeito de crime responder ao processo. “A pessoa é apresentada ao juiz na audiência de custódia e ele avalia se ela apresenta risco e deve permanecer presa preventivamente ou se deve responder em liberdade. Assim, condenada ou não na primeira e segunda instância, ela seguirá livre até o trânsito em julgado [quando não há mais possibilidade de recursos]. No primeiro caso, ela fica presa até o fim do processo”, detalha.

    Para que uma pessoa seja presa antes do julgamento é preciso que a Polícia Civil e Ministério Público apresentem elementos para a Justiça determinar a retirada da sociedade. “A prisão preventiva precisa de elementos mais concretos para ser decretada do que a temporária, que é usada na investigação e busca a produção de prova. A temporária parte do pressuposto de que, se ela não for produzida naquele momento, os suspeitos podem de alguma forma desviar prova”, detalha André Lozano, advogado criminalista e coordenador de iniciação científica do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

    Até a mais recente avaliação do STF, os Tribunais de Justiça consideravam que sua decisão condenatória era suficiente para determinar a ida para a prisão. “É a tese do [desembargador] Ivan Sartori: chegou no 2º grau e o Tribunal manteve, já tem que cumprir pena. No 2º grau, quando o TJ analisa um recurso, deixa de discutir a prova e se entende que está provada a sentença condenatória. STJ e STF não discutem prova, discutem direito constitucional”, explica a magistrada Boriero.

    O advogado André Lozano chama a atenção para algumas particularidades. “Os desembargadores estão corretos na questão das provas, mas tem uma questão importante. STF e STJ avaliam a aplicação do direito ao caso concreto e da Constituição no caso concreto. Por exemplo: não vou mais analisar os fatos de que o Joãozinho foi preso por tráfico de drogas e as únicas testemunhas eram policiais militares, nesse caso vou aos tribunais superiores para eles discutirem se o testemunho dos policiais, por si só, é suficiente para basear uma condenação”, argumenta.

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