Perseguidos e humilhados pela PM, motoboys preparam protesto

Para reprimir aumento de roubos registrados em bairros de maioria branca, governo de Rodrigo Garcia promove enquadros ilegais de motoboys, categoria em que 61,6% são negros

Um homem negro segura a motocicleta com força enquanto dois policiais militares tentam levá-la. “Eu não vou entregar a moto, eu sou trabalhador”, grita, enquanto se desespera. Mais policiais chegam e um mira uma arma de choque, conhecido como taser, em sua direção. “Minha moto, não, é tudo o que eu tenho nessa vida”, continua, enquanto dois PMs sobem sobre ele e o imobilizam. A pessoa que filma a cena com o celular se revolta: “Prenderam a motinha do cara e ainda tão batendo no cara”. Ao final, o jovem revela: “Meu pai morreu, eu não tenho ninguém por mim”.

O desespero captado nesse vídeo é parte de uma prática cada vez mais intensa de perseguição e humilhações contra os motoboys que a Polícia Militar vem praticando desde maio deste ano, quando o governo Rodrigo Garcia (PSDB) lançou a chamada Operação Sufoco, com o objetivo de combater um aumento de roubos registrados nos bairros mais brancos e ricos da cidade de São Paulo.

Numa reação contra a violência policial, um grupo de motoboys do Grajaú, na zona sul da capital paulista, está organizando um protesto na Avenida Dona Belmira Marin, na próxima segunda-feira (15/8), com o apoio da Rede de Resistência e Proteção contra o Genocídio. “A gente vai para rua para tentar mostrar o que é a realidade, o que a gente está passando, que todo mundo é trabalhador”, afirma Henrique Silva Barros, 23 anos, um dos participantes do protesto.

A Operação Sufoco foi deslanchada pela gestão de Garcia após um aumento no número de roubos ter sido registrado nos bairros de Consolação, Itaim Bibi, Pinheiros e Campos Elíseos — dos quais os três primeiros estão entre os que têm a população mais branca e com maior poder aquisitivo no município, segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo. O estopim foi em 25 de abril, quando o falso entregador Acxel Gabriel de Holanda Peres roubou o celular e matou a tiros o estudante Renan Silva Loureiro. Nove dias depois, a operação foi anunciada.

Para aumentar a segurança nos bairros brancos, a PM passou a fazer abordagens generalizadas sobre os motoboys, categoria profissional em que 61,6% dos trabalhadores são negros, segundo um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Segundo a advogada Dina Alves, mestre em antropologia com ênfase em gênero e raça pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a perseguição aos motoboys “reforça o caráter racista nas formulações de políticas de segurança no estado”.

O jovem negro agredido pelos policiais no vídeo se chama Reginaldo e tem 29 anos. Segundo o programa Balanço Geral, da Record TV, o motociclista foi abordado em Santana, na zona norte da capital paulista, na última segunda-feira (8/8), e detido por desobediência e resistência, além de ter o veículo apreendido por estar sem carteira de habilitação, com licenciamento atrasado e multas. A moto é a única forma de sustento do jovem, que tem uma esposa com endometriose, que precisa de remédios caros. “Ela estava fazendo o tratamento dela, então não tinha como legalizar a minha moto”, relatou. “Foi um constrangimento, [os policiais] puxaram minha camisa, não precisava disso”.

Na ocasião, o motoboy conta que ainda tentou pedir um empréstimo a parentes e amigos para quitar a dívida de R$ 3 mil na hora, mas o sistema do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) não reconheceu a transação e, como o Código Brasileiro de Trânsito prevê a apreensão de veículo se a pessoa está sem a carteira de habilitação, a moto foi levada. “Eu me vi sem saída porque sem a moto não tem como eu trabalhar”, lamentou à TV. A Ponte não conseguiu contato com Reginaldo.

Quando viu o vídeo, Henrique Silva Barros lembrou na hora de uma situação parecida que viveu em março deste ano. “Os policiais pararam na frente da minha casa duas semanas depois que eu peguei a moto [no pátio] e me colocaram um monte de multa, de R$ 5 mil, dizendo que eu cometi direção perigosa, dei fuga, sendo que eu nunca fiz isso, e porque estava sem habilitação”, conta. “Eles começaram a me bater porque eu não queria entregar a moto, tentaram me algemar e disseram que eu ia ser preso por desacato porque eu falei que não iam levar minha moto, xingaram minha mãe.”

Ele afirma que depois que conseguiu recuperar o veículo, no entanto, está há três meses fazendo bicos em uma doceria a 24 quilômetros de sua casa, no Grajaú, por medo de perder o único bem que tem para sustentar a esposa e uma filha de um ano. “Com a moto eu consigo um dinheirinho a mais, mas não tem como eu perder de novo. As multas do Detran vêm chegando e não sei nem como vou pagar isso. Às vezes eu tiro um trocado [no bico], mas com R$ 100 você não consegue comprar nada hoje em dia”, lamenta. “Minha filha vai fazer dois anos no final de semana, eu queria fazer uma festa para ela, mas, se eu sair de moto e perder, eu não sei o que eu faço”.

Henrique aponta que as abordagem policiais se intensificaram no bairro onde mora, especialmente na Avenida Dona Belmira Marin, e que, devido à falta de condição financeira, não consegue regularizar sua situação. “A gente não é contra o policiamento porque a gente precisa de segurança, mas os policiais só estão abordando trabalhador, às 6h, 7h da manhã. Quem é ladrão não vai passar por ali”, explica. “A gente fica com medo da polícia, que deveria proteger, porque ter medo não é normal”.

O motoboy Elton Vinicius Lima da Silva Souza, 19, conta que também sofreu abusos. “Ao invés da polícia fazer o trabalho certo, ela xinga, esculacha, quer bater”, critica. “Minha moto está em dia, está certinha e colocam qualquer obstáculo para levar a moto para o pátio.” Elton, que trabalha de pintor durante o dia e faz entregas para uma pizzaria à noite, tem medo de ser abordado enquanto trabalha e ter o veículo apreendido. “Teve uma vez que me xingaram de filho da puta, eu falei umas verdades e não gostaram, e disseram ‘se eu pegar de novo, vou meter uma infração em você’ e ficam várias equipes diferentes abordando, teve dia que eu fui abordado quatro vezes no mesmo dia”, conta.

A prática usada pela Operação Sufoco de fazer abordagens em massa de pessoas nas ruas apenas pelo fato de serem motoboys é considerada ilegal por especialistas, já que uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que a polícia precisa ter indícios concretos para abordar alguém e não pode fazer “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.

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O advogado André Alcântara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, afirma que os policiais estão praticando abusos. “As abordagens são abusivas quando fica a cargo do policial definir quais são as irregularidades que podem ser facilmente sanáveis e regularizadas ou com irregularidade contestável, como, por exemplo, um pneu careca, e esse grau de autonomia acaba deixando à mercê da narrativa policial”, explica. “A polícia atua por meio de uma lógica muito punitivista diante de um motoboy, que é uma categoria já muito precarizada, que sofre sem direitos trabalhistas, e, quando é abordado pelo poder público, não é orientado, é repreendido.”

O que diz o governo

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), sobre as denúncias de abusos cometidoas pela PM e aguarda resposta.

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