Pesquisa indica que Folha recorreu à desinformação em apoio à ditadura

Para além da censura prévia, Grupo Folha chegou a espalhar fake news para apoiar o regime: “operações psicológicas”

Movimentação de tanques diante do Congresso Nacional, em 1969 | Foto: Jornal Movimento/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Pesquisadores que investigaram por cerca de dois anos as relações entre o Grupo Folha e o regime militar afirmam que a empresa recorreu de forma sistemática à desinformação. Eles também contestam a alegação de que seus jornais apenas cederam à pressão da ditadura e avaliam que o apoio ao governo foi além do posicionamento editorial.

“Houve um protagonismo político muito claro”, afirma André Bonsanto, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) e um dos integrantes da equipe que envolveu especialistas de diferentes instituições. Além de mergulhar em acervos já existentes em busca de documentos vinculados ao assunto, eles entrevistaram mais de 40 pessoas. Um relatório concluído no ano passado está em posse do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que já possuem inquéritos abertos para investigar os achados da pesquisa, apresentados publicamente em um seminário no segundo semestre do ano passado.

Segundo escrevem os pesquisadores, o Grupo Folha trabalhou para “fazer com que o conjunto da sociedade brasileira fosse levada a acreditar em teses históricas infundadas (como a ameaça de um golpe comunista no pré-1964), em versões fantasiosas que legitimavam e/ou ocultavam graves violações aos direitos humanos (como as notícias de que militantes vivos estavam mortos), em discursos oficiais cínicos e ilegítimos (como a afirmação de que não existiam presos políticos no Brasil)”.

Eles defendem que foram disseminadas informações falsas como se fossem verdade. “Hoje, talvez chamássemos este tipo de narrativa massivamente reproduzida nos jornais do Grupo Folha de ‘desinformação’ ou, quem sabe, apenas fake news“, acrescentam os pesquisadores.

Foram apresentados relatos detalhados de alguns casos. Um dos mais emblemáticos envolve a morte de Joaquim Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Ele foi acusado de participação na ação que culminou no assassinato do empresário Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz e um dos financiadores das ações de repressão da Operação Bandeirante (Oban), instituída pelo regime militar em 1969 com o objetivo de desarticular grupos engajados na oposição à ditadura.

No dia 17 de abril de 1971, a Folha da Tarde, um dos jornais distribuídos pelo Grupo Folha naquela época, noticiou pela manhã que Joaquim havia reagido a uma abordagem policial e foi morto em um tiroteio. Enquanto o periódico já estava em circulação, o militante do MRT e seu filho Ivan Seixas, de apenas 16 anos, estavam sendo torturados. Ele só morreria às 19h daquele mesmo dia.

Primeira página da Folha da Tarde, que noticiou a morte de Joaquim Seixas antes que ocorresse | Crédito: Reprodução

Em seu depoimento, Ivan Seixas conta que, entre uma e outra sessão de tortura, os policiais o levavam para dar uma volta e ele chegou a ver, em uma banca de jornal, a manchete que anunciava a morte de seu pai. Quando retornou ao edifício da Oban, encontrou seu pai sendo espancado, mas ainda vivo. “Significa que o jornal soube antes que o pai dele seria assassinado”, avalia Flora Daemon, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) que integrou a equipe de pesquisa.

Notícia sobre a morte de Joaquim Seixas, publicada quando militante ainda estava vivo, sendo torturado junto com o filho | Crédito: Reprodução

No ano passado, quando tomou conhecimento dos achados da pesquisa, o jornal publicou trechos de um memorial escrito pelo jornalista Oscar Pilagallo. Produzido por demanda interna em 2005, ele não foi publicado na época. Segundo a Folha, boa parte das informações foi usada pelo jornalista posteriormente no livro História da Imprensa Paulista, de 2011.

Conforme o texto divulgado pelo jornal, devido ao testemunho de Ivan Seixas, criou-se a impressão de que só a Folha da Tarde teria antecipado a morte de Joaquim. Segundo o memorial de Oscar Pilagallo, o que ocorreu foi a publicação de informações com base em uma nota oficial dos órgãos de segurança. Ele alega que todos os jornais de São Paulo deram a mesma informação no mesmo dia.

“O que a Folha da Tarde tinha de diferente dos outros jornais era a retórica da direita estridente e o destaque espalhafatoso da versão policial. Não encontrei indícios, no entanto, de que o jornal tivesse, sozinho, se antecipado à concorrência na publicação de versões oficiais que procuravam camuflar o assassinato de militantes da esquerda armada”, registra o memorial.

Amanda Romanelli, estudante de doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que também se envolveu na pesquisa, chama atenção para uma outra publicação no contexto da implantação da Oban. “Três sets de televisão são incendiados na cidade de São Paulo: Bandeirantes, Record e Globo. É incrível pensar que até hoje há discussão sobre esses episódios. A autoria não foi confirmada. Mas o Grupo Folha foi muito rápido na época em colocar a culpa nos subversivos.”

Por muitos anos, a Folha de S. Paulo publicou editoriais deixando claro sua simpatia com o regime militar. Em 1969, no contexto da criação da Oban, o jornal iniciou uma campanha intitulada “União contra a Violência” e estampou em suas páginas fotos e nomes de “terroristas procurados”, muitos dos quais foram posteriormente presos, torturados e mortos. Em seu aniversário de 50 anos celebrado em 1971, um editorial registrou o apoio aos “esforços da Revolução de 64 para a reconstrução do Brasil”. Nessa época, o Ato Institucional número 5 (AI-5) já vigorava há três anos, tendo instaurado o período mais violento da ditadura.

Procurado pela reportagem, o Grupo Folha afirmou, através de sua ombudsman Alexandra Moraes, que tudo o que foi apurado internamente sobre os temas tratados pela pesquisa constam no conteúdo publicado pela Folha de S3 Paulo em junho do ano passado, com base no memorial escrito pelo jornalista Oscar Pilagallo. O texto abre espaço para a tese de que o apoio ao golpe foi discreto, sendo que “Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, entraram em cena, em agosto de 1962, quando a conspiração já estava articulada”. Pilagallo aponta ainda que, no período que antecedeu o golpe, a posição editorial do jornal não tinha peso decisivo e nem merecia maior atenção dos novos donos, mais preocupados em sanear financeiramente a empresa.

É possível encontrar também outros posicionamentos públicos em que o Grupo Folha não nega seu apoio editorial ao regime militar. Em editorial publicado em março de 2014, quando o golpe completou 50 anos, o jornal fez um mea-culpa. “Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro. É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias”, acrescenta o editorial.

Em diversas publicações em que analisa sua própria história, a empresa sustenta que possuía graves dificuldades financeiras e vultuosas dívidas quando foi adquirida em 1962 por Otávio Frias Filho e Carlos Caldeira. Dessa forma, no contexto do golpe em 1964, suas publicações não tinham alcance significativo e não exerciam influência na sociedade. O alinhamento à ditadura instalada em 1964 viria apenas após sua consolidação e teria sido uma forma de sobrevivência.

Para os pesquisadores, essa versão relativiza o papel ativo da Folha. Eles apontam que, assim como outros veículos de imprensa, o jornal repercutiu várias das narrativas formuladas e propagadas no âmbito do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). Eram organizações financiadas pelo empresariado que difundiram teses alinhadas com a Escola Superior de Guerra e conteúdos de estímulo a ações de desestabilização do governo de João Goulart.

Recibo mostra que Folha recebeu dinheiro do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, criado para desestabilizar a democracia | Crédito: Reprodução

No acervo do Ipes, custodiado no Arquivo Nacional, os pesquisadores encontraram um documento que traz o nome de Octávio Frias de Oliveira como sócio da entidade. Há também um recibo, datado de 1967, que atesta uma contribuição de 12.000 cruzeiros feita por ele.

Ações psicológicas

De acordo com os pesquisadores, a versão que desvincula o Grupo Folha das movimentações golpistas não é capaz de explicar a publicação de um suplemento especial de 44 páginas no dia 31 de março de 1964, intitulado “64 – Brasil continua”. A coincidência com a data do golpe chama a atenção. “Para um suplemento jornalístico substancialmente volumoso, ainda mais com a tecnologia daquele período, seria preciso uma preparação prévia iniciada bem antes de 31 de março. É um material bem particular não só pelo teor do discurso, mas por indicar uma articulação entre o jornal e uma grande parcela do empresariado naquele momento”, diz André Bonsanto.

Os pesquisadores observam também que diversos anunciantes do material eram empresas posteriormente denunciadas por colaborarem financeiramente com a Oban. Além disso, destacam que teses difundidas pelos articuladores do golpe passaram a permear o conteúdo dos jornais do grupo, havendo similaridade no uso de termos encontrados nos manuais da Escola Superior de Guerra e nas reportagens.

Segundo a pesquisa, o alinhamento do Grupo Folha ao regime militar ganhou contornos mais explícitos após a decretação do AI-5 no final de 1968. A autocensura teria sido adotada de forma sistemática a partir de então, através de um rígido controle interno. Todos os veículos do grupo adotaram postura editorial de alinhamento com a ditadura. A Folha da Tarde publicava os textos mais enfáticos, pesando na adjetivação de opositores, classificando-os frequentemente como “terroristas”, “facínoras”, “assassinos”, “maníacos” e “loucos”.

“As notícias eram anguladas com o intuito não apenas de defender as ações dos militares, mas de tornar legítima as graves violações aos direitos humanos perpetradas”, apontam os pesquisadores. Eles consideram que, na perspectiva militar, o jornal colaborava em uma frente de “ações psicológicas”. Os manuais da Escola Superior de Guerra indicavam que a guerra contra os subversivos deveria ser combatida de diversas formas, não apenas com armas. Nesse sentido, as ações psicológicas eram tratadas como um movimento essencial para garantir a adesão da população às ideias do regime.

“O lugar que esse tipo de ação ocupava, na lógica das agências repressivas, não era lateral. Pelo contrário. Essas operações possuíam um status quase tão relevante quanto às ações propriamente militares de repressão. Nesse sentido, era fundamental, para a ditadura, contar com uma aliança estreita com um jornal da envergadura da Folha”, registra a pesquisa.

Histórico

A coordenação da pesquisa foi da professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana Paula Goulart, que é referência em estudos envolvendo mídia e memória social. O grupo foi selecionado em um dos editais abertos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com o MPF para investigar o envolvimento de diferentes empresas em violações durante a ditadura.

Os recursos que financiam essas pesquisas são provenientes de um acordo com a Volkswagen. Em 2020, a montadora admitiu sua cumplicidade na perseguição de seus trabalhadores durante o regime militar e pactuou com o MPF um conjunto de medidas para reparação de danos. Entre elas, foram destinadas R$ 4,5 milhões para as pesquisas coordenadas pela Unifesp. Dentre as empresas investigadas nessa iniciativa, a Folha de S. Paulo é a única empresa de mídia.

“Precisamos conhecer melhor a história do Brasil e o papel dos meios de comunicação”, defende Ana Paula. Segundo ela, apesar de já existir alguns trabalhos de referência, a relação entre o Grupo Folha e o regime militar ainda é muito pouco estudado. “Todo mundo associa a ditadura à Rede Globo. Inclusive isso se reflete nos trabalhos acadêmicos. Existem inúmeras teses e artigos científicos sobre a relação entre a ditadura e o grupo Globo. Isso não acontece no caso da Folha”, observa.

Além de avaliar o conteúdo jornalístico produzido no período, a pesquisa também abordou outras questões como o empréstimo de carros da empresa para ações repressivas e a contratação de policiais como jornalistas. Ana Paula contesta teses que afirmam que o Grupo Folha se expandiu e se consolidou durante a ditadura exclusivamente por uma questão de sucesso empresarial. Segundo ela, seu crescimento esteve estrategicamente ligado aos interesses dos militares.

Embora avalie que a ascensão econômica da empresa ainda foi muito pouco estudada e esclarecida, a pesquisadora garante ser possível afirmar que o acesso a recursos foi facilitado pelo Estado. “Houve ganhos financeiros e econômicos muito claros”, diz ela, citando que já se sabe que houveram empréstimos apoiados ou subsidiados e inclusive recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).

A origem do Grupo Folha remonta a 1921, quando foi fundada a empresa Folha da Manhã S.A., que editava os jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Em 1960, os três periódicos foram unificados sob o título Folha de S. Paulo. Após adquirirem a empresa em 1962, os empresários Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira inauguraram um novo período de mudanças, que ajudaram a consolidá-la no mercado editorial brasileiro durante os anos do regime militar.

De acordo com a pesquisa, a estratégia de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira envolvia a compra de empresas perseguidas pelos militares e que enfrentavam dificuldades econômicas. Foram adquiridos, por exemplo, os jornais Notícias Populares e Última Hora. Este último sofria boicotes devido à proximidade de seu antigo dono, Samuel Wainer, com o ex-presidente deposto João Goulart.

Em 1967, o Grupo Folha também modernizou os processos de produção de seus jornais e adquiriu equipamentos caros e sofisticados. Na mesma época, foi relançada a Folha da Tarde, que se tornaria o mais enfático na defesa do regime militar. Sob o comando de Frias e Caldeira, o conglomerado assumiu o controle de outras publicações como a Gazeta e a Gazeta Esportiva. Também investiu em experiências no rádio e na TV. Segundo dados reunidos na pesquisa, o patrimônio líquido passou de 47.564.807 cruzeiros em 1973 para 210.844.987 em 1977. Um salto de 343%.

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Nos anos 1980, com as finanças em boa situação, teve início a implementação do “Projeto Folha”, que buscou modernizar a estrutura e reformular princípios político-editoriais. Foi quando a Folha de S. Paulo se engajou na campanha das Diretas Já, movimento popular que cobrava a retomada das eleições diretas para o governo brasileiro. Nessa época, o jornal passou a ser identificado como um veículo de resistência, que ecoava demandas da sociedade civil no período de redemocratização.

No início dos anos 1990, a Folha de São Paulo estava com sua identidade estrategicamente reformulada e com a maior circulação do país. “A Folha constrói uma história muito particular sobre si mesma. Ela busca ser reconhecida como jornal a serviço da democracia”, diz André Bonsanto. Ele observa, no entanto, que suas publicações escondem ou negligenciam o período de 1960 até meados dos anos 1970. “Quando a Folha conta sua própria história, ela prefere contar de 1975 para frente, silenciando o que aconteceu anteriormente”, acrescenta.

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