PF descarta ‘quarto suspeito’ da morte de Bruno e Dom: ‘versão pouco crível e desconexa’

Homem se apresentou voluntariamente em delegacia de SP na quinta-feira (23) dizendo ter envolvimento com assassinatos; Ponte foi o único veículo a questionar contradições de depoimento, como erros geográficos grosseiros

Foram acendidas velas em memória do jornalista britânico Dom Phillips e ao indigenista brasileiro Bruno Pereira durante protesto em SP nesta quinta-feira (23) | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça do Amazonas negou o pedido de prisão temporária de Gabriel Pereira Dantas, 26, feito pela Polícia Civil de São Paulo, e mandou soltá-lo. No dia anterior, ele se apresentou voluntariamente ao 2º DP (Bom Retiro), no centro da capital paulista, dizendo que tinha envolvimento com os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, ocorridos em 5 de junho, mas a Polícia Federal, que coordena a investigação do caso no Vale do Javari informou em nota, nesta sexta-feira (24/6), que não há indícios da participação dele nos crimes, já que “apresentou versão pouco crível e desconexa” (leia na íntegra ao final do texto).

Gabriel procurou policiais militares na Praça da Sé, no centro da cidade, para confessar os crimes naquela manhã e foi conduzido à delegacia. Sem apontar as contradições presentes no depoimento, a Polícia Civil de São Paulo se adiantou para sair divulgando categoricamente ter preso um novo suspeito do duplo homicídio. Em entrevista à Rádio Bandeirantes, Roberto Monteiro, delegado da Seccional Centro, afirmou que “ele (Gabriel) estava junto na lancha voadora de onde foram disparados os tiros contra o ambientalista e o jornalista inglês, e depois ele ficou responsável por esconder os pertences das vítimas no meio da mata. Ele fugiu primeiro para Roraima e depois para São Paulo”. Na coletiva que aconteceu no mesmo dia, disse de forma menos assertiva que “é uma versão que tem fundamento, ele realmente é de Manaus, ele relata com muita riqueza de detalhes o que ele fez durante o período em que foi até Atalaia do Norte”.

No depoimento obtido pela reportagem, o Gabriel relatou que que a morte de Bruno e Dom ocorreu no Rio Madeira, o maior afluente do rio Solimões, que nasce na Bolívia, entra em Rondônia, abrange a parte sul do Amazonas e tem a foz na parte central do estado, a mais de 1.200 km, em linha reta, do Rio Itacoaí, onde Bruno e Dom desapareceram. Ele ainda afirmou que os assassinatos aconteceram na comunidade Santa Isabel, mas no Amazonas não existe nenhuma “Santa Isabel” na região do Vale do Javari — talvez se referisse ao município de Santa Isabel do Rio Negro, no noroeste do estado, distante 1.000 km em linha reta da Terra Indígena Vale do Javari. Ou se confundiu com a comunidade São Rafael, por onde as vítimas passaram.

Trecho do depoimento de Gabriel obtido pela Ponte | Foto: Reprodução

Outro erro geográfico do depoimento de Gabriel é sua rota de fuga. Após o crime, ele teria viajado a Santarém, no Pará, distante 1.800 km em linha reta do Vale do Javari, sem identificar a rota tortuosa que teria que seguir para chegar. De lá, teria voltado ao oeste para Manaus, capital do Amazonas, seguido para Rondonópolis, no Mato Grosso, e só então partido de ônibus para São Paulo. É um caminho extremamente difícil, longo, demorado e caro de ser realizado, além de contraintuitivo — ainda mais para terminar se entregando na Praça da Sé.

Além do passeio, Gabriel ainda se contradisse em vídeos distribuídos à imprensa, onde fala que teria espalhado pertences de Bruno e Dom pela mata (os objetos foram encontrados afundados no rio), além de dizer que teria ido à região onde ocorreu o crime fugindo do Comando Vermelho, que, segundo reportagens, é uma das facções que disputam justamente o controle territorial no Vale do Javari.

Outros veículos noticiaram a informação como se fosse um fato comprovado. “Quarto suspeito da morte de Bruno e Dom é preso em São Paulo”, soltou o R7. Na Folha de S. Paulo, a chamada era “Polícia de SP prende outro suspeito do assassinato de Bruno e Dom”. O Nexo disse que “4º suspeito de matar Dom e Bruno se entrega à polícia em SP”. O jornal Estado de São Paulo seguiu na mesma toada: “Bruno e Dom: quarto suspeito de participar do assassinato se entrega e é preso em SP”. O G1 foi mais cauteloso e se ateve aos fatos: “Homem se apresenta à polícia de SP dizendo que participou dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no AM”.

A Polícia Civil de São Paulo não é responsável pela investigação do caso, que está nas mãos da Polícia Federal, mas divulgou foto, vídeo e dados pessoais de Gabriel (Luiz Bacci, apresentador da Record TV, chegou a apresentar foto de Gabriel com o número do CPF em um stories do Instagram), além de ter convocado uma coletiva de imprensa às 16h30 de quinta-feira (depois de muitos veículos já terem noticiado a prisão) para prestar declarações sobre a ida do homem ao distrito policial. Todos os jornalistas ali pensaram que poderiam questionar a respeito da aparição dele e tirar dúvidas sobre o depoimento, mas não foi permitido fazer perguntas.

Procurada sobre a nota da PF, a delegada Vanessa Guimarães, responsável pela comunicação da Seccional Centro e que também aparece interrogando Gabriel em vídeos divulgados à imprensa, disse que a Polícia Civil cumpriu o papel constitucional de fazer a coleta do depoimento, apresentar Gabriel às autoridades e de prestar informações à imprensa. “Ele apresentou a oitiva dele que é um meio de prova, óbvio, ele estava cheio de papéis de todo o trajeto que ele percorreu e tem a oitiva do caminhoneiro, que inclusive foi colhida com a nossa intervenção na Polícia Civil de Goiás, e essa testemunha confirmou toda a versão dele, de que trouxe ele de caminhão, de que deu carona para ele”, explicou.

“Mas isso são coisas que a nós não interessa divulgar, a gente tem que ter o nosso papel e qual era o papel da Polícia Civil? O cara vem, se apresenta, diz que matou duas pessoas [no depoimento consta que pilotou o barco]. O nosso papel é mantê-lo ali até isso ser apurado”, prosseguiu. “Ele foi entregue à Polícia Federal porque o inquérito é da Federal porque, se não, estaria na estadual aguardando a apuração da versão dele. É assim que funciona, ainda mais num inquérito complexo como esse em que os fatos aconteceram em Manaus. Não dá para, em algumas horas, definir se a versão dele é verdadeira ou não. Eu não quero julgar nada, mas acho que a versão dele tem que ser muito bem apurada, muito bem apurada. É prematuro descartar totalmente porque tem que se entender por que esse homem aparece do nada, sem sinal nenhum de deficiência mental, e se declara autor de um crime gravíssimo de repercussão internacional?”

Ao contrário do que a delegada afirma, não há propriamente algo que precise “ser apurado” no fato de uma pessoa procurar a polícia para confessar um crime de grande repercussão, porque as falsas confissões voluntárias são um fenômeno conhecido pelas polícias de todo o mundo que trabalham com crimes que ganham destaque na mídia. Nos Estados Unidos, em 1932, cerca de 250 pessoas confessaram que haviam sequestrado e matado o bebê do aviador Charles Lindbergh. A morte da jovem Elizabeth Short, conhecida como Dália Negra, em 1947, que inspirou filmes, séries, livros e quadrinhos, levou a cerca de 500 falsas confissões voluntárias ao longo de anos. Diferente do que a polícia de São Paulo fez ontem, nesses dois casos as polícias dos EUA esperaram obter provas reais antes de sair divulgando que haviam capturado um assassino.

Uma estratégia usada pela polícia dos EUA é não divulgar determinados detalhes (chamados de “chaves”) sobre um crime ao grande público. Assim, no caso de pessoas que procuram a polícia dizendo ter cometido um crime, os policiais só vão começar a levar a história a sério e considerá-la que “parece verossímil” se ela mencionar detalhes reais que não foram divulgados pela imprensa. No caso do “suspeito” de ontem, Gabriel não só não divulgou qualquer detalhe real que não tivesse vindo à tona até o momento como cometeu uma série de erros.

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O delegado Roberto Monteiro, que deu as declarações sobre a presença de Gabriel na cena do crime, tem um perfil bastante midiático, postando suas aparições na imprensa em seu perfil no Instagram, onde estão reunidas como destaques dos Stories na aba “Operações“. Ainda em junho, durante uma das infindáveis fases da operação Caronte, que busca desmontar a cena aberta de venda e consumo de drogas na capital paulista conhecida pejorativamente como “Cracolândia”, o delegado contradisse um comunicado da própria Polícia Civil ao afirmar que a operação não tinha como objetivo cumprir mandados de prisão.

O que diz a Polícia Federal do Amazonas

Manaus/AM – O Comitê de crise, coordenado pela Polícia Federal/AM, informa que, na data de ontem, uma pessoa que se identificou como Gabriel Pereira Dantas se apresentou voluntariamente à Polícia Civil de São Paulo/SP e confessou ter participado das mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom
Phillips. Ele teve sua prisão temporária requerida pela Polícia Civil de São Paulo/SP, mas a Justiça de Atalaia do Norte/AM indeferiu o pedido.

Ainda na data de ontem, referida pessoa foi encaminhada à sede da Polícia Federal em São Paulo/SP para ser formalmente ouvida e prestar esclarecimentos sobre os fatos, mas optou por exercer seu direito constitucional de permanecer calado. Ele permanece em liberdade, tendo em vista que não há indícios de ter participado dos crimes ora em apuração, já que apresentou versão pouco crível e desconexa com os fatos até o momento apurados.

O Comitê informa, por fim, que as investigações continuam em andamento e novas diligências estão sendo realizadas pela Polícia Federal e pela Polícia Civil do Amazonas, sendo que, nesta data, foram cumpridos 6 mandados de busca e apreensão nas cidades de Atalaia do Norte e de Benjamin Constant, tendo sido apreendidos objetos possivelmente relacionados com os delitos.

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