Comando da corporação no estado alegou ‘problemas técnicos’ e ‘falta de recursos’ para recolher os 2.245 equipamentos em uso — que reduziram letalidade policial e enfrentam oposição de políticos bolsonaristas
O Comando-Geral da Polícia Militar de Santa Catarina decidiu, nesta segunda-feira (16/9), encerrar o programa de câmeras nas fardas, alegando problemas técnicos nos equipamentos, falta de manutenção e fragilidade na segurança do armazenamento nas filmagens.
A confirmação da medida ocorreu um dia depois que o site NSC Total divulgou um despacho interno do Estado Maior da corporação que pedia a baixa e o recolhimento de todos os aparelhos, que somam 2.245 câmeras em funcionamento desde 2019.
Santa Catarina foi o estado pioneiro na implementação e uso das câmeras corporais pela PM no país e, segundo especialistas ouvidos pela Ponte, os pontos elencados pelo comando da corporação não justificam o encerramento do projeto.
A PM sob o comando do governador Jorginho Mello (PL) — um aliado próximo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) —, afirmou que irá buscar alternativas para financiamento e aquisição de câmeras, mas deu não detalhes de quando isso vá acontecer. Em São Paulo, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), outro aliado do ex-presidente, também se posiciona de maneira ambígua sobre as câmeras e chegou a dizer que seu uso em gravação ininterrupta seria “gasto desnecessário”. “Queremos uma população segura, e não um policial vigiado”, declarou Tarcísio em maio, num evento em Campinas (SP).
Conflito de visões
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), favorável ao uso de câmeras corporais pelas PMs no país, disse à reportagem que não foi procurado pelo governo catarinense para tratar sobre o tema [ver nota ao final do texto]. O governo federal tem um projeto de repasses de verbas para segurança pública diretamente ligado a esses equipamentos.
Em maio, o ministro Ricardo Lewandowski chegou a afirmar, no lançamento das novas diretrizes sobre a utilização de câmeras corporais por profissionais da segurança pública, que elas representam um “salto civilizatório, no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais”.
Leia mais: Deputados tentam barrar normas para câmeras corporais em policiais
Para Pedro Souza, professor de Economia na Universidade de Queen Mary em Londres, que integrou um estudo que avaliou a eficácia das câmeras na polícia catarinense em 2018, o argumento usado pela PM para justificar a decisão não se sustenta: “Equipamento de alta tecnologia exige uma renovação periódica, mas o que me espanta muito é a polícia não ter pensado na renovação e ter que, portanto, terminar um projeto antes de ter uma alternativa.”
O experimento conduzido por ele, que avaliou um grupo que usava câmeras e outro que não usava, demonstrou alguns achados, como a redução de 61% do uso da força pelos policiais militares e o aumento de 69% no registro de casos de violência doméstica quando os PMs usavam as câmeras.
Para Pedro, é um erro encerrar o projeto diante das evidências positivas e do tempo de maturidade que a corporação vinha ganhando com a experiência. “Eu acho que a polícia vê esse problema [de tecnologia] hoje porque não se planejou, não se readequou, não pensou à frente. E agora vai ter que ser forçado a olhar no retrovisor e estar na retaguarda da adoção de câmeras ao redor do planeta.”
‘Culpa da esquerda’
Para Alan Fernandes, doutor em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trata-se de uma decisão política que, tomada num estado que é referência no assunto, tende a impactar outros governos sobre a adoção de câmeras nas fardas.
“Uma decisão como essa sinaliza para um eleitorado mais conservador, ligado à política de linha dura e à ideia de que as câmeras vão contra isso”, analisa.
Um policial militar catarinense, ouvido sob anonimato pela reportagem, admite que já existia resistência na corporação ao programa. Mas que o fato de ele ter sido associado exclusivamente à redução das mortes pela PM contribuiu ao “retrocesso”. “A esquerda e ONGs têm papel fundamental nesse triste desfecho, quando focaram somente na letalidade policial, deixando praticamente de lado outros aspectos relevantes, como a produção de provas”, acusa.
De fato, a implementação das câmeras corporais pelas PM no estado não tinha como objetivo primordial o controle da letalidade dos policiais. Santa Catarina, inclusive, sempre esteve abaixo da média nacional nesse quesito: enquanto o Brasil tem taxa de letalidade policial de 3,1 vítimas para cada 100 mil habitantes, Santa Catarina tem índice de 1, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado este ano com dados referentes a 2023. Embora no estudo de 2018 elas tenham reduzido a letalidade no estado, o número de mortos pela PMSC subiu 72% de 2022 para 2023.
Iniciativa própria
“A PM de Santa Catarina começou suas iniciativas em câmera para produzir provas para o judiciário, foi disseminando sua imagem institucional nesse sentido”, explica Alan Fernandes. Ele lembra que a PMSC já tem atribuição, por exemplo, de fazer Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), a fim de fazer registro de ocorrências com menor potencial ofensivo — um instrumento permitido desde 1999, mas que só veio a ser implementado de fato em 2006.
Como a Ponte registrou em reportagem de 2021, a PM catarinense enviou seu projeto de câmeras corporais em 2018 para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), que havia publicado uma resolução para que iniciativas pudessem ser beneficiadas com os valores obtidos por prestações pecuniárias — penas alternativas que consistem no pagamento de uma quantia em dinheiro como punição, no caso crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, com pena inferior a quatro anos de prisão, de acordo com o artigo 45 do Código Penal. Um instrumento diferente da multa, que pode ser aplicada mesmo com prisão.
Dentre as justificativas elencadas pela PMSC na proposta de adoção das câmeras corporais estavam: qualificar o conjunto probatório de provas, proteger os policiais militares de falsas acusações, aumentar a transparência e fiscalização do uso da força e “mitigar a reação das pessoas em conflito com a lei, pela percepção de que estão sendo filmadas e, consequentemente, reduzir a necessidade de uso da força por parte dos policiais militares”.
O tribunal havia disponibilizado R$ 6,4 milhões, mas a PM utilizou só a metade e devolveu o restante, o que contradiz o despacho deste mês do Estado Maior da corporação de que o TJSC não quis renovar os repasses. “Importante ressaltar que este não é um projeto de responsabilidade da Justiça catarinense”, afirmou, em nota, a assessoria do tribunal.
‘Somente ônus’
Em 2020, com o programa já em funcionamento, houve disputas em relação à gravação automática, já que os policiais acionavam manualmente as câmeras e houve manifestações contrárias, inclusive as que consideravam o equipamento “um empecilho” à atividade policial, como é da opinião do presidente da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB-SC), Victor Malheiros.
“O desconforto frente à novidade é normal”, relatou ele à reportagem. “Diferentemente de muitas outras inovações, com a implementação das câmeras corporais os militares catarinenses não tiveram tempo para vislumbrar os bônus da medida, e tão somente os ônus. Isso porque, logo após a implantação das câmeras corporais, os policiais de Santa Catarina passaram a ser processados criminalmente e administrativamente por não acionamento, por acionamento tardio e por supostos erros procedimentais.”
O promotor Simão Baran Junior, que atua na Promotoria Regional de Segurança Pública de Chapecó (SC) e de outras 13 comarcas do interior do estado, lembra que houve uma atuação mais forte da corregedoria da corporação e da promotoria de Florianópolis, que tem atuação especializada no controle externo da atividade policial. Isso também contribuiu para a resistência de policiais ao programa.
“Usar a câmera fazia parte do protocolo de atuação policial. Então, não usar a câmera poderia sujeitar o policial a responder internamente ali por essa falha e, eventualmente, até um crime”, exemplifica Simão.
Para ele, o programa o auxiliou a analisar melhor as abordagens policiais. “Foi extremamente positivo até para eu entender a dinâmica policial, porque teve um caso bem específico que eu verifiquei com câmera gravando, inclusive, o momento do disparo em que o cidadão avança sobre a polícia, mesmo o policial pedindo para ele não avançar, para entregar a arma”, conta. “As câmeras são bem úteis para fazer o controle das ações e acabam protegendo o bom policial, porque no momento que ele faz uma abordagem com um resultado que tem uma lesão ou tem uma morte e isso está gravado, a gente verifica se adotou os protocolos.”
De acordo com o promotor, a decisão da PM está sob análise na Procuradoria-Geral de Justiça, que deve se reunir com o comando da corporação para tratar do caso. Ainda não há data definida. “É um retrocesso que eu espero que seja revertido em breve”, diz.
O que dizem as autoridades
Em nota à Ponte, a Ditec, empresa responsável pelas câmeras corporais, disse que forneceu os equipamentos em 2019 e fez a “manutenção preventiva e corretiva de 2022 até o final do contrato, em setembro de 2023”, sendo que não possui mais responsabilidade sobre os aparelhos, nem sobre o armazenamento das imagens após esse período.
A assessoria do Ministério Público de Santa Catarina disse que o órgão “segue em avaliação da posição oficial da PMSC, por meio de seus órgãos com atribuição sobre o tema, sem prejuízo da definição de uma posição de natureza institucional tão logo sejam avaliadas todas as informações oficiais sobre a questão.”
A assessoria da PMSC não respondeu à reportagem se houve busca por verbas do governo federal para a manutenção do programa. Em agosto de 2023, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Flavio Dino assinou portaria que facultou aos estados a possibilidade de requisitar recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para projetos de câmeras nas fardas como política para redução de mortes violentas intencionais entre 2023 e 2024.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) da pasta informou que não foi procurada pelo governo nem pela Polícia Militar de Santa Catarina sobre o tema. E enfatizou que “possui um programa próprio que incentiva o uso de câmeras corporais, devido aos comprovados benefícios no aprimoramento e profissionalização da atuação dos órgãos de segurança pública”. Também informou que, desde 2019, “o MJSP já repassou recursos para projetos de câmeras corporais em oito estados: Espírito Santo, Roraima, Rondônia, Acre, Piauí, Pará, Ceará e Paraíba.”
Reportagem atualizada às 15h, de 20/9/2024, para incluir resposta do MPSC.