Apollo Arantes, que é homem trans e Amanda Palha, travesti, atravessaram diversas barreiras até receberem a pequena filha nos braços
O segundo episódio da live “Pluralidades”, série da Ponte sobre gênero e orientação sexual, foi especial, abordando temas como família, gestação e afetos fora do padrão cisheteronormativo. Apollo Arantes, homens trans, deu a luz a Linda Leone há três meses, fruto de seu relacionamento com Amanda Palha, travesti. Os três foram convidados de Caê Vasconcelos nesta quarta-feira (28/10).
Além de mãe da pequena Linda Leone, Amanda é educadora popular e coordenadora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e Participação Popular da Alepe (Assembleia Legislativa de Pernambuco). Já Apollo é integrante do MOVIHT-PE (Movimento Independente de Homens Trans e Transmasculinidades de Pernambuco) e o Movimento LGBT Leões do Norte.
O ponto de partida da conversa foi a chegada de Linda Leone na vida do casal. Eles contaram como planejaram a concepção e a gestação da garotinha. “A gente se admira demais, pensar em educar um bebê juntos, independente de como a gente esteja, parecia ser bom”, relata Apollo. Decididos a terem uma criança juntos, os dois passaram a se preparar e acompanharem os períodos férteis até que, em dezembro, veio a tão esperada notícia: Apollo estava esperando a bebê.
Por conta de hiperêmese, doença que causa vomito e enjoo durante toda a gestão, o “isolamento” deixou Apollo em casa desde janeiro. E, depois disso, a pandemia de Covid-19 passou a afetar efetivamente os planos de parto e o acompanhamento das famílias. “Minha avó, por exemplo, queria muito acompanhar e não conseguiu por conta disso”, disse Apollo, que deu o nome dessa avó à filha. “O que foi tenso foi isso, sair de casa para ir aos hospitais significava lidar com o medo e o risco de exposição”, explica Amanda. E além dessa preocupação com o coronavirus, eles enfretavam a constante busca por um tratamento não transfóbico. “De repente, esta [a luta contra a transfobia durante a gestão] não era mais a única questão”, completa.
Medicina transfóbica
Apollo define o pré-natal como “um processo complexo”, desde a busca de uma obstetra minimamente adequada até a forma com que eram tratados pelos profissionais da saúde. O que, geralmente, é tranquilo para alguns casais tornou a gestação não tão gostosa para Amanda e Apollo, que ainda confessaram que se sentiram solitários por nem poder frequentargrupos de gestantes por gerarem muitos questionamentos ou por não se encaixarem no papel “mãe gestante”.
“É um espaço que você gostaria de ir para compartilhar o momento com pessoas que também estão vivenciando aquilo, mas você chega lá e vai ser o centro das atenções e vai ter que dialogar sobre uma série de coisas que você não quer”, diz Apollo. “Parece bobagem, mas você não quer militar nessa hora”, corrobora Amanda. “Você não quer militar para estar lá, pra convercer aquelas pessoas. Você não quer ter esse desgaste nesse momento. A gente só não participava desses espaços”.
Leia também: Medicina transfóbica: as dificuldades do atendimento ginecológico para pessoas trans com vagina
A médica que os atendeu foi a primeira decepção, pois nem ao menos os tratava pelo gênero que eles se identificavam. “Tudo o que eu sentia, ela encaminhava o debate para dizer que era aborto”, Apollo relata, destacando uma das violências sofridas. “Parecia que era uma coisa que ela queria que acontecesse”.
“O menor problema que a gente tinha era que ela me tratava como pai, no masculino, e Apollo como mãe, no feminino, sabe?”, complementa Amanda. “É a pessoa achar que o fato do Apollo ser um homem trans é irrelevante, que o corpo dele, para todos os efeitos, é o corpo de uma mulher”, pontua.
Ambos pontuaram que a medicina não pesquisa como os hormônios tomados por pessoas trans afetam a gestação. Inclusive, eles apontam que a obstetra seguiu um protocolo para o qual não há evidência, segundo o casal, que era a administração de progesterona, hormônio feminino, intravaginal para evitar aborto espontâneo. “Não existe nenhuma evidência médica de que a progesterona intravaginal tenha esse efeito”, aponta Amanda. Para eles, a progesterona foi o que desencadeou o quadro de hiperêmese.
Afeto em família
Apesar de todas as desventuras passadas, diferentemente do que se espera, as famílias de Apollo e Amanda cercaram a gestação de Linda Leone de amor, ainda que com uma dose de luto: o pai de Amanda morreu em fevereiro, antes de conhecer a neta que levaria seu nome, Leone.
Seus pais foram as primeiras pessoas a saber que Linda estava à caminho. “Ficaram muito felizes”, conta. “Mainha curtiu muito. Com o falecimento do meu pai, ela se mudou aqui para Pernambuco e mora com a gente. Mainha tá muito presente e isso é muito, muito, muito gostoso”.
Leia também: Dois pais, três filhos e muito amor: ‘nossa família existe’
Por conta da pandemia, eles não veem a família de Apollo, mas o contato e o afeto não são menores com a distância. “Minha vó sempre quis que eu tivesse um bebê, sempre me perguntava sobre isso”, Apollo conta sorrindo ao falar da avó cuja pequena xará acompanha a conversa sobre o peito paterno. “Quando ela soube, foi só felicidade. E quando ela soube que ia ter o nome dela. Nossa!”. Ele ainda conta como sua mãe paparica Linda. “Tá sendo bem gostoso isso”.
A conversa ainda falou sobre educação infantil, sonhos para o futuro de Linda Leone, saúde de corpos trans e as lutas diárias das pessoas LGBTQI+. Um papo de mais de quase hora, com participação da pequena Linda Leone no final, que pode ser visto e revisto no canal de YouTube da Ponte.