Famílias comemoravam data em evento na rua que contou com apresentação de MCs em comunidade de São José dos Campos (SP); PMs teriam interrompido festa porque Prefeitura autorizou comemoração, mas não show
As crianças e adolescentes que participavam de uma festa em comemoração ao Dia das Crianças, na tarde de quarta-feira (12/10), voltaram para casa traumatizadas e feridas. A Polícia Militar acabou com o evento usando bombas de gás e balas de borracha contra os moradores de uma comunidade no bairro Campo dos Alemães, em São José dos Campos, na região do Vale do Paraíba, no interior paulista.
De acordo com mães ouvidas pela reportagem, a Prefeitura autorizou a realização da festa e a interdição da Rua Benedicta Turco e da Avenida dos Evangélicos, com duração das 9h às 19h, conforme ofício assinado em 6 de setembro pela diretora do Departamento de Relações Comunitárias, Nazira Madureira, e pelo supervisor da Divisão de Eventos Oficiais, Marcelo Salgado. Não há menção sobre pedido de apoio da PM no local.
Brinquedos para as crianças foram instalados na rua, conforme vídeos do início da celebração. Contudo, os moradores disseram que o governo municipal não permitiu que fosse feita a montagem de um palco para a apresentação do MC Paiva e do DJ GBR, ambos nascidos em São José dos Campos. No dia do evento, a produtora do show divulgou uma nota confirmando a informação.
“A gente ficou pedindo explicação sobre o porquê e o prefeito [Anderson Farias (PSD)] disse que show de MC não é show para criança”, declarou uma mãe que prefere não ser identificada e que estava com os filhos de nove, 10 e 13 anos na festa. “Quando a gente falou para as crianças, as crianças choraram muito porque elas estavam esperando o show, e ligamos para ele [MC] vir”, prosseguiu.
Ela afirmou que no local havia duas viaturas da PM e alguns policiais da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam). “A gente sempre fez esse evento e nunca teve polícia, mas vieram neste ano porque ficaram sabendo que ia ter o show”, disse. “Ou seja, total preconceito.”
“A gente perguntou para os policiais por que não estavam deixando. A gente montou um palco, eles foram lá e desmontaram e alegaram que a Prefeitura mandou prender o palco”, prosseguiu. “Então, a gente perguntou se o MC não poderia vir e cantar na rua porque ele tem o direito de ir e vir. Os policiais falaram que ele poderia, sim, e que só estavam ali para não deixar montar um palco.”
O MC e o DJ foram até a comunidade e se apresentaram, como é possível ver em vídeos divulgados nas redes sociais. “Ele cantou na calçada, subiu no ombro do segurança dele, as crianças ficaram muito felizes, não deu problema nenhum”, conta a mãe.
“O MC cantou umas três músicas, jogou dinheiro para a criançada e terminou o show”, relata Gilsuly Heloisa de Almeida, 37, outra mãe que estava com a filha de nove anos no local. “Acabou o show e a PM veio, jogaram gás de pimenta, bala de borracha e uma das balas pegou no meu braço e no rosto da minha filha”, denuncia.
Alguns vídeos mostram a correria de adultos e crianças, incluindo bebês em carrinho. Pais que correm segurando os filhos pelo braço enquanto o gás percorre o ar. Outros tentam se abrigar em comércios e casas, e crianças aparecem chorando e tossindo. Um adolescente de 14 anos foi baleado nas costas.
“Eu levei ela no pronto-socorro aqui do bairro, porque o rosto inchou, mas graças a Deus não aconteceu nada grave”, diz Gilsuly. “Foi uma cena de horror porque tinha muita criança, a intervenção deles foi muito imprudente, não deveriam ter feito da forma que fizeram, e se a bala pegasse no olho da minha filha? Aquele gás sufoca, arde o olho. Minha filha ficou bastante nervosa, traumatizada, não quer sair na rua por medo, não pode ver polícia porque fica com medo. Teve febre de noite, pesadelo, chorando”, lamenta.
A outra mãe de três crianças aponta que nem ela nem os filhos foram atingidos, mas ambos estão traumatizados com a situação. “Quem deveria proteger fez isso.”
Emidio de Souza (PT), deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), enviou um ofício à Corregedoria da PM cobrando apuração do caso. “Qual razão motivaria expor a integridade física de dezenas de crianças em uma operação ostensiva da PM na periferia de São José dos Campos no feriado da Padroeira do Brasil e no Dia das Crianças? A operação também viola direitos fundamentais da criança e do adolescente”, escreveu.
O que diz a polícia
A Ponte questionou de quem partiu a ordem para a dispersão e uso de armas menos letais, além do motivo da dispersão, bem como a ausência de socorro e se as câmeras nas fardas dos policiais foram analisadas. A assessoria de imprensa da PM não respondeu as perguntas, negou que o evento tenha sido autorizado pela Prefeitura e encaminhou a seguinte nota:
A respeito da ação policial ocorrida quarta-feira (12), na comunidade Campo dos Alemães, em São José dos Campos, a Polícia Militar esclarece que atuou na desobstrução da via ao término de um evento não autorizado pela prefeitura. É oportuno destacar que, durante a ação, algumas pessoas hostilizaram os policiais com arremessos de objetos, havendo, portanto, a necessidade de utilização de meios necessários para dispersar as mais de 500 (quinhentas) pessoas presentes no local e salvaguardar vidas. Por fim, é imprescindível registrar que toda e qualquer ação policial é apurada sob a ótica da legalidade.
O que diz a prefeitura
A reportagem perguntou o motivo de a montagem do palco não ter sido autorizada além do uso da PM para dispersão do evento. Até a publicação, a assessoria não respondeu.