PM da Bahia não pode investigar mortes de civis, decide Justiça

Desembargadores consideraram inconstitucional trecho de norma de 2019 que determina que apenas a PM pode abrir inquérito quando matar; medida só vale para casos após publicação de decisão e não para investigações antigas

Moradores reuniram cartuchos encontrados no local das mortes na Gamboa, em 2022 | Foto: Felipe Iruatã

O Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) decidiu, nesta quinta-feira (23), que a investigação de mortes de civis cometidas por policiais militares não pode ser exclusiva da Polícia Militar, ao considerar inconstitucional parte de uma instrução normativa conjunta da PM, da Polícia Civil e da Secretaria de Segurança Pública.

No acórdão (decisão de um grupo de magistrados), os desembargadores foram unânimes ao seguir o entendimento da relatora Rosita Falcão de Almeida Maia, que descreveu que os cinco artigos do texto “não apenas distorcem o modelo federativo de segurança pública e atribuições investigativas dos órgãos de segurança pública estadual, como praticamente subordinam a atuação da Polícia Civil a situações específicas, enquanto a Polícia Militar mantém o poder de investigar nesses casos de forma ampla e irrestrita”.

Em 2021, a Procuradora-Geral de Justiça do Ministério Público da Bahia (MPBA) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no tribunal questionando justamente esses artigos. Um ano antes, a Associação de Policiais e Bombeiros e de seus Familiares do Estado da Bahia (Aspra-BA) também havia entrado com ação judicial contestando a norma. Os dois processos foram unificados para julgamento.

A atuação do MPBA veio a partir de uma articulação com a Defensoria Pública e entidades da sociedade civil, segundo Wagner Moreira, advogado e coordenador do Ideas Assessoria Popular, organização que busca popularizar o debate sobre direito e segurança pública no Nordeste e que encabeçou uma campanha para que a ADI fosse admitida. “A gente tem uma dificuldade muito grande de fazer com o que o MP cumpra com o seu papel constitucional de controle externo da atividade policial”, afirma.

“Essa norma começou a ser desenhada durante a gestão do secretário Mauricio Barbosa e a alegação da época era para padronizar a produção de dados, estavam com dificuldade de contabilizar os autos de resistência porque tinha dupla verificação. Mas estamos aqui quatro aos depois sem a publicação dos dados dos autos de resistência”, critica, já que a Secretaria de Segurança Pública do estado não divulga dados de letalidade policial, como a Ponte mostrou em reportagem de 2022.

A partir do acompanhamento de casos que não iam para a frente na Corregedoria, o Ideas passou a se mobilizar. “Com a mudança de governo, a gente entendeu que essa campanha, com o caso da Gamboa, tinha os elementos necessários para pautar o julgamento”, aponta.

Gamboa é a Chacina da Gamboa, que completou um ano no começo deste mês. Três amigos, jovens negros, Alexandre dos Santos, 20, Cleverson Guimarães Cruz, 22, e Patrick Souza Sapucaia, 16, foram mortos por policiais militares dentro de um imóvel abandonado na comunidade da Gamboa, no centro de Salvador, na madrugada de terça-feira, 1º de março de 2022. O caso está sob investigação da própria PM.

De acordo com o Correio da Bahia, o Comando da PM rejeitou um parecer da Corregedoria para que fosse aberto um procedimento administrativo disciplinar por ter encontrado irregularidades na atuação dos policiais, que alegaram terem sido recebidos a tiros. Uma delas é de que as armas atribuídas aos jovens estavam com defeito. Além disso, a Corregedoria apontou indícios de execução na morte de Cleverson, como revelou o Alma Preta.

“É uma ferida crônica, que não tem cirurgia que cura”, lamenta Silvana dos Santos, 42, mãe de Alexandre. “Eu estou desempregada, tentando sobreviver porque ainda tenho meus outros filhos, mas é difícil. Tem vezes que eu passo uma semana sem comer nada, passa um monte de pensamento ruim na cabeça”, desabafa.

Ela ainda aponta desamparo e falta de respostas. “Quando aconteceu, todo mundo me ligava, agora não aparece mais ninguém. Eu vou até o final, se Jesus me permitir, porque eu não tenho medo, mas se eu for sozinha eu não consigo.”

Contudo, os desembargadores acolheram o pedido da Procuradoria para que a decisão não pudesse retroagir, ou seja, só é válida para ocorrências após a publicação do acórdão e não para investigações que se deram antes sob a justificativa de causar “insegurança jurídica”. Esse ponto afeta, por exemplo, o caso da Gamboa.

“Uma fase da campanha agora é como fazer para se estender para casos passados, porque essa decisão vale para agora, mas vamos aproveitar esse contexto para demonstrar que alguns casos atrás estão em aberto por causa dos furos deixados por essa instrução normativa”, afirma Wagner Moreira.

O que diz a norma

A Instrução Normativa nº 01/2019 estabelece como as polícias vão atuar quando a PM se envolver em casos de crimes violentos letais intencionais (CVLI). Dentre as regras apontadas como inconstitucionais está a definição de que esses crimes são “homicídio doloso, o roubo qualificado pelo resultado morte ou a lesão corporal dolosa seguida de morte” e que, se ocorrerem em serviço, incluindo o homicídio culposo, apenas cabe à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros investigar esses casos.

O texto ainda definiu que a Polícia Civil só poderia abrir um inquérito de homicídio doloso se houvesse requisição do Ministério Público (MPBA) ou determinação do Secretário da Segurança Pública e/ou do Delegado-Geral da Polícia Civil, e caso uma das hipóteses fosse “apenas acusações genéricas de que a morte do civil foi de autoria de militar estadual, sem que haja prisão em flagrante ou indícios preliminares de autoria que recaiam sobre militar estadual”.

Além disso, o artigo 18 da norma descrevia que, se o PM que se envolver em morte durante “confronto”, comunicar “espontaneamente” o fato em serviço e “cumprir todas as diligências previstas como de sua alçada”, a conduta vai ser considerada “justificada, salvo prova em contrário, a critério da autoridade que estiver responsável por presidir o inquérito policial civil ou militar”. Ou seja, a presunção é que a ação foi legítima.

Outro artigo caracteriza como confronto “a situação em que o militar estadual em serviço seja alvo de ato hostil, especialmente mediante disparo de arma de fogo”. A Ponte sublinhou abaixo, em amarelo, esses artigos determinados como inconstitucionais pela turma julgadora do TJBA.

Um dos principais argumentos da procuradora Wanda Valbiraci Caldas Figueiredo contra o documento é de que a instrução normativa estava tentando se sobrepor à Constituição Federal, de que os crimes dolosos contra a vida são de competência do Tribunal do Júri, ou seja, um tribunal civil, e que a jurisprudência mantém esse entendimento mesmo se o autor do homicídio for militar.

Também apontou que a corporação não pode atribuir para si uma competência da União, como a lei federal de 2017 que autorizou a Justiça Militar a julgar casos de mortes de civis praticadas pelas Forças Armadas — cuja constitucionalidade está em discussão no STF —, nem criar um novo tipo de conceito penal como “roubo qualificado pelo resultado morte”, que é de ordem legislativa.

A Defensoria Pública também havia solicitado a revogação dos artigos dessa norma há exatamente um ano, quando entregou à Secretaria da Segurança Pública e ao então governador Rui Costa 13 propostas de redução da letalidade policial. Dentre elas, estão a implementação de câmeras nas fardas da PM, promessa que foi feita pelo sucessor Jerônimo Rodrigues (PT), e maior transparência dos dados.

“Pensar uma política de segurança pública para a Bahia hoje, materializada e conseguir compreender, isso não existe”, critica Wagner Moreira, do Ideas. “A gente está falando de desaparecimento de dados, a gente está num contexto em que esse novo governo conseguiu ainda assim ocultar mais dados do que estavam demonstrados no governo Rui Costa. A Secretaria de Segurança Pública soltava um boletim de dados diário e, infelizmente, parou de publicar esses boletins”, denuncia.

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A Ponte abriu o site da pasta e verificou que a aba de “boletim diário” na parte de estatísticas direciona para uma página em branco com um aviso de “a conexão com o banco de dados que a sua aplicação usa não foi localizada”. Também não há dados de 2023.

Para Moreira, contudo, ainda é preciso observar como a nova gestão vai atuar, mas sinaliza como positivo o antigo corregedor-geral da pasta, Nelson Gaspar, ter se tornado chefe de gabinete. “É uma das poucas pessoas republicanas pensando segurança pública dentro do governo. O fato de ele estar como chefe de gabinete abre a possibilidade de diálogos. Por exemplo, foi ele que deu um parecer fora da curva em relação à chacina da Gamboa, foi ele que disse que tinha indícios de execução, então é alguém que minimamente se expunha e comprava brigas”, afirma.

O que diz a polícia

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar sobre a instrução normativa, as medidas propostas pela Defensoria Pública, a investigação da Chacina da Gamboa, a implantação de câmeras nas fardas, a publicação do boletim diário e se existe plano de redução para a letalidade policial.

A assessoria da PM disse que a resposta ficaria a cargo da secretaria.

Já a pasta informou, sobre as câmeras, que “todos os trâmites legais para aquisição de equipamentos, com a utilização de verba pública, estão sendo obedecidos” e que o processo vai passar pelas Secretarias de Administração e da Fazenda, além da Procuradoria Geral do Estado, antes da publicação da licitação. “Por fim, a SSP destaca que as equipes estão trabalhando para finalizar todo o rito, permitindo, que ainda em 2023, as forças de segurança utilizem o equipamento, que dará mais transparência à atividade policial e de bombeiro”, declarou. Sobre as demais questões, não respondeu até a publicação.

O que diz o MPBA

A reportagem solicitou entrevista com a procuradora sobre a instrução normativa e questionou sobre as investigações da Chacina da Gamboa e aguarda retorno.

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