Soldado Tiago Apolinário foi filmado disparando contra homem em frente a bar em São Sebastião, no litoral paulista, em 2022; vítima teria ficado parcialmente tetraplégica e policial será levado a júri popular por tentativa de homicídio
O Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP) expulsou da corporação, nesta quinta-feira (15/2), dois policiais que se envolveram em uma briga que acabou deixando o autônomo Gilberto Oliveira da Silva, 43, parcialmente tetraplégico após ser baleado em São Sebastião, no litoral, em 2022. A decisão foi publicada no Diário Oficial.
A PM entendeu que os soldados Tiago Apolinário Gomes Filho e Leonardo Zambelle praticaram “atos atentatórios à Instituição, ao Estado, aos direitos humanos fundamentais e desonrosos”. Tiago por “disparar arma por imprudência, negligência, imperícia, ou desnecessariamente” e “não obedecer às regras básicas de segurança ou não ter cautela na guarda de arma própria ou sob sua responsabilidade”, que são consideradas transgressões disciplinares graves no Regimento Disciplinar da corporação. Já Leonardo, por omissão.
Uma câmera de segurança mostrou o momento do disparo na briga em 27 de janeiro de 2022. Durante a confusão, que envolve ao menos sete pessoas, uma mulher tenta separar a briga, mas não consegue. Gilberto, que usa uma camiseta rosada, aparece nas imagens trocando socos com os policiais durante a maior parte do vídeo.
Em dado momento, Gilberto é encurralado contra a parede e tira a camisa que já estava rasgada em sua maior parte. É neste momento que Tiago Apolinário, que está sem camisa, retira uma arma de dentro da bermuda e desfere um disparo. Vendo Gilberto no chão, Leonardo, que também recebeu socos e está de camiseta azul, dá-lhe um chute. Na imagem, não é possível ver onde o golpe atinge a vítima.
Como a Ponte revelou, uma discussão por causa de uma carona teria iniciado a briga em frente a um bar no bairro São Francisco. Um vigilante, amigo de Gilberto, também acabou ferido de raspão no ombro por um estilhaço do tiro. Os PMs foram presos na ocasião, mas soltos oito meses depois.
O vigilante contou à Polícia Civil e em juízo que estava com Gilberto e seu irmão numa mesa de bar enquanto em outra estavam Tiago, Leonardo e outras três pessoas, que também eram policiais de folga. Ao saírem do bar, disse que, por não possuírem condução própria, foram à mesa ao lado perguntar se poderiam oferecer uma carona até o centro da cidade. Um dos ocupantes da mesa, segundo ele, teria dito que o valor seria de R$ 20 para levá-los. Gilberto teria se aproximado e, de acordo com o vigilante, de repente Tiago deu um tapa no rosto dele e começou uma briga.
O vigilante relatou que tentou separar a briga, mas não conseguiu, ouviu um estampido e viu Gilberto cair no chão. Afirmou que saiu correndo e só percebeu em casa que “havia sangue saindo de seu ombro direito, e que havia um buraco em sua pele”.
Já Tiago nega que tenha dado um tapa em Gilberto. Ele afirma que, ao negar a carona, teria sido chamado de “policial de merda folgado” e de outros xingamentos pela vítima, embora não tenha se identificado como policial no local, e que foi agredido por outras três pessoas quando deu voz de prisão. Ele disse que “pegou sua arma e apontou para o Gilberto com a intenção de se defender e com medo de ser morto com sua própria arma, sem a intenção de acertar” o vigilante, pois pensou que Gilberto iria pegar sua pistola, que era de propriedade da PM.
Leandro, por sua vez, declarou que tentou apartar a briga, mas acabou agredido. Quando viu o colega sacar a arma, afirma que pensou que ele se identificaria como policial. De repente, ouviu o tiro. Em seguida, Gilberto teria caído segurando a perna de outro policial que estava com eles e, por isso, deu um chute no ombro dele para que soltasse. Depois, acionaram o resgate.
Em outubro de 2023, a juíza Glaucia Fernandes Paiva, do Foro de São Sebastião, acatou os pedidos do Ministério Público e determinou que Tiago seja levado a júri popular por tentativa de homicídio qualificado com os agravantes de motivo fútil e por recurso que dificultou a defesa da vítima por entender que existem indícios suficientes do crime, especialmente no vídeo.
Já no caso de Leonardo, ele foi impronunciado, o que significa que não será levado a júri. Isso significa que a acusação contra ele será arquivada se não houver recurso. Tanto o promotor Felipe Bragantini de Lima quanto a magistrada entenderam que não existiam provas de que ele contribuiu para a tentativa de homicídio pois os laudos periciais nas vítimas não indicaram outras lesões além das provocadas pelo disparo feito por Tiago. E, no vídeo, não há indicação se o chute que o agora ex-soldado deu de fato atingiu Gilberto, embora o próprio tenha admitido ter chutado a vítima.
Ainda em 2022, os advogados de Gilberto entraram com uma ação judicial com pedido de indenização por danos morais e pensão mensal vitalícia contra o Estado e contra os policiais. Na petição, à qual a Ponte teve acesso, eles afirmam que o autônomo teve “sequelas irreversíveis” que o deixaram “sem mobilidade dos membros superior e inferior do lado esquerdo do corpo”.
Por isso, ele está internado em uma instituição beneficente na cidade de Campos Gerais, em Minas Gerais, “pois depende de acompanhamento diário de equipe multidisciplinar e de tratamento constante, além de estar impossibilitado de executar as tarefas mais simples do dia a dia, como alimentar-se, vestir-se, tomar um banho, cuidar de sua higiene pessoal”.
Segundo os defensores Alexandre Mori da Mata e Deivison Resende Monteiro, os custos do tratamento estão “além da capacidade da instituição”, recaindo sobre familiares que não têm condições de arcar com as despesas e que o governo federal ainda não avaliou um pedido do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é voltado a pessoas com deficiência que não conseguem se sustentar sozinhas.
No processo que a reportagem acessou, há laudos da época da internação, em 2022, indicando a lesão grave de traumatismo craniano, mas não constam documentos sobre a tetraplegia. A Ponte tentou contatar os advogados de Gilberto, mas não teve retorno até a publicação.
Em junho do ano passado, o juiz Vitor Hugo Aquino de Oliveira, da 1ª Vara Cível de São Sebastião, suspendeu o processo até a conclusão do processo criminal pelo qual os agora ex-PMs estão respondendo por entender que o resultado pode influenciar na avaliação do pedido.
O vigilante, amigo de Gilberto, também entrou com uma ação judicial solicitando indenização ao Estado e aos ex-policiais. No caso dele, o magistrado determinou o agendamento de perícia no Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Imesc) para verificar se a lesão dele foi decorrente de disparo de arma de fogo e se causou incapacitação, o que ainda não aconteceu.
O que dizem as defesas
À reportagem, o advogado Mauro Ribas, que representou Leonardo Zambelle no processo criminal e no procedimento disciplinar da PM, entende que a expulsão foi “injusta” e que vai recorrer. “No processo-crime, que versa sobre os mesmos fatos que versava o processo administrativo, ele foi impronunciado. Isso é mais que ser absolvido, quer dizer que o juiz entendeu ele não tinha requisitos mínimos para ser submetido ao Tribunal do Júri, seja em questão de autoria ou de materialidade. Como o processo da PM versava sobre os mesmos fatos, a gente entende que a Polícia Militar divergiu do entendimento da Justiça”, disse.
A advogada Benize Cioffi, que representa Leonardo no processo cível, escreveu na contestação dos autos que ele não teve como evitar o disparo contra Gilberto pois “não tinha conhecimento de que o sr. Tiago estava armado” e que só tentou apartar briga. Redigiu também que Leonardo acionou o resgate e que Gilberto só estava vivo por isso.
A Ponte não conseguiu contatar o advogado Bruno Salla Rodrigues, que aparece como defensor no procedimento administrativo contra Tiago, nem com os advogados Nilton de Souza Vivan Nunes e Diana Sousa Ferreira, que o representam no processo criminal e que estão recorrendo da sentença de pronúncia. Diana também o representa no âmbito cível junto com o advogado Roberto Gilberti Stringheta, de quem também não conseguimos contato.
Na contestação do pedido de indenização, Stringheta alegou que Tiago atuou em legítima defesa contra Gilberto, que “estava descontrolado” e tinha usado drogas. “O Requerido [Tiago] efetuou apenas um disparo, não mirando na cabeça, mas na silhueta do agressor, e visava apenas conte-lo. O Requerido não perdeu o controle, apenas aplicou resposta necessária, a injusta agressão que sofria, e exatamente da forma que foi instruído nos quatro da Polícia Militar do Estado de São Paulo para situações idênticas”, argumentou.