PM descumpre lei e esconde informações

    Quem tenta usar a Lei de Acesso à Informação para obter dados da Polícia Militar encontra respostas que não dizem nada, documentos classificados como sigilosos por 15 anos e até tentativas de intimidação.
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    Arte: Junião

    Que segredos medonhos se escondem no regimento interno do Corpo Musical da Polícia Militar? Provavelmente nenhum. Mesmo assim, o regimento que disciplina o trabalho das orquestras e jazz bands da corporação faz parte da longa lista de documentos classificados como sigilosos, e que devem ser mantidos longe dos olhos do público.

    “Publicidade como preceito geral e sigilo como exceção” é o que determina a Lei de Acesso à Informação, sancionada em 2011. A PM paulista, contudo, segue o caminho oposto. O segredo parece ser a regra adotada pela corporação, seja para documentos inofensivos, como o regimento do corpo musical, seja para informações capazes de afetar a vida e a morte das pessoas – caso das normas que disciplinam o uso de balas de borracha, as regras para a filmagem de cidadãos por parte dos policiais ou o nome de oficiais responsáveis por ações truculentas.

    ONGs, jornalistas e advogados que tentaram usar a Lei de Acesso à Informação para a Polícia Militar ou para a própria Secretaria da Segurança Pública (SSP), responsável pela PM, contam que se viram diante de uma corrida de obstáculos, feita de respostas que não dizem nada, documentos classificados como sigilosos sem qualquer justificativa, prazos ignorados e até tentativas de intimidação.

    Lero-lero e intimidação

    “A Secretaria da Segurança Pública acredita que não tem a obrigação de seguir a Lei de Acesso à Informação”, afirma a advogada Camila Marques, da ONG Artigo 19, que atua em mais de 30 países na defesa da liberdade de expressão e informação. Há mais de um ano, a ONG tenta fazer com que a PM responda a uma pergunta simples: como a corporação regulamenta a captação e utilização de filmagens feitas pelos policiais em manifestações públicas? O questionamento foi feito pela primeira vez em outubro de 2013 e não foi respondido até agora, mesmo depois de recursos e apelações.

    “A PM reproduz com relação à liberação de informações o mesmo caráter intimidatório que manifesta na relação com a sociedade”

    Em uma das primeiras respostas da corporação, assinada pelo tenente-coronel Roberto Oliveira Campos, o que faltava em informação sobrava em intimidação. Embora a ONG tivesse se identificado no pedido, o coronel a chamou de “solicitante anônimo” e a acusou de “violar o contexto de da legislação de transparência e de informação livre no Brasil”, além de fazer menção aos financiadores da Artigo 19. Quanto à pergunta, o coronel se limitou a dar uma resposta vaga, dizendo que o uso de filmagens pela corporação estava amparada “na Constituição que implementou a democracia em nosso querido Brasil”.

    O tom de caserna usado na resposta surpreendeu os ativistas. “As respostas dos policiais têm um padrão diferente de outros órgãos, mesmo os que não têm um comportamento exemplar em relação à LAI. Tentam impor medo ao cidadão”, afirma Camila. Para ela, “a PM reproduz com relação à liberação de informações o mesmo caráter intimidatório que manifesta na relação com a sociedade”.

    A Artigo 19 recorreu, então, à Corregedoria Geral da Administração, que reconheceu o jogo de lero-lero da PM, deixando claro que “o questionamento não foi respondido”. Atendendo à Corregedoria, a PM finalmente respondeu: “a captação de imagens e áudios da PM está regulamentada através da Diretriz nº PM3-001/02/11 – Sistema ‘Olho da Águia’”. E mais nada: o conteúdo dessa diretriz continua a ser um mistério. Mesmo assim, a Corregedoria aceitou a resposta enviada pela PM. “A demanda foi atendida, tanto que o próprio solicitante não apresentou nova manifestação”, afirmou a assessoria de imprensa da Corregedoria, procurada pela Ponte.

    Risco para o Estado

    No ano passado, a Ponte tentou obter, via Lei de Acesso à Informação, o conteúdo das normas que dizem como a PM deve proceder em reintegrações de posse e no uso de balas de borracha. Adivinhe? Os dois pedidos foram negados.

    A PM alegou que as normas fazem parte de uma “tabela de sigilo” da corporação, prevista na portaria PM6-003/30/13, de 10 de dezembro de 2012, assinada pelo comandante geral da PM. Segundo a portaria, os dois documentos são classificados como “secretos”, ou seja, têm sigilo garantido por 15 anos. É na mesma tabela que aparece o regimento do corpo musical da corporação, descrito como um “documento reservado”, com sigilo de 5 anos. (Nada disso impediu que a Ponte divulgasse mesmo assim os documentos, obtidos de forma não oficial.)

    Questionada pela Ponte sobre o porquê de tanto segredo, a PM afirma seguir o Decreto Estadual 58.052, de 2012, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação. “Traz ainda, no artigo 30 da referida norma, que são considerados imprescindíveis à segurança da Sociedade ou do Estado, e, passíveis de classificação de sigilo os documentos e informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: III – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; (…) VII – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; (…) VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”, afirma a nota da PM.

    A PM está “tão enraizada na cultura do sigilo” que “parece ainda não compreender que o acesso à informação é de interesse público”

    O que será que existe no regimento do corpo musical ou nas regras para uso de bala de borracha capaz de ameaçar vidas ou comprometer investigações? A Ponte fez essa pergunta às assessorias de imprensa da PM e da Secretaria da Segurança Pública. Ninguém respondeu.

    Cultura do sigilo

    Para o advogado Flavio Siqueira Júnior, da ONG de direitos humanos Conectas, o argumento de “risco para a segurança do Estado e da sociedade” é usado de modo indiscriminado pelas autoridades para censurar informações. “Não se pode conferir aos órgãos e entidades públicas esse cheque em branco pelo qual bastaria alegar genericamente a ‘proteção a segurança” para descumprir a Lei de Acesso à Informação”, afirma. Segundo Flávio, a PM está “tão enraizada na cultura do sigilo” que “parece ainda não compreender que o acesso à informação é de interesse público”.

    A Conectas também tem sua história para contar sobre portas fechadas na hora de obter do governo estadual informações sobre segurança pública que deveriam ser públicas. Desde junho de 2013, a Conectas espera resposta para uma solicitação, feita em parceria com o Instituto Sou da Paz, em que as duas ONGs perguntavam de quem partiu a ordem para as ações de repressão contra manifestantes realizadas na noite de 13 de junho, além de solicitar “os procedimentos de operação padrão que regulam a ação da PM em protestos, os relatórios da operação de 13 de junho, o plano de operação da PM e a cópia integral dos inquéritos instaurados contra os policiais militares que cometeram abusos naquela noite”.

    Tantas perguntas, tão poucas respostas. Até agora, segundo Flavio, tudo o que conseguiram da PM e da Segurança Pública foi o efetivo policial usado naquela noite (500 homens) e o número de dois inquéritos instaurados contra policiais suspeitos de truculência. “Não sabemos quantos policias, quem são e o que fizeram, especificamente, para estarem sendo investigados nesses instrumentos, uma vez que a resposta da SSP veio incompleta”, afirma o advogado.

    Eles conseguiram uma decisão favorável da Corregedoria Geral, mas nem isso resolveu. “A decisão foi sumariamente ignorada pela SSP e pela PM, que até hoje não apresentaram por completo nenhuma das informações claramente solicitadas”, resume.

    Perguntas não respondidas

    Para terminar, a Ponte lista a seguir as perguntas que enviou para as assessorias de imprensa da Polícia Militar e da Secretaria da Segurança Pública. Precisa dizer que nenhuma foi respondida?

    1. A alegação do comando geral da PM para proibir o acesso do público a determinados documentos se baseia no artigo 30 do Decreto Estadual 58.052, de 16/05/2012. Certos documentos devem ser sigilosos porque podem “III – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; … VII – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; … VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações”.
    Minha pergunta é: especificamente no caso das normas que regulamentam o uso de balas de borracha e as reintegrações de posse, como sua divulgação pode colocar em risco a segurança de instituições e a vida da população ou comprometer investigações?

    2. A tabela de sigilo da PM ainda é definida pela Portaria PM6/3/30/13, ou há norma mais recente?

    3. A Portaria PM6/3/30/13 prevê sigilo de 5 anos para o Regimento Interno do Corpo Musical da Polícia Militar. Por quê?

    4. Quantos documentos da PM são classificados como reservados, secretos e ultrassecretos?

    Para todas as perguntas, veio uma breve resposta, enviada pela PM: “Solicitamos que esse pedido seja remetido ao Serviço de Informação ao Cidadão”. A Segurança Pública, nem isso.

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