PM do RJ cria norma de uso de redes sociais, após reportagem premiada da Ponte

Secretaria da Polícia Militar editou regras atendendo a recomendação de MPF e Defensoria, depois que Ponte denunciou policiais que confessavam crimes em podcasts; para especialista, iniciativa é importante, mas deixa lacunas

PMs confessam crimes em videocasts: Danilo Rosa, Henrique Brito, Thiago Raça, Miquéis Arcênio, Wagner Almeida
PMs confessam crimes em videocasts; da esquerda para a direita, de cima para baixo: André da Silva Rosa, Henrique Brito, Thiago Raça, Miquéis Arcênio, Wagner Almeida | Imagens: reprodução

A Secretaria de Polícia Militar do Rio de Janeiro criou uma instrução normativa que regula uso de redes sociais e aplicativos de mensagens pela corporação após reportagem da Ponte que mostrou, em abril, que policiais e ex-policiais confessaram crimes em podcasts e videocasts.

A reportagem, assinada por Fábio Canatta, ficou em segundo lugar na categoria Reportagem da 40ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, anunciado na semana passada.

As normas para uso das redes sociais foram criadas pela PM em outubro deste ano, como mostrou o jornal O Globo. A iniciativa aconteceu após a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) terem feito uma recomendação para que a PMERJ regulamentasse o uso dessas plataformas, com base na reportagem da Ponte.

No documento, que data de julho, o procurador Julio José Araujo Junior e o defensor público Thales Arcoverde Treiger consideraram que “em diversos canais do YouTube, há policiais exaltando uma cultura de violência e ódio por meio da rede mundial de computadores, ensejando a incitação de crimes, violação da presunção da inocência e violação do devido processo legal” e que “é necessário prevenir o uso abusivo da liberdade de expressão por policiais e ex-policiais e prática de crimes de natureza federal”.

Os órgãos pontuaram como exemplo uma diretriz da PM paulista, de 2021, sobre o tema. Outra reportagem da Ponte, porém, já tinha mostrado que as regras não foram levadas a sério pelos policiais de São Paulo, que seguem fazendo o que querem nas redes sociais sem que nada aconteça.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro tomou a frente da investigação do caso, pois alguns policiais denunciados pela Ponte são do estado. Um dos exemplos é de um videocast em que o sargento Henrique Brito, do Batalhão de Operações Especiais (Bope), conta sobre o dia em que reagiu a uma provocação e agrediu uma criança e uma mulher grávida no conjunto de favelas do Pavão-Pavãozinho, na zona sul da capital fluminense. “A grávida voltou, eu peguei, enrolei pelo cabelo e ‘pá!’ (bate com uma mão na outra, como se mostrasse um tapa na cara), tomou! Voou longe (risos no estúdio)!”, descreve o PM Henrique Brito. Em seguida, ele disse que foi obrigado a pagar algumas cestas básicas para as vítimas.

Em outro programa, o fuzileiro naval e sargento do Bope Wagner Luís de Almeida, conhecido como “Cachorro Loco”, falou de uma operação no morro do Cruzeiro no Rio: “quanto mais tiro eu dava, mais eu ficava: mais! Mais! Mais!”. Na conversa, ele também justifica a fama de “Cachorro Loco” ao contar outro episódio do início da carreira: “joguei três ou quatro (criminosos) para o alto. Pô, ocorrência maneira para car#lho!”. A entrevista ao podcast Fala Glauber, apresentado pelo policial penal Glauber Mendonça, tem sete horas de duração. Wagner foi o único a atender pedido de entrevista da Ponte e negou que exaltava a violência.

A reportagem teve acesso ao boletim interno que traz a instrução normativa de nº 234, de 9 de outubro de 2023. Segundo o texto, ela se aplica ao uso de contas pessoais e da corporação por policiais militares que sejam da ativa, dos veteranos (que são os aposentados), dos funcionários e prestadores de serviço da Secretaria da PMERJ, mesmo não sendo policiais, estando em serviço ou de folga.

Em anexo, o Regulamento de Mídias Sociais e Aplicativos de Mensagem divide as diretrizes entre as publicações nas contas oficiais da PMERJ no Facebook, Instagram, Twitter (atual X) e YouTube, até a página 34, e em diante sobre perfis pessoais. Não há menção de outras redes sociais, como o Tik Tok, por exemplo.

Sobre a parte de perfis pessoais, a pasta determina:

  • É proibida a “vinculação de conteúdos que se relacionem direta ou indiretamente com a Polícia Militar”;
  • É proibido “usar o brasão da corporação ou a logomarca institucional em perfis pessoais ou de grupos”, como “nomes, siglas de unidades, insígnias, símbolos, funções e cargos”. Isso significa que o policial não pode usar nome de usuário como “sargento Fulano” nos perfis, por exemplo.
  • É proibido fazer menção “às normas operacionais, instruções, operações, dados estratégicos, ocorrências ou qualquer conteúdo que ofereça quebra de sigilo profissional ou fira o pundonor [honra, decoro]”;
  • É proibida “a exposição do interior das instalações, viaturas e equipamentos necessários ao serviço policial”. Só é permitido fazer transmissão ao vivo nesses locais com autorização prévia do Comando da unidade e da Coordenadoria de Comunicação Social;
  • Não é permitido propagar “notícias com conteúdos duvidosos que venham a ferir a integridade e a moral de qualquer pessoa ou Instituição”;
  • Não é permitido publicar, curtir, comentar ou compartilhar “postagens polêmicas que possam fomentar a desordem social ou ainda gerar ofensas à Corporação ou a outras Instituições”;
  • É proibido criticar a corporação ou seus integrantes nas redes sociais;
  • É proibido publicar imagens portando armamento ou outros equipamentos da PM nem conteúdos “técnicos e sigilosos”, como documentos classificados como restritos, dados do SISPES (que é o sistema interno da PMERJ), boletim de ocorrência, áreas sensíveis das Organizações Policiais Militares (OPM), como onde se guarda material bélico;
  • É proibido monetizar perfis e canais nas redes sociais estando fardado ou se apresentando como policial militar, além de realizar “anúncios de cursinhos, lojas e demais atividades comerciais”. É proibido também comercializar qualquer produto ou serviço;
  • É vetada a participação em programas de canais de comunicação, independentemente do formato, como telejornais, reality show, programas de entrevista, programas de concursos, documentários, minisséries, séries e podcasts sem autorização prévia do Comando da unidade e da Coordenadoria de Comunicação Social;
  • É permitido falar sobre polícia, mas não em nome da corporação.

À Ponte, o antropólogo, pesquisador Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM fluminense, , avalia que a iniciativa preencheu uma lacuna. “Já era tempo porque com todas essas mudanças que ocorrem na sociedade, evidentemente a polícia está inserida nela e é preciso atualizar. Infelizmente teve que vir do Ministério Público para chamar a atenção para algo que é de mérito administrativo, mérito da própria polícia. Mas o Ministério Público também, como um agente de fiscalização, como órgão de fiscalização da atividade policial, fez o seu papel”, afirma.

Robson avalia como positivos os trechos que tratam da monetização de perfis e canais, a divulgação de armamento e objetos da corporação. “Isso é uma forma de desvio de função e até de corrupção, porque você está usando meios que são públicos para auferir lucros pessoais. Então, nesse caso, acerta a instrução normativa”, diz.

Contudo, o pesquisador entende que a corporação investiu mais em regulamentar a comunicação oficial das redes sociais da corporação do que o uso dos perfis pessoais, que é o objeto de recomendação do MPF e da DPU.

“Essa instrução normativa da PM fala de uma forma genérica para tudo, coloca tudo no mesmo saco, como se tudo fosse passível de sanção administrativa, e inclusive extrapola quando coloca como todos os públicos passíveis de sofrer essa sanção os policiais que eles chamam de veteranos, que são policiais que não estão na ativa”, afirma.

À risca, o texto enquadraria o próprio Robson como autor de uma infração disciplinar ao me conceder esta entrevista, , por exemplo. “Evidentemente, quem está na ativa caso se submeta à participação em programas, telejornais, entrevistas e tudo mais, precisa fazer um pedido a esse órgão da Secretaria de Polícia Militar. O da inatividade, não, que é o meu caso. Eu não tenho que ficar perguntando e pedindo [autorização]. E eu sei muito bem. Sou consciente que, se eu extrapolar o meu direito à livre expressão, eu vou responder penalmente. Agora, disciplinarmente, não. É um abuso de poder administrativo querer colocar isso para os policiais inativos, no meu entendimento”, explica.

Isso porque a Lei 7.524/1986 estabeleceu que militares inativos podem “opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público”. O texto trata expressamente das Forças Armadas, mas como as PMs são forças auxiliares do Exército, o entendimento acabou sendo adotado nos estados.

Robson também contesta a previsão de que os policiais não podem criticar a corporação, apenas veicular conteúdo “positivo” e não interagir com postagens que “possam fomentar a desordem social” por serem conceitos “ambíguos”. “Se eu postar uma coisa mesmo que seja mentirosa, mas que exalte um aspecto que achem que seja positivo, para a corporação é válido? Agora, se eu publiquei alguma coisa que é fato, eu ou qualquer integrante da corporação no seu perfil pessoal, pegar uma reportagem que mostrou ali um fato e isso vai ferir essa imagem positiva, então quer dizer que o policial está incorrendo numa transgressão?”, questiona.

“Eu estou na reserva, com outra profissão, então como pesquisador eu tenho que me valer da ciência, das evidências. Eu vou apresentar algum trabalho e tenho que perguntar para a corporação se eu posso falar, porque isso aqui tem uma crítica, ofende a imagem positiva da corporação? Pelo amor de Deus, isso é incabível. Qualquer tribunal vai ver que isso é um absurdo”, exemplifica.

Ajude a Ponte!

Robson aponta que poderiam ter sido sido reforçado como as postagens podem promover violação a grupos sociais marginalizados e de discutir estruturalmente formas de discriminação. “A preocupação maior é defender a imagem positiva da corporação. Ora, a preocupação nossa de sociedade, do Ministério Público, como ficou muito evidente no comunicado que eles mandaram para a Polícia Militar, é com as ofensas que os integrantes da corporação tem praticado contra a população, contra grupos, contra minorias, reproduzindo ódio, reproduzindo alguns crimes”, pontua. “Nesse sentido, perdeu-se uma oportunidade de ser mais claro, mais objetivo, de enriquecer com exemplos, com fatos, com evidências, como as reportagens mostram”.

“A preocupação de toda instituição pública é a sociedade, é para quem se destinam os serviços dessa instituição. Então, uma instituição pública, como é o caso da Polícia Militar, só existe em função da sociedade e é a ela que tem que servir”, conclui.

O que diz a Polícia Militar do Rio de Janeiro

A Ponte procurou a pasta sobre a normativa, mas a assessoria não respondeu.

O que diz o Ministério Público Federal

A assessoria respondeu que o órgão está analisando a instrução normativa e que continua investigando a atuação dos PMs denunciados pela reportagem.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox