Ação aconteceu em agosto do ano passado em ocupação na Av São João; apesar de vídeo bloqueado, áudio do equipamento mostra policiais sendo racistas e ameaçando apreender crianças
Sem mandado de busca, policiais militares invadiram um edifício na Avenida São João, no centro da capital paulista, e levaram preso Cristovam de Almeida sob a justificativa de tráfico de drogas. Durante a abordagem, proferiram xingamentos racistas, chamando-o de “negão”. A invasão pela PM aconteceu às 17h58 do dia 31 de agosto de 2022, quando o sargento Rafael Henrique dos Santos e o cabo Eduardo de Souza Luiz passaram em frente a um prédio ocupado por famílias de baixa renda.
Câmeras operacionais portáteis (COP) utilizadas pela corporação registraram o início da abordagem. Nas imagens anexadas ao processo contra Cristovam, é possível ver um dos policiais perguntando “Quer ir?”, em referência ao local que chamam de “pensão”, e então o condutor estaciona a viatura. Logo antes de os PMs subirem as escadas, o sargento Santos esconde a COP no bolso. Frases como “vai entrar sem câmera?” são captadas. Outros policiais, incluindo o sargento Alexsander de Almeida Gobbi, juntam-se à operação.
A cena se transforma num grande borrão, mas a gravação de áudio registra o choro de Felipe, afilhado de Cristovam, e as ofensas proferidas contra ele e sua comadre, Kelly. Pertence a ela o apartamento no segundo andar onde os policiais relatam ter encontrado porções de crack, cocaína, maconha e lança perfume. O boletim de ocorrência aponta que, no terceiro andar, também foram apreendidos entorpecentes, além de um simulacro (reprodução de brinquedo) de arma de fogo que estava no quarto de outro morador.
Em depoimento colhido para o BO, o sargento Gobbi afirma que “no canto do andar, havia uma divisória com o quarto do [outro morador]. Havia, debaixo do colchão, um simulacro. Havia, num local do salão, um ‘box’ que parecia ser destinado à venda. Diante disso, conduziram o [outro morador] também à delegacia.” Chegando lá, ele foi liberado na condição de testemunha. Um trecho do documento, que foi assinado pelo delegado Denis Fernando Balsamo, cita que “embora o [outro morador] estivesse no terceiro andar, andando pelo local, as drogas não foram encontradas dentro de seu quarto, e, por isso, no momento, não há certeza necessária ao flagrante”.
O processo, como um todo, não é claro em relação à posse dos itens apreendidos. Consta no boletim que este outro morador assumiu que o simulacro estava em seu quarto. No entanto, quando o Ministério Público do Estado de São Paulo prestou denúncia contra Cristovam, a arma falsa apareceu na lista de itens supostamente encontrados “no cômodo onde o denunciado [ou seja, Cristovam] foi preso.”
Durante quase toda a gravação anexada aos autos, o acusado nega ter relação com as substâncias ilícitas. Em 15:47 de vídeo (0:42 na edição feita pela Ponte), um dos policiais diz que vai levar todo mundo embora, inclusive a filha de Cristovam, de 10 anos de idade, e o afilhado Felipe, de 3. “As crianças já vão pra Fundação [em referência à Fundação CASA]. Vai todo mundo pro CDP [Centro de Detenção Provisória]”, ameaça o PM. Nessa hora, o choro de Felipe se intensifica.
De acordo com o advogado Caio Cavalcante, que defende o réu, as substâncias que seu cliente foi acusado de traficar não estavam no apartamento da comadre, no andar debaixo. Se, em algum momento da abordagem, ele assumiu a propriedade da droga, foi após os policiais ameaçarem prender as crianças que estavam no local. “No apartamento não havia nada. As drogas de que ele foi acusado estavam fora do prédio, em uma bolsa que o policial cita no vídeo”, diz a defesa. No processo, Cristovam se declara inocente.
Falso flagrante
Segundo depoimento do PM Rafael Henrique dos Santos, a movimentação teve início quando os policiais visualizaram um rapaz que, ao perceber a aproximação da viatura, entrou no edifício. O sargento alegou que já havia escutado denúncias sobre tráfico de drogas no prédio e, por isso, os PMs suspeitaram da ação. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) indica que não havia fundada suspeita que justificasse a entrada na residência sem mandado judicial. Em casos parecidos que chegaram à corte, as provas colhidas foram anuladas.
O especialista Pierpaolo Bottini, professor livre-docente do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Universidade de São Paulo (USP), explica: “para o flagrante, é preciso algum dado concreto sobre a prática do crime. Não pode se dar por meras ilações ou presunções dos policiais, como o ‘agir nervosamente’”.
O advogado Caio Cavalcante defende que a prisão, como um todo, ocorreu de forma irregular. “Eles fizeram uma operação, na verdade, para adentrar esse imóvel, que é um local que até os próprios PMs em depoimento falaram que era invasão de moradia, uma pensão… e eles saíram aleatoriamente arrombando os apartamentos no momento em que encontraram o Cristovam”.
Câmera no bolso
Outra irregularidade apontada pela defesa diz respeito ao policial tapar a câmera corporal. O Procedimento Operacional Padrão (POP) da Polícia Militar de São Paulo determina que o equipamento deve ser fixado sobre o colete de proteção individual ou sobre a jaqueta, virado para frente, de modo a enquadrar todas as cenas. Além disso, o documento diz que é obrigatório o registro “em todas as abordagens policiais até a liberação da parte ou encaminhamento a locais intermediários ou até o destino final (Delegacia de Polícia, PPJM, Delegacia de Polícia Federal, etc.)”.
O advogado criminalista Flávio Campos destaca a importância das câmeras operacionais portáteis para a diminuição da violência na segurança pública. Ele cita um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que apontou que, entre as áreas de companhias que passaram a utilizar o equipamento, houve uma redução de 57% nas mortes decorrentes de intervenção policial. No entanto, o especialista pondera que só a adoção das COPs é inútil se os procedimentos corretos não são seguidos pelos PMs.
“As câmeras [usadas pela PMESP] têm uma resolução de 1080 pixels, duração de bateria de 12 hs, armazenamento de 64G, protegem contra poeira… é uma técnica que tem tudo pra dar certo se bem utilizada. Então qual é o problema, a dificuldade? É que esse tipo de prática diz respeito ao procedimento policial de forma geral. [Esse caso, do Cristovam] está em dissonância com um procedimento que vem sendo adotado ao longo dos últimos anos”, afirma o advogado. Em nenhum dos sete vídeos anexados ao processo judicial contra Cristovam, as cenas são registradas ininterruptamente. A maior parte demonstra que as lentes foram tapadas desde o início da abordagem, às 17h57, até por volta das 19h40.
O Ministério Público de São Paulo prestou denúncia contra Cristovam, que ficou preso preventivamente no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, na capital paulista. Em 15 de dezembro do ano passado, ele foi condenado a 5 anos e 10 meses de reclusão, além do pagamento de multa. Desde então, segue no CDP, onde aguarda o julgamento da apelação feita pela defesa ou transferência para uma penitenciária.
O que diz a polícia
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) foi procurada, na manhã de terça (14/2), para dar sua versão sobre o caso. Até o momento da publicação da reportagem, a pasta não entrou em contato.