Charges de Junião, ilustrador da Ponte, e de Carlos Latuff foram usadas em prova do Colégio Marista de Natal (RN) para alunos do 8º ano; para PM, charges distorciam “a real imagem da instituição”
A Polícia Militar de Natal, capital do Rio Grande do Norte, pediu “esclarecimentos” ao Colégio Santo Antônio Marista pelo uso de de três charges críticas à polícia em prova de alunos do 8º ano na última terça-feira (1/9). O argumento da corporação é de que as charges “distorciam” a real imagem da instituição.
O caso foi denunciado pelo jornalista Paulo Ramos, do Blog dos Quadrinhos, do Uol, em seu Twitter. Uma das charges é de Antonio Junião, ilustrador, diretor de arte e projetos especiais da Ponte. Feita em 2013, a charge intitulada de “Cenas do cotidiano” mostra o diálogo de uma família negra se despedindo antes de ir para o trabalho e para a escola.
O filho deseja bom trabalho ao pai e é completado pela esposa: “e cuidado para não ser preso por engano na volta”. Na prova, a questão 11 questionava qual crítica em relação a Constituição Federal a imagem fazia. Entre as alternativas, estavam: a prática da tortura, a prática do racismo, o terrorismo, o tráfico ilícito de entorpecentes ou a xenofobia homoafetiva.
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As outras duas charges são do cartunista e chargista Carlos Latuff. A primeira é uma charge de 2014, em que Latuff ilustrou um policial com o rosto de um porco atirando com a frase “missão cumprida, excelência!”. A segunda charge, feita em 2013, é dividida em duas cenas: na primeira, uma mulher negra colocando um livro na mochila do filho antes de ele sair para a escola; a segunda mostra um policial militar do Rio de Janeiro, armado, revistando o menino e jogando o livro fora.
Após a nota da PM, o Colégio Marista afirmou que o objetivo do uso das charges na prova era abordar o “comportamento humano e convivência social nos dias atuais”. “Não houve em momento algum, a intenção de desmerecer a profissão de policial, tão valorosa e importante para a nossa sociedade. Lamentamos ter causado qualquer situação constrangedora à categoria e outros”.
Na quarta-feira (2/9), José de Assis Elias de Brito, diretor do colégio, visitou Comando Geral da PMRN. O encontro foi divulgado no Instagram da polícia potiguar. “Queremos nos desculpar e nos retratarmos e dizer que somos conhecedores do trabalho de vocês e das dificuldades enfrentadas no dia a dia. Todos os tratamentos internos estão sendo dados para resolvermos essa questão”, afirmou o diretor.
“Temos inúmeros policiais que são nossos ex-alunos, filhos de policiais também, então de maneira nenhuma era nossa intenção corroborarmos para que a situação tomasse tal dimensão”, completou.
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Para Junião, a Polícia Militar, e militares no geral, querem sequestrar a pauta de segurança pública para eles. “Eles não estão dispostos a abrir para outras vozes, para outros atores discutirem e ajudar a formular esse campo. Eles não aceitam outras ideias a não ser as ideias que eles têm”, aponta. “A Polícia Militar já foi criada com objetivo de repressão. A proteção à vida que eles citam é a proteção à vida de quem tem dinheiro”.
O ilustrador rebate que não é o artista que faz essa imagem da polícia: “A gente só ilustra e reforça o que já está sendo debatido nas ruas. Queremos uma polícia melhor, por isso fazemos crítica. A nossa crítica é construtiva e tem base acadêmica, dentro dos movimentos sociais e da sociedade civil”.
“Por que eles não ouvem o que já está sendo debatido nas ruas e trazem a população para debater junto com eles sobre a melhor atuação de uma polícia? Por que eles não trazem outros atores, que não a elite econômica, para debater segurança pública?”, questiona.
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Junião argumenta que, acompanhando o que dizem as lideranças negras, indígenas e que lutam contra a violência de gênero, “a democracia nunca existiu no nosso país”.
“Uma vez que você tem uma hierarquia de classes, uma hierarquia de raça e uma hierarquia de gênero e existem pessoas que podem ser mortas e ninguém vai ligar, que existem corpos que podem ser matados, você não tem uma democracia. Se você não tem uma democracia, toda a liberdade está ameaçada sempre”, continua.
Por isso, completa, a liberdade de imprensa segue em ameaça, “porque vivemos em um Estado que não respeita o cidadão, independente de quem ele seja”. “Existe toda uma história racista, classista e com violência de gênero que acompanha o Brasil desde a sua fundação e agora tá batendo na porta das pessoas. Essa violência institucional que acompanha a gente desde sempre chegou na imprensa”.
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O cartunista Carlos Latuff, em entrevista à Ponte, afirma que vê o posicionamento da Polícia Militar “como intimidação e uma tentativa de ingerência no conteúdo didático de uma instituição de ensino”. Latuff lembra que a ação fere a liberdade acadêmica do professor que ministrou a prova, e “é uma tentativa de coibir a liberdade de expressão garantida na Constituição”.
A charge, avalia Latuff, “é uma representação, por vezes alegórica, de um fato”. “A violência policial e o envolvimento das polícias com o crime no Brasil são algo fartamente documentado, seja pela imprensa, seja por organismos nacionais e internacionais de direito humanos”.
“Negar estas evidências ou mesmo minimizá-las com o argumento cliché de que os incidentes de truculência policial são ‘casos isolados’ é uma forma das corporações policiais de negar e mesmo impedir a solução de um problema que aflige principalmente as populações negras e pobres”, denuncia.
O artista lembra que outras charges duas já foram alvo de censura. Ao longo de 30 anos de carreira, aponta, colecionou “ameaças, campanhas de difamação, censura, três idas a delegacias por conta de charges sobre a truculência policial”.
Em 2019, o deputado federal coronel PM Tadeu (PSL-SP) destruiu, no Congresso Nacional, uma charge de Latuff sobre violência policial, que fazia parte de uma exposição alusiva à Semana da Consciência Negra.
“Sempre que um de meus desenhos sobre violência policial é objeto de ataques de organizações ou indivíduos ligados às forças policiais, fica evidente o alcance e o poder da charge. A repressão contra chargistas, seja no Brasil ou mundo afora, é o maior indicativo de que a arte de contestação tem poder”, aponta.
No “regime Bolsonaro”, avalia Latuff, a liberdade de imprensa quanto a de expressão estão ameaçadas. O chargista só é persona non grata em regimes antidemocráticos. “Infelizmente o Brasil já pode ser comparado a governos autoritários como no Egito, Jordânia e Turquia, onde chargistas sofrem perseguições por desenhar suas opiniões no papel”.
[…] Publicado originalmente pela Ponte: […]