PM que escondeu morte em Jaguariúna (SP) agora tenta impedir inquérito na Justiça

    Capitão L.G.T. diz sofrer constrangimento ilegal com abertura de apuração contra ele por fraude processual, usurpação de função pública e prevaricação; oficial tentou fazer PM investigar crime envolvendo civil

    Foto: Reprodução/SSP

    O capitão da Polícia Militar paulista L.G.A.T., 33 anos, responsável por tentar esconder da Polícia Civil uma morte praticada por um colega da farda, segundo um delegado, agora tenta barrar, na Justiça, o inquérito que busca apurar possíveis crimes de fraude processual, usurpação de função pública e prevaricação ocorridos durante sua conduta. O pedido também é respaldado pelo recém-empossado comandante do policiamento de Campinas (SP), coronel Renato Nery Machado, que ingressou com um outro pedido judicial em favor de T.

    O fato que envolveu o oficial da PM aconteceu na noite de 31 de março, na cidade de Jaguariúna, no interior do estado. Naquela data, Leandro Rodrigues foi morto após esfaquear uma pessoa e não obedecer a ordem de parada dada por dois policiais que participaram da ocorrência. Segundo a versão dos PMs, Rodrigues foi baleado após avançar contra os soldados Rogério Rodrigues Rosa e Jorge Humberto Paulino. O crime ocorreu na Rua Renato Abrucez, no Jardim Primavera. Após a morte, T. pediu exame necroscópico diretamente ao IML (Instituto Médico Legal) sem registrar boletim de ocorrência na delegacia, contrariando o Código de Processo Penal. As armas utilizadas também não foram apresentadas, sendo apreendidas no batalhão.

    Diante da situação fora do padrão, o delegado Erivan Vera Cruz decidiu por inserir no boletim de ocorrência os possíveis crimes de fraude processual, usurpação de função pública e prevaricação cometidos pelo policial ao não comunicar a Polícia Civil sobre o crime de homicídio contra Rodrigues e de lesão corporal contra a vítima ferida pelo homem morto. Por esse motivo, o capitão acusa o delegado de constrangimento ilegal.

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    Agora, com o intuito de “trancar” o boletim de ocorrência e o inquérito policial, T. ingressou com um habeas corpus na Vara Criminal de Jaguariúna. O pedido, que é assinado pelo próprio PM, fala em “risco de ter sua liberdade de locomoção restringida”.

    T. sustenta que no dia do fato exercia a função de Plantonista de Polícia Judiciária Militar e Disciplina na área do 26° Batalhão de Polícia Militar do Interior. Ainda segundo sua petição, ao vislumbrar que a morte se tratava de um “crime militar” determinou a seus subordinados que não alterassem a cena do crime. O texto ainda sustenta que PMs avisaram o fato à Polícia Civil tanto por telefone como pessoalmente, além de terem entrado em contato com a Polícia Técnico Científica, que esteve no local. Diante dos avisos, T. afirmou que “todas as medidas legais que o caso requeria foram adotadas” e “que cumpriu expressamente determinação legal”.

    Mesmo as armas dos PMs tendo sido apreendidas em 1° de abril, elas só foram encaminhadas quatro dias depois à Polícia Científica de Mogi Guaçu, conforme carimbo em um dos documentos.

    O pedido ainda aponta que o delegado Erivan Vera Cruz é “incompetente para instauração e consequente apuração das condutas delitivas supostamente atribuídas” a ele no boletim de ocorrência. A justificativa usada por T. é que, por ele ser da ativa e estar em serviço no momento da ocorrência, deveria ser investigado por um Inquérito Policial Militar e não um inquérito comum.

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    Ao analisar o pedido, o promotor Sergio Luis Caldas Spina recusou aceitar o pedido para trancar o boletim de ocorrência ou o inquérito policial. Já o juíz Marcelo Forli Fortuna expediu um ofício para que o delegado Erivan Vera Cruz forneça informações sobre o caso.

    Em reposta ao ofício do juiz, Vera Cruz explicou que o boletim de ocorrência foi elaborado por “uma questão humanitária e de sentimento em relação aos mortos e seus familiares”, já que o carro da funerária estava com o corpo aguardando ser recebido pelo IML, “gerando possível desrespeito à família do falecido”.

    O delegado também pontuou que o inquérito não aponta culpados, mas visa num primeiro momento apurar os fatos e encontrar possíveis crimes cometidos durante a ocorrência. Vera Cruz também ressalta que “o fato de ser militar da ativa, não impede de ser parte de inquérito policial, onde se apura crimes não militares”.

    Com as explicações de ambas as partes, o juiz deve decidir qual será o destino do inquérito instaurado.

    A pedido da Ponte o advogado criminalista Roberto Tardelli analisou o processo, o qual classificou como “grave”. “O que o PM fez é quase uma militarização da investigação. Passa por cima de tudo, não resguarda a cadeia de provas. É um estado policialesco bruto. O que ele fez é muito grave. A Polícia Judiciária coleta provas, a PM preserva o local, não faz coleta de provas”, explicou.

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    Para Tardelli, a não comunicação do crime dá “a impressão que houve uma execução” quanto a morte de Rodrigues. Já sobre o pedido de habeas corpus feito pelo capitão, o criminalista aponta que há “considerações de ordem primitiva”, em que não é levado a sério questões básicas do Código de Processo Penal. “O capitão tinha que estar detido pelo menos no batalhão. Como ele não apresenta a ocorrência para autoridade policial? Tem muita coisa fora do padrão”, completou.

    Também procurado pela reportagem, o doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo e tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de SP Adilson Paes de Souza afirmou que a Secretaria da Segurança Pública precisa se pronunciar, sob risco de mais casos semelhantes. “Isso vem acontecendo com frequência. Piora o relacionamento entre a Polícia Militar e a Polícia Civil, gera mais focos de tensão. Seria apropriado que a SSP se manifestasse e resolvesse o impasse criado”.

    Além do habeas corpus elaborado e impetrado por si próprio, um outro documento semelhante foi apresentado na quinta-feira (8/4) pelo coronel Renato Nery Machado, comandante do policiamento na região de Campinas. O oficial está no cargo há cerca de um mês, após deixar de chefiar a Polícia Militar no ABCD paulista.

    Em sua petição, Machado também aponta possível “constrangimento ilegal” sofrido por T. em relação ao delegado Vera Cruz como justificativa para apresentar habeas corpus preventivo. Durante as mais de 50 páginas de seu pedido, Machado também deixa claro entender que a morte de Rodrigues se trata de crime militar.

    Pedido para Ouvidoria

    Em busca de uma solução para o caso, o Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo) encaminhou denúncia sobre o caso à Ouvidoria das Polícias de SP. No documento, é requisitado “a adoção de medidas urgentes junto à Secretaria da Segurança Pública e à Superintendência da Polícia Técnico-Científica no sentido de coibir e punir a prática de tais atos”.

    Em resposta à reportagem, a Ouvidoria informou que “recebeu a denúncia e instaurou um procedimento para acompanhar as investigações. Estamos requerendo que a Corregedoria da Polícia Militar avoque a investigação do caso e informe a Ouvidoria quais providências foram adotadas”.

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    Procurada, a SSP encaminhou a mesma nota enviada em 5 de abril. O texto aponta que “todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas por meio de inquérito instaurado pela Delegacia de Jaguariúna. A PM também instaurou um IPM para apurar o caso”. A Ponte pediu para pasta entrevistas com o capitão e o delegado, mas não foi atendida.

    Atualização em 21/8/22 – A Ponte Jornalismo omitiu o nome do capitão da Polícia Militar mencionada na reportagem, trocando-o por iniciais, em obediência a determinação judicial feita em sentença do juiz David de Oliveira Luppi, da Vara do Juizado Especial Cível do Foro de Mogi Guaçu, no processo 1001314-76.2022.8.26.0362. Em 11 de agosto deste ano, o juiz ordenou: “Para cessar a abusividade, entendo que determinar que os réus retirem das notícias a imagem da funcional do autor e substituam seu nome completo por suas iniciais, já surtirá o efeito desejado pelo autor”.

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