PM mata e esconde crime da Polícia Civil em SP

    Após PMs matarem homem que estaria “alucinado” em Jaguariúna, interior do estado, capitão L.G.T. pediu exame necroscópico ao IML sem passar por delegacia, contrariando Código de Processo Penal. Para presidente do sindicato de delegados, ação da PM é tentativa de “rasgar a Constituição e a lei”

    Foto: Reprodução/SSP

    A Polícia Civil de São Paulo abriu investigação para apurar crimes como fraude processual, prevaricação e usurpação de função pública, após policiais militares matarem um homem durante uma suposta legítima defesa em Jaguariúna, interior do estado, e se recusarem a registrar um boletim de ocorrência em delegacia.

    Segundo documento elaborado pela Polícia Civil, uma ligação feita por um PM por volta das 23 horas do dia 31 de março informou para uma policial civil de plantão na delegacia da cidade que “a guarnição teria se envolvido em uma intercorrência com resultado morte, sem passar mais dados ou detalhes”. De acordo com o documento, a mulher passou a informação para o delegado Anderson Cassimiro de Lima. Minutos depois, a mesma policial recebeu uma outra ligação, dessa vez de um perito, que havia sido requisitado pela PM e pretendia saber o endereço do ocorrido para a realização da perícia.

    Sem saber o que de fato havia acontecido, tanto a Polícia Civil quanto o perito acabaram de mãos atadas, sem atuar naquele momento. Instantes depois, um PM de nome Rodrigues informou que tal ocorrência não seria registrada na delegacia, mas no Batalhão da Polícia Militar em Mogi Guaçu. A distância entre as duas cidades é de cerca de 40 quilômetros.

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    Já pela manhã do dia 1° de abril, sem os procedimentos que são de praxe responsabilidade da Polícia Civil, um funcionário do IML (Instituto Médico Legal) fez contato com a Delegacia Seccional de Mogi Guaçu informando que “a funerária Bom Pastor de Jaguariúna estaria por aquele setor com um corpo e que não poderia aceitar sem requisição da autoridade policial e respectivo Boletim de Ocorrência”.

    Diante da situação, o funcionário da funerária foi até a delegacia e apresentou os documentos que haviam sido entregues a ele pela PM, como um talão de ocorrência e a requisição de laudo de exame necroscópico endereçado ao diretor do IML de Mogi Guaçu, assinado pelo capitão L.G.T.

    Através do talão se soube o que de fato aconteceu na noite do dia anterior. Segundo consta no documento, o jardineiro Michael de Matos Morais, 27, foi atingido por um golpe de arma branca, efetuado por Leandro Rodrigues, 27. Rodrigues estaria “alucinado”, de acordo com testemunhas da agressão. O documento aponta que os PMs Rogerio Rodrigues Rosa e Jorge Humberto Paulino se depararam com o homem e o advertido. No entanto, Rodrigues teria partido em direção aos policias militares, “que para repelir a agressão, efetuaram disparos em direção do mesmo, que foi socorrido e veio a óbito”. A morte teria acontecido na Rua Renato Abrucez, no Jardim Primavera. Não há menção de testemunhas que tenham presenciado a investida de Rodrigues contra os policiais militares, diz trecho do boletim de ocorrência elaborado pela Polícia Civil.

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    Através do talão da PM, policiais civis descobriram que o capitão T. requisitou diretamente o exame necroscópico, sem apresentar a ocorrência na delegacia de polícia com atribuição para investigação dos fatos ocorridos, o que, em tese, configura o “delito de usurpação de função pública”, diz trecho do boletim de ocorrência. Outro trecho do documento ainda aponta que o oficial “determinou que as armas dos policiais que efetuaram disparos não fossem apresentadas, recolhendo as mesmas ao batalhão, bem como para que não fossem apresentadas testemunhas e partes envolvidas, prejudicando a coleta de provas, cadeia de custódia, incorrendo em possível delito de fraude processual”.

    Diante da situação, o delegado sustentou que a conduta do capitão T. “demonstra menosprezo com a Polícia Civil, a Polícia Científica e o Poder Judiciário, praticou em tese, possíveis crimes de prevaricação, usurpação de função pública e possível fraude processual, os quais serão melhor apurados no competente inquérito policial”.

    O documento assinado pelo delegado Erivan Vera Cruz é recheado de ponderações e críticas às decisões tomadas pelo policial militar. “Em que pese todo respeito, cordialidade e parceria que sempre mantivemos com a Polícia Militar do Estado de São Paulo, a conduta praticada pelo Capitão PM T. não encontra respaldo no ordenamento jurídico vigente”. O delegado ressaltou que o “fato descrito pela Polícia Militar não se subsume à hipótese de crime militar, como parece ser o forçoso entendimento do Sr. Oficial de Polícia Militar”.

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    O delegado ainda fez questão de explicar que, de acordo com Código de Processo Penal, “recai sobre a Polícia Civil a atribuição legal para apuração das circunstâncias da ocorrência, inclusive apreensão de todos os objetos que interessarem à investigação”. Em outro trecho do BO o delegado aponta que “parte de integrantes da Polícia Militar passaram, em interpretação teratológica e absurda, a tratar fatos que envolvam militares e civis, quaisquer que sejam os delitos, como crimes militares”.

    Cruz ainda escreveu que “questionou o Comandante de Policiamento Militar de Jaguariúna se as armas dos policiais militares envolvidos seriam apresentadas”. Como resposta, ouviu que as armas “ficarão apreendidas, junto ao Batalhão de Polícia Militar de Mogi Guaçu, por ordem do capitão T.”.

    “Rasgar a constituição e a lei dessa forma, deixa o cidadão completamente desprotegido de seus direitos. Existe uma violação da legislação por parte desse capitão da PM, além de crimes como fraude processual e usurpação da função pública, quando ele toma para si atribuições da Polícia Civil”, disse à Ponte a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Raquel Gallinati.

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    Raquel, que também é delegada de polícia, aponta que é necessário um maior rigor institucional para que os casos não se repitam. “É inadmissível, e nos deixa perplexos, essa constância na tentativa de violações de direitos humanos. A Secretaria da Segurança Pública deveria conter a tropa da PM quando alguns de seus integrantes, na marginalidade da lei, atuam de forma a violar os direitos humanos”.

    O que diz a SSP

    Procurada, a Secretaria da Segurança Pública do estado de São Paulo informou por meio de nota que “todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas por meio de inquérito instaurado pela Delegacia de Jaguariúna. A PM também instaurou um IPM para apurar o caso”. A reportagem também solicitou entrevista com o delegado Erivan Vera Cruz e com o capitão L.G.T. e aguarda resposta.

    Atualização em 21/8/22 – A Ponte Jornalismo omitiu o nome do capitão da Polícia Militar mencionada na reportagem, trocando-o por iniciais, em obediência a determinação judicial feita em sentença do juiz David de Oliveira Luppi, da Vara do Juizado Especial Cível do Foro de Mogi Guaçu, no processo 1001314-76.2022.8.26.0362. Em 11 de agosto deste ano, o juiz ordenou: “Para cessar a abusividade, entendo que determinar que os réus retirem das notícias a imagem da funcional do autor e substituam seu nome completo por suas iniciais, já surtirá o efeito desejado pelo autor”.

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