Justiça decide que PM não pode registrar ato infracional de adolescente sem delegado

    Para Tribunal de Justiça de São Paulo, apenas delegados de polícia podem elaborar boletim de ocorrência circunstanciado em atos infracionais e qualquer situação fora disso viola a Constituição Federal; sindicato comemora decisão

    Foto: Divulgação/SSP

    A elaboração do boletim de ocorrência circunstanciado, em ato infracional de adolescentes, deve ser feito pelo delegado de polícia de acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão assinada pela relatora Lídia Conceição em 15 de dezembro de 2020.

    O boletim de ocorrência circunstanciado de ato infracional é um documento similar ao inquérito policial, usado em casos de menor potencial ofensivo para crianças e adolescentes. Apenas um delegado da Polícia Civil pode fazer esse registro.

    O conflito de interesse começou quando o juiz Evandro Pelarin, da Vara da Infância e Juventude da Comarca de São José do Rio Preto, em maio de 2020, atendendo ao pedido do Comando de Policiamento de Interior-5, autorizou a Polícia Militar a elaborar boletim de ocorrência circunstanciado, envolvendo adolescentes daquela Comarca.

    O Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo), então, entrou com um pedido judicial, que foi acatado pelo Ministério Público de São Paulo, que caiu no procurador de justiça Paulo Afonso Garrido de Paula.

    Discordância entre as forças policiais sobre o tema acontecia desde 1995 e, na primeira semana de dezembro, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) havia reconhecido que a Polícia Militar e a Polícia Federal Rodoviária podem lavrar TCO, usado em casos de prisões de adultos.

    Na decisão, que contou com os votos dos desembargadores Xavier de Aquino e Guilherme G. Strenger, e foi presidida por Luis Soares de Mello (sem voto), o TJ-SP citou o artigo 144, da Constituição Federal, que fala dos direitos e responsabilidades dos agentes de segurança pública, e o artigo 172, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que aponta que o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional deve ser encaminhado à autoridade policial competente.

    “Ao determinar o encaminhamento do infrator à ‘autoridade policial’ refere-se ao Delegado de Polícia, a quem incumbe a colheita dos elementos informativos acerca da autoria e da materialidade de infrações penais, às quais se equiparam aos atos infracionais”, afirmou a desembargadora Lídia Conceição.

    “Inviável outra interpretação dos artigos supra mencionados, tendo em vista, inclusive, a clareza com que dispõe sobre as providências a serem tomadas pela autoridade policial quando do recebimento do adolescente apreendido em flagrante”, completou.

    A desembargadora ainda afirmou que a leitura dos artigos evidencia que “a opção legislativa foi de atribuição à polícia civil do encargo no recebimento de adolescentes apreendidos em flagrante pela prática de ato infracional”.

    “Ainda, incumbiu aos ‘delegados de polícia de carreira’ (art. 144, §4º, CF) a discricionariedade de avaliar juridicamente a gravidade do ato infracional, a conveniência de lavrar auto de apreensão ou substituí-lo por boletim de ocorrência circunstanciado e, inclusive, deliberar pela liberação imediata do jovem ou por seu encaminhamento ao Ministério Público (art. 174, ECA)”.

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    À Ponte, a delegada Raquel Kobashi Gallinati Lombardi, presidente do Sindpesp, afirma que a decisão do TJ-SP é muito importante. “A decisão vela pela Constituição Federal e pela lei, reafirmando que a elaboração do boletim de ocorrência circunstanciado é atividade de polícia judiciária e que a Polícia Militar elaborando usurpa a função constitucional da PM e rasgando a Constituição”.

    Para Kobashi, a principal prejudicada, em uma “usurpação da função”, é a sociedade e a população. “Quem deve garantir essa legalidade é o delegado de polícia, é a polícia judiciária. A partir do momento em que a Polícia Militar apreende ou conduz alguém supostamente praticando um crime, que ele mesmo delibera que é ou não um crime, delibera que é um flagrante ou não, a gente tem aniquilada o primeiro crivo da legalidade da justiça que é a polícia judiciária”.

    “Nós atuamos de acordo com o Estado democrático de direito e dentro disso não deveria, em um mundo ideal em que a instituições respeitassem suas atribuições sem rasgar a Constituição, haver a necessidade de reiteradamente provocar o Judiciário para se manifestar o que já está previsto na lei”, afirma.

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    Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista, a decisão a justiça foi correta. “Não cabe à Polícia Militar exercer a atividade de polícia judiciária, especialmente nesses termos que envolvem crianças e adolescentes. Cabe a ela apreender o adolescente e conduzir ao distrito policial e o delegado tomará as medidas judiciárias necessárias”.

    Adilson também lembra que as funções das duas forças policiais são bem delimitadas na Constituição: Polícia Militar faz patrulhamento ostensivo, devidamente fardada, e Polícia Civil realiza a investigação a apuração de delitos. “Fora disso é deturpar a Constituição”.

    O tenente-coronel da reserva também aponta que o juiz da primeira instância não agiu de maneira acertada ao estender à Polícia Militar essa competência. “O argumento da Covid não se sustenta, não é porque estamos em época de pandemia que vamos deixar de observar funções constitucionais principalmente no que diz respeito ao devido processo legal e às garantias da pessoa mantida sob custódia, no caso a criança e o adolescente”.

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    Adilson avalia que o cuidado do MP e do TJ fez toda a diferença na decisão. “Quem efetua a prisão ou a apreensão é o mesmo que registra o fato, então possibilidades de abuso e do adolescente apreendido manifestar isso deixaria de existir. Por isso é vital que uma pessoa prenda e outra avalie a prisão, no caso o delegado de polícia”.

    A situação, continua o tenente-coronel, é mais um capítulo do atrito entre Polícia Militar e Polícia Civil. O atrito ficou mais nítido em 8 de agosto de 2020, quando os PMs José Valdir de Oliveira Júnior, 37 anos, Celso Ferreira Menezes Júnior, 33, e Victor Rodrigues Pinto da Silva, 29, foram mortos por Cauê Doretto de Assis, 24, que também morreu na ação.

    Dias depois, o policial civil Daniel Dambrauskas de Mello, 34, que abriu um boletim de ocorrência contra dois PMs do 24º Batalhão da PM paulista (Vila Madalena) por injúria e abuso de autoridade após abordagem policial em um bairro rico na tarde de 25 de agosto de 2020.

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    “Uma instituição querendo realizar as funções da outra”, aponta Adilson. “Temos Polícia Militar investigando e Polícia Civil executando policiamento ostensivo, basta ver viaturas do GARRA com policiais civis vestidos de preto e efetuando bloqueios das vias públicas ou material de controle de distúrbio civil. Isso não é bom porque acirra os ânimos e quem perde é a população”, finaliza.

    ERRATA: Uma versão anterior desta reportagem usava a expressão Termo Circunstanciado de Ocorrência no lugar de boletim de ocorrência circunstanciado. O texto foi corrigido às 21 horas do dia 12/1/2021

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