Após três anos, Justiça se prepara para decidir se leva a júri popular os três policiais acusados de espancar até a morte Luana Barbosa
A Justiça ouviu nesta semana os três policiais militares acusados de espancar até a morte Luana Barbosa dos Reis, 34 anos, mulher não feminilizada, negra, lésbica e periférica, diante do filho dela de 14 anos, e deve decidir nos próximos dias se leva ou não os réus a júri popular.
Segundo relatos de testemunhas e da própria Luana, num vídeo gravado antes de sua morte, a jovem foi espancada durante uma abordagem policial na noite de 8 de abril de 2016, no bairro Jardim Paiva II, uma das periferias de Ribeirão Preto, cidade a 312 km da capital paulista, apelidada de “Califórnia brasileira” ou “capital nacional do agronegócio”. Cinco dias depois, Luana morreu no hospital. A causa da morte foi uma isquemia cerebral causada por traumatismo crânio encefálico.
Acusados pelo MP (Ministério Público) de homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou defesa da vítima), os policiais Douglas Luiz de Paula, Fábio Donizeti Pultz e André Donizeti Camilo, do 51º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), que respondem em liberdade, foram ouvidos nesta quarta-feira (14/8) no Fórum de Ribeirão Preto. Todos negaram o espancamento de Luana, dizendo que a jovem bateu em si mesma, e atribuíram as acusações ao “poder dos direitos humanos”.
O depoimento dos policiais, que encerrou a fase de instrução do processo, mostrou um discurso alinhado. Cada réu falou por cerca de 40 minutos e reforçou a versão inicial, que consta no B.O. (Boletim de Ocorrência), de que Luana é que teria agredido os policiais, além de ter se auto-lesionado dentro da viatura por estar “muito exaltada, possivelmente drogada ou embriagada”.
‘O poder dos direitos humanos’
A defesa também tentou trazer um novo elemento para o caso, afirmando que a morte de Luana teria sido levada à imprensa por Luiz Carlos dos Santos, ex-conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana). Preso por ligação com a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), o conselheiro, na versão dos policiais, teria usado o caso para prejudicar a imagem da Polícia Militar.
Depois que o terceiro policial associou Luiz Carlos com a midiatização do caso de Luana Barbosa, a juíza Marta Rodrigues Maffeis Moreira questionou os advogados de defesa se essa figura teria tanta influência quanto os réus estavam falando. Em resposta, o advogado Paulo Maximiano Junqueira Neto disse que o “poder dos direitos humanos” estava por trás da exposição da morte de Luana.
A versão contada pelos policiais não bate com os fatos, já que o Condepe só entrou no caso de Luana Barbosa quase um mês depois de sua morte. Os próprios familiares da jovem divulgaram a ocorrência nas redes sociais, chamando a atenção de repórteres da EPTV, filiada da Rede Globo na região, que publicaram a primeira notícia sobre a morte de Luana em 16 de abril de 2016.
A Ponte contou a história de Luana Barbosa 12 dias após a sua morte, em 25 de abril de 2016, em uma reportagem assinada pela repórter Alê Alves. Na reportagem, além de trazer a trajetória de Luana, a Ponte narrou em detalhes a abordagem e o desenrolar dos fatos que tiraram a vida da mulher negra e lésbica. O Condepe só começou a acompanhar as apurações do crime em maio, como também foi noticiado pela EPTV.
Os réus também chamaram a atenção para o histórico criminal de Luana, que havia sido presa por porte de arma e roubo, mas estava em liberdade desde 2009. Seu filho, Luan, que estava na garupa da moto quando ela foi abordada pelos PMs, também foi criminalizado. Em nenhum momento, réus ou advogados de defesa, se referiram a ele como filho de Luana, apenas como “garupa”, que, segundo a versão da polícia, fugiu na hora da abordagem. Questionados pelos advogados de defesa do por que o “garupa” teria corrido, os três policiais afirmaram que “ele devia estar com droga ou armado”.
‘Tem que provar que a vítima é a vítima’
A Polícia Civil indiciou os policiais em abril de 2018, dois anos depois do crime, enquadrando-os por lesão corporal seguida de morte (em que o criminoso mata sem querer assumir o risco de matar). O promotor Eliseu José Berardo Gonçalves, contudo, preferiu denunciar os três por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou defesa da vítima). A denúncia foi aceita em junho de 2018 pelo juiz José Roberto Bernardi Liberal.
Três anos após a morte de Luana, em 13 e 14 de agosto deste ano, o Fórum de Ribeirão Preto realizou as últimas audiências fase de instrução do processo, em que são ouvidos os réus e as testemunhas de defesa e acusação.
Encerrada a fase de instrução, a juíza pode optar pela pronúncia dos réus, levando-os para um julgamento no tribunal do júri. Se considerar que não há provas para enviar os PMs ao tribunal do júri, a juíza Marta Rodrigues Maffeis Moreira pode optar pela absolvição sumária ou pela impronúncia. Uma outra possibilidade é a desclassificação, alterando o crime pelo qual os réus são acusados.
A família torce para que os policiais sejam julgados. “A única forma que a gente tem de acalentar um pouco o coração é com esses assassinos sendo responsabilizados pelos atos deles, que eles sejam julgados e que eles paguem pelo crime que eles cometeram”, afirma Roseli dos Reis, irmã de Luana. Para ela, um julgamento no tribunal do júri seria “uma forma de honrar” a memória de sua irmã.
Roseli contou à Ponte que, desde o começo, sabia que a luta não seria fácil. “Temos que provar todos os dias, todo minuto, todo momento que a vítima é a vítima, que a minha irmã não foi culpada pela sua morte, que ela não tava portando nada, que ela não tinha uma arma, que ela não tinha drogas. Que ela cometeu erros no passado, em que ela foi presa e pagou por isso, que fazia sete anos que ela estava em liberdade, que ela havia comprado a moto dela, que ela estava naquele dia, com o dinheiro do seu trabalho. É muita injustiça”, diz.
A última audiência
A última audiência ocorreu em um ambiente de tensão. No primeiro dia (13/8), um grupo de cerca de 20 pessoas protestava com cartazes e gritos contra a lesbofobia e o genocídio da população negra na porta do Fórum. Ali dentro, acusação e defesa apresentaram duas versões para a morte de Luana. As testemunhas ouvidas pela juíza alegam que Luana foi espancada por cerca de 15 minutos. Já os três policiais envolvidos na ação argumentam que Luana se machucou sozinha.
A Ponte só teve acesso ao primeiro dia de audiência no depoimento da segunda testemunha, que não era esperada pela acusação, pois, até o momento, não havia sido citada. A primeira testemunha, que é marido da segunda, contou que a esposa estava no local da agressão e, na época, estava grávida de quatro meses. Neste momento, a acusação pediu a permissão para que ela pudesse depor, uma vez que estava no Fórum aguardando o marido.
Segundo as testemunhas, no momento da abordagem Luana Barbosa exigiu a presença de uma policial mulher para realizar a revista. Para mostrar que era mulher, Luana levantou a camiseta. Nesse momento ela levou um soco e um chute que a derrubaram no chão. É a mesma versão contada pela família de Luana Barbosa há três anos.
Quando Luana levantou, deu um soco na boca do PM Fábio e um chute no pé do PM Douglas, hoje aposentado. Um outro PM estava no local, mas a testemunha não o viu agredindo Luana. Depois do espancamento, ela foi levada para o 1º DP (Distrito Policial), onde foi registrado um termo circunstanciado (registro de ocorrência para delitos de menor potencial ofensivo, com pena de máximo um ano).
“Eu falei ‘pelo amor de Deus, não precisa bater’ porque eles começaram a bater muito nela e ela caída no chão. Ficamos falando ‘não bate nela, para, para’. Ficamos horrorizado de ver aquilo ali. Eu e o meu marido começamos a gritar e um dos policiais apontou a arma na minha cabeça e eu falei: ‘moço, eu estou grávida de quatro meses'”, relatou a segunda testemunha.
O depoimento da segunda testemunha durou cerca de 15 minutos. Quando a defesa começou a interrogá-la, o advogado Paulo Maximiano Junqueira Neto levantou o tom de voz e não permitia que ela respondesse. Sempre que a testemunha começava a elaborar a resposta, o advogado dizia frases como “mas é isso que eu estou perguntando”.
‘Se veste como homem’
No segundo dia de audiência, na quarta-feira (14/8), no qual os três réus foram ouvidos, o clima de tensão continuou. Durante as quase três horas de depoimento dos policiais, diversos PMs entravam e saíam da sala de audiência no segundo andar do Fórum de Ribeirão Preto. Advogados da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) disseram à reportagem que tal atitude era para intimidar.
Os três réus relataram como o processo impactou a vida de suas famílias. Ambos relatam que suas esposas estão com depressão e que tiveram de trocar os filhos de escola diversas vezes nos últimos três anos. Os PMs Fábio e André também lamentam o fato de, hoje, cumprirem funções administrativas na corporação, uma vez que estão afastados das ruas.
Em seu depoimento, o PM Douglas, hoje aposentado, disse que o julgamento é uma mentira e que o processo é uma montagem de peça da família de Luana Barbosa, argumentando que é “pai de família e nunca tive uma sanção disciplinar em 20 anos de Polícia Militar”. Um ponto em comum entre os réus foi a justificativa de que teriam abordado Luana por que ela “se veste e se porta como um homem”.
Os dois PMs que foram ouvidos por último, André e Douglas, se recusaram a responder as perguntas da acusação. Apesar disso, e para constar no registro de vídeo e áudio da Justiça, o assistente de acusação Daniel Rondi disse quais seriam as perguntas da acusação. Enquanto ele lia, o advogado de defesa Paulo se mostrava incomodado, batendo os pés nos chãos e a mão na mesa.
Para a Ponte, depois do fim do segundo dia, o assistente de acusação avaliou a audiência como satisfatória. Segundo ele, a estratégia da defesa é a de afirmar que os policiais procederam de forma legal e regular e, por isso, não tiveram nada a ver com a morte ocorrida cinco dias depois. Na visão de Rondi, contudo, alguns fatos do caso são “inapagáveis”, como o vídeo que mostra Luana muito machucada após a ocorrência. “Há o estado em que ela se apresentava no final da ocorrência e isso ninguém consegue contestar”, argumentou.
Procurados, os advogados Sérgio de Melo Tavares Ferreira e Paulo Maximiano Junqueira Neto, defensores do PM Fabio, e os defensores Heráclito Mossin e Júlio César Mossin, responsáveis pela defesa dos demais, não quiseram falar com a reportagem.