Além de fazer abordagem considerada ‘ilegal e arbitrária’ por especialistas, policiais inventaram desacato que não houve e ameaçaram apreender celular de fotógrafo que filmou ação
Um homem negro foi derrubado no chão, algemado e detido ilegalmente por policiais militares após questionar a abordagem na noite de sexta-feira (23/10), na Rua Augusta, no centro da capital paulista.
De acordo com o fotógrafo Rogerio de Santis, que estava passando pelo local e filmou a ação, por volta das 23h os policiais — da viatura M-07029, lotados na Força Tática do 7º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano — passavam pelos bares para determinar que fossem fechados e “mandando as pessoas da rua circularem”. De acordo com o decreto publicado pelo governo estadual no dia 9 de outubro, nas cidades consideradas “fase verde” em relação à pandemia de Covid-19, como São Paulo, os bares devem interromper seu serviço às 22h e clientes podem permanecer até 23h.
Na ocasião, Rogerio aponta que o homem que aparece no vídeo estava na rua filmando os policiais. “Ele começou a questionar a ordem do policial [de mandar “circular”] e deu uma volta em torno de si mesmo, o policial não gostou e mandou ele encostar [na parede]”, afirma.
Nesse momento, nas imagens, o homem questiona diversas diversas o motivo da abordagem. “Põe a mão na cabeça! Você está desacatando a ordem e de um policial”, diz um dos PMs. O homem pergunta: “Qual a atitude suspeita? Por que eu estou filmando a viatura?”.
Os policiais não respondem qual seria a “atitude suspeita”. A polícia só pode fazer uma busca pessoal, sem ordem da Justiça, quando houver “fundada suspeita” de que a pessoa esteja com uma arma de fogo ou com outro objeto que possa ser prova de crime, conforme o artigo 244 do Código de Processo Penal. Além disso, no começo do mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que a Argentina não pode dar enquadro sem motivo, determinação histórica que pode influenciar o Brasil.
Um dos policiais questiona “um volume na cintura” e o homem levanta a camiseta e fala para ser levado para a delegacia. Ele se recusa a ser tocado pelos PMs, que tentam arrastá-lo à força. “Você está me machucando”, grita o homem. Em seguida, três policiais o derrubam no chão e o algemam. Algumas pessoas no local começam a gritar sobre a abordagem e alguns veículos buzinam. “Por que vocês estão fazendo isso? É totalmente desnecessário, é agressão”, fala uma das pessoas.
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Um dos policiais aborda Rogério, que filmava a ação, e diz que o celular seria apreendido e que seria levado como testemunha. “Eu disse que não iria e, quando me apresentei como imprensa, eles anotaram meu RG na prancheta e me liberaram”, conta.
Depois, o homem é colocado no porta-malas da viatura. No vídeo, os policiais afirmam que estariam levando a vítima pela prática de “desacato”. Segundo Rogério, os policiais disseram que encontraram uma faca com ele. “Um policial disse que o cara ameaçou esfaquear eles, mas não justifica, fizeram uma abordagem truculenta”, afirma. Questionado pelo fotógrafo, o policial disse que o homem seria levado ao 78º DP (Jardins) por desacato.
‘Abordagem ilegal e arbitrária’
Para o tenente-coronel aposentado da PM e doutor em Psicologia pela USP Adilson Paes de Souza, a abordagem dos policiais foi “ilegal, arbitrária, violando não só a lei, mas as normas de abordagem da polícia”.
Na avaliação dele, não houve cometimento de desacato pelo homem por não ter proferido nenhum tipo de ofensa ou xingamento contra os PMs e que é plausível que os policiais peçam para os bares fecharem por causa da pandemia, mas mandar as pessoas saírem da rua é complicado. “A postura do rapaz ali mostra plena consciência dos seus direitos, questionando o motivo da abordagem e a ação dos policiais é tão ilegal que eles não sabem responder qual é essa fundada suspeita”, aponta. “Os policiais até poderiam alegar um crime de desobediência, mas a desobediência só há quando há descumprimento de uma ordem legal e ali o rapaz só estava questionando a abordagem”, prossegue.
Filme as ações da polícia e mande para a Ponte
O advogado criminalista Flavio Campos concorda. “O crime de desacato se configura quando o agente público é ofendido, humilhado, é desprezado de maneira inequívoca no exercício da profissão”, explica. “Para ter se configurado, a pessoa deveria ter dito algum palavrão, de alguma forma maltratado o agente”, continua.
De acordo com ele, pela corporação ter um treinamento pautado pela hierarquia, “os policiais ficaram com o ego ferido, a sociedade não é movida por hierarquia, mas é assim que eles enxergam”.
Além disso, Adilson destaca que a alegação de “volume na cintura” dita por um dos policiais não é suficiente para a fundada suspeita. “Se for assim, ninguém mais anda na rua, porque volume na calça pode ser uma carteira, um celular”, aponta.
Adilson também destaca que registrar abordagens não é crime. “Além disso, os policiais ali ameaçam quem está filmando de levar o celular apreendido sendo que não é ilegal filmar ação de agente público”, critica.
Sobre a alegação de ter sido encontrada uma faca com o rapaz, o tenente-coronel pondera que “abre a possibilidade, mas isso tem que ser apurado, de que os próprios policiais podem ter colocado essa faca para justificar toda uma abordagem ilegal”. Adilson, que investigou em suas teses de mestrado e doutorado os motivos que levam policiais a matarem, explica que “na literatura científica sobre violência policial, o encontro de objetos ilegais com a vítima da ação policial e que não estariam com essas vítimas antes é comum, por isso tem que lançar essa dúvida sobre essa apreensão”.
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Por outro lado, Adilson enfatiza que os policiais em questão aparecem sem máscaras no vídeo, podendo ser tanto vetores de transmissão como contagiados pelo vírus da Covid-19.
Já o tenente-coronel da reserva da PM e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho concorda sobre a ilegalidade de ameaçar apreender celular da pessoa que está filmando a ação, mas afirma não haver abuso da força na abordagem dos policiais. Segundo ele, o policial pode “ter se sentido desacatado pelas palavras, pela resistência”, mas que isso tem que ser apurado na delegacia.
“Nesse caso específico, a gente vê que a pessoa estava resistindo e não deixava os policiais revistarem, o que é uma operação até comum e os policiais podem fazer isso quando há fundada suspeita”, explica. “Sem essa revista, os policiais podem ficar vulneráveis e há possibilidade dele ter alguma arma escondida atrás, escondida na perna, não basta levantar a camisa”, prossegue.
Para José Vicente, há irregularidade quando o homem é colocado no porta-malas da viatura. “O detido é passageiro e ele tem que ser levado com segurança, com cinto de segurança atado. Esse transporte [no porta-malas] só pode ser feito em situação emergencial, quando não há nenhum tipo de veículo que o transporte em situação de segurança”.
O que diz a polícia
Em nota a In Press, assessoria de imprensa terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, informou que os policiais abordaram um autônomo de 42 anos “após notarem a presença de um objeto na sua calça” e que ele resistiu à abordagem, “sendo necessário o uso da força para contê-lo”.
De acordo com a pasta, foi encontrada uma faca com o homem, que foi levado ao 78 DP (Jardins), onde foi solicitado “exame de corpo de delito ao autônomo e encaminhou a ocorrência ao 4º DP (Consolação), área dos fatos, para apuração”. Também informou que as imagens enviadas pela reportagem serão analisadas.
Questionada sobre a abordagem dos policiais, a SSP não respondeu.
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