Sistema é visto com ressalva pela Artigo 19, que vê aspectos positivos, mas se preocupa com possibilidade de ganhar viés intimidatório e com a restrição das imagens; Ponte antecipou a iniciativa em reportagem de 2017
A Polícia Militar do Estado de São Paulo começa neste ano a implementar um sistema de imagens para todas as ocorrências no estado. Todos os PMs terão uma câmera em seus uniformes, ainda que o projeto inicial englobe apenas seis batalhões. No entanto, as explicações oficiais não deixam claro o funcionamento do sistema nem justificam a possibilidade de os policiais escolherem quando filmar e não filmar em seu período de trabalho. A Ponte antecipou a iniciativa em janeiro de 2017.
Conforme publicado pela Folha de S.Paulo, o projeto começa em quatro batalhões na capital (Freguesia do Ó, Mooca, Capão Redondo e Heliópolis), um em Santos e outro em Sorocaba, com investimento de R$ 5 milhões. A expansão dependerá da “capacidade financeira” da corporação, com meta dos 88 mil integrantes utilizarem as câmeras, mas já se sabe que o cidadão não terá direito aos vídeos nem com pedido via LAI (Lei de Acesso à Informação), impeditivo possibilitado pois os registros serão classificados como “secretos”.
Anteriormente, a reportagem da Ponte apurou que 120 equipamento foram comprados pelo valor de R$ 271 mil e tropas do Choque, da Ambiental, de Trânsito e da Área de região central de São Paulo testaram o seu uso durante quatro meses. O objetivo é “melhorar a segurança do policial, dar legalidade, transparência e legitimidade às ações que os policiais desenvolvem […] Resguarda a ação policial, como também garante veracidade tanto para o policial quanto para a pessoa que vem fazer uma reclamação”, afirmou, à época, o então responsável pelo projeto, major Victor de Freitas Carvalho, à Globo News.
O novo comandante das câmeras é o tenente-coronel Robson Cabanas Duque, que dá nova explicação para o uso de câmeras no trabalho de rua. “É uma ferramenta tremenda para a sociedade e, para nós, é importante, porque nos interessa a transparência. Ninguém está aqui para esconder vídeo de policial que abusa de sua autoridade, que bate nos outros”, garante o gerente do projeto, em entrevista à Folha de SP. Porém, ele explica outro ponto crucial do programa: “Outra preocupação é permitir que a câmera fique desligada em alguns momentos”.
Em 2017, o major Victor de Freitas Carvalho foi questionado sobre a liberdade de acionamento das câmeras pelos policiais e avaliou “ser este um ponto desfavorável, mas que há momentos de privacidade, como na hora da alimentação”. Carvalho explicou que “o policial tem acesso ao conteúdo que foi gravado apenas para visualização, através de um display, mas não consegue apagar ou editar”, explica, ainda à GloboNews.
Tanto a restrição de acesso aos registros, quanto a liberdade de os PMs escolherem quando a câmera funcionará ou não, são vistas como “preocupantes” pela Artigo 19 – entidade especializada na garantia de direitos e, especificamente, sobre liberdades individuais e coletivas asseguradas em estados democráticos. A Artigo 19 é entusiasta da ideia de se implementar um sistema de imagens em vídeo das ações policiais, desde que não fira direitos de quem esteja do outro lado da câmera.
“Em um primeiro momento, pensamos que o uso de tecnologia no século 21 é cada vez mais real como prova. Por outro lado, não se questiona sobre esse uso, que tipo de especificação jurídica será embasado. Hoje, o Judiciário interpreta como prova com pouca doutrina, pouco material acadêmico e ausência de critério do tema”, pontua Camila Marques, advogada da organização.
O entendimento da especialista é de que a classificação dos dados como secretos, limitando seu acesso, fere um direito constitucional de imagem, vai contra a transparência apontada pela LAI e será questionado na Justiça de forma recorrente com o projeto em prática. Além disso, Camila questiona a possibilidade de os PMs ligarem e desligarem as gravações.
“Preocupa que seja usado com viés intimidatório pela polícia. Essa implementação deve ser parte de uma política pública, que hoje em dia não existe, nem com uma normativa clara. Não vemos isso por parte da PM de SP. É importante ter toda a sequência da ação para se ter a narrativa inteira e, podendo estar ligada ou desligada, leva a percepção de que pode haver abuso. Também nos preocupa a armazenagem e quem terá acesso às imagens”, sustenta.
A Artigo 19 fez um pedido via LAI em 2017 para a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, responsável por introduzir a iniciativa na PM, sobre como funcionará o sistema, o treinamento pelo qual os policiais selecionados passarão, o acesso às imagens e detalhes de quando poderão ligar e desligar as câmeras. A pasta explicou que o treinamento era para mostrar o funcionamento das câmeras e suas funções, o acesso aos registros “serão analisadas à luz da legislação vigente” e que “o policial militar é orientado a manter a câmera ligada durante o atendimento de ocorrências sendo que poderá desligá-la nos momentos que requeiram salvaguardar sua privacidade”.
Após pedidos de mais detalhes, a SSP explicou que estes momentos seriam “na utilização do sanitário, intervalo para refeição, por exemplo”, sem apontar normas ou diretrizes de ação nestes casos. Sobre as análises de acesso às imagens, listou como critérios leis “desde a Constituição Federal, Leis e Decretos Federais, Leis e Decretos Estaduais e demais normatizações existentes”.
No entanto, a explicação de 2017 contradiz uma preocupação presente no atual projeto. Segundo a reportagem da Folha, a PM pretende “criar medidas para impedir vazamento das imagens gravadas, o que comprometeria o projeto”. Ainda que as câmeras “não permitam edição, manipulação, compartilhamento nem exclusão de imagens”, as gravações “só podem ser fornecidas pelo comandante da unidade, em casos específicos como ações judiciais. Todas as imagens serão classificadas como secretas e, assim, não são fornecidas nem por meio da Lei de Acesso à Informação, incluindo a envolvidos nas ocorrências”, explica o jornal.
Essa restrição é criticada pela Artigo 19. “A política anunciada pela SSP vai contra a intenção da Lei de Acesso à Informação de maior transparência que o estado deve obedecer. É bastante problemático. Haverá questionamento disso na Justiça, com certeza. E certamente será avaliada a resistência da SSP em respeitar esta prerrogativa”, diz Camila, que ainda aponta a falta de transparência ainda na elaboração do projeto. “Não é uma ideia nova, se fala disso ao menos há quatro, cinco anos. Esta é uma das propostas na agenda da Artigo, no entanto, fica claro que não existe espaço para o debate. São quatro anos da ideia dentro do órgão que existe para garantir a segurança e não é apresentado para a sociedade, são poucos detalhes”.
Além da entidade, representantes da polícia também questionam o motivo de impossibilitar que as pessoas acessem os arquivos. “Quem está diretamente ligado à ação é quem tem mais interesse em acessar as imagens. Quando restringe muito, pode levar a interpretação de que o dado pode ser manipulado, o que não acontecerá, mas gera a sensação. Leva dúvida sobre a iniciativa. E é uma pena, é uma ação muito boa que há muito tempo quem trabalha com segurança pública pede”, avalia o coronel Adilson Paes de Souza, da reserva da PM paulista, que questiona o motivo dos PMs escolherem quando acionar o equipamento.
“Gera a dúvida, o medo, antes mesmo de qualquer ação ilegal ou intimidatória acontecer. A Polícia teria um grande instrumento de defesa em suas mãos, seria até mesmo um elemento para salvaguardar a imagem da polícia, que pode sofrer questionamentos. Deveria ser estabelecido um comitê com membro da sociedade civil e da PM e segurança pública para gerir estes dados. Seria uma medida extremamente importante para assegurar a lisura da ação dos policiais”, sugere Paes de Barros, apontando que a iniciativa serve como proteção para os policiais que não cometem ilegalidades e é positivo para combater quem quebre protocolos – e tenha provas das irregularidades cometidas.
A Ponte questionou a PM e a SSP, através de sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress, sobre os detalhes do projeto. No entanto, não recebemos respostas da pasta, gerida pelo general João Camilo Pires de Campos, nem da corporação, comandada pelo coronel Marcelo Vieira Salles.