PMs que taparam câmeras e mataram jovem negro no litoral de SP irão a júri popular

Juiz entendeu que imagens contradizem versões dos cabos Paulo Silva e Israel Morais, que mataram Kaique Passos em ação no Guarujá em junho de 2022; Ponte revelou o caso em dezembro do mesmo ano

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) determinou, nesta quinta-feira (28/9), que irão a júri popular três policias militares em ação que matou um jovem negro e deixou outro ferido no Guarujá, no litoral paulista, em junho de 2022.

O juiz André Rossi seguiu o pedido do Ministério Público Estadual (MPSP) e entendeu que existem indícios suficientes contra os cabos Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais Pereira de Souza, que taparam suas câmeras nas fardas e mataram Kaique de Souza Passos, de 24 anos, com sete tiros, e contra o cabo Diego Nascimento Sousa, que disparou contra um rapaz já rendido e pediu para o soldado Eduardo Pereira Maciel se virasse para que sua câmera corporal não registrasse a ação.

Para o magistrado, as imagens que foram capturadas pelos equipamentos, mesmo sem o acionamento de som por Paulo e Israel, contradizem as versões deles de que Kaique estivesse reagindo à abordagem, e a de Diego, já que o aparelho de Eduardo capta o som de um tiro mesmo quando o outro jovem já foi detido pela dupla.

“Ainda que os policiais exerçam atividade de enorme risco à própria integridade física e a de terceiros e tenham recebido a informação de que os indivíduos envolvidos no crime de roubo ocorrido na cidade de Bertioga estavam armados, das provas até então produzidas não é possível concluir, estreme de dúvidas, ao menos nesta fase do processo, que tenham os acusados agido para repelir injusta agressão, atual ou iminente, ainda que putativa [quando a pessoa acha que está em risco], dos suspeitos da prática de roubo, os quais teriam sido atingidos por disparos de arma de fogo quando já detidos e aparentemente sem possibilidade de resistência, fuga ou reação”, escreveu.

Por isso, Rossi determinou que Paulo e Israel sejam julgados por homicídio qualificado com os agravantes de motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima, que podem aumentar a pena do crime, e Diego por tentativa de homicídio qualificado com os mesmos agravantes. Eles estão presos desde 14 de dezembro de 2022, uma semana depois de a Ponte ter revelado o caso, e não poderão recorrer da decisão em liberdade.

Já o soldado Eduardo Maciel foi impronunciado, ou seja, o juiz entendeu que ele não deve ser julgado por um conselho de sentença (grupo de sete jurados da sociedade civil) porque não ficou evidente a colaboração dele com o cabo Diego, que havia ordenado que ele fosse procurar suspeitos do assalto. Ele respondia o processo em liberdade desde junho.

“O fato de o acusado Eduardo ter se afastado do local não é suficiente para se concluir que tenha aderido à conduta do corréu Diego, propiciando meios e modos para sua execução, como narrado na denúncia. Tampouco que tenha se omitido ao não evitar que o disparo contra [sobrevivente, nome omitido pela reportagem] fosse efetuado. Não é possível afirmar com segurança que Eduardo tenha previsto que Diego fosse disparar novamente contra o ofendido [sobrevivente] já ferido e detido, ou que ele pudesse ter impedido a conduta de seu colega de farda, porquanto já se distanciava do local em que teria sido efetuado o disparo”, argumentou o magistrado.

Durante as audiências, o rapaz que sobreviveu aos disparos efetuados por Diego, que vamos chamar de Pedro, disse que participou do roubo com Kaique e outro jovem, que vamos nomear de Henrique, a uma residência de uma família em Bertioga, cidade vizinha a Guarujá, mas não estavam portando armas de fogo e sim uma arma de brinquedo. O trio fugiu com o carro das vítimas e ele afirmou que os policiais atiraram com fuzil contra o veículo durante a perseguição na rodovia. Ao passarem por um bloqueio policial, decidiram abandonar o carro e cada um correu para um lado depois de pularem um muro, sendo que Kaique acabou levando a mochila com o simulacro de arma.

Pedro disse que os policiais continuaram atirando e que ele “não tinha nenhum objeto em mãos e não fez menção de estar armado”. Ele relatou que foi atingido por três tiros, sendo um o atingiu no tórax pelas costas e o segundo na perna, o que o impediu de continuar correndo. O terceiro, segundo ele, foi dado quando já estava caído por Diego à queima-roupa, “que atingiu seu pulmão”, quando se aproximou dele junto com o soldado Eduardo Maciel. No depoimento, consta que Pedro “contou que, após o disparo, Diego se aproximou do declarante [Pedro] e pediu para que levantasse a camisa. Em seguida, o declarante pediu socorro e Diego disse que o declarante estava demorando para morrer” e o outro nada disse. Essa frase foi captada pela câmera da farda.

Diego Nascimento negou que tenha disparado quando o jovem já estava rendido. Ele afirma que revidou tiros com um dos suspeitos que estava correndo na perseguição, mas nenhuma arma foi encontrada pelo soldado Maciel quando foi fazer a revista. Segundo ele, quando declarou “não olha” teria sido direcionado a Pedro quando mandou que ele deitasse no chão de bruços “com a finalidade de diminuir a capacidade de reação e de fuga do preso, porque até então não sabia da gravidade dos ferimentos” e não para que o colega de farda se virasse para deixar de registrar a ação. Ele disse que acionou o socorro e não zombou da vítima ao dizer que estava “demorando para morrer”, mas declarou que “se o fez, foi movido pelo stress da ocorrência”.

Eduardo Maciel disse que era o motorista da viatura com outro colega e que, ao desembarcar do veículo, gritou “parado, polícia”. Henrique estava mais próximo e foi buscar rota de fuga e subiu uma passarela, enquanto Pedro se apoiou na estrutura. Como ele viu outros policiais indo atrás de Henrique, decidiu abordar Pedro, que, ao ser revistado, disse que tinha sido baleado e encontrou dois celulares roubados. Segundo o soldado “no momento em que realizava a busca e colocava Vitor Hugo no chão, outros policiais se aproximaram, sendo que o primeiro a chegar foi o Cabo Nascimento (Diego), que informou que havia efetuado os disparos que atingira aquele indivíduo e dizendo ‘esse é meu, esse é meu’, e ordenou que o interrogando fosse em direção ao outro indivíduo, dizendo ‘vai, vai’ e o empurrando nessa direção”. E, por isso, foi atrás de Kaique, mas não conseguiu alcançá-lo depois que ele pulou um alambrado. Eduardo negou ter se virado de forma proposital para que a sua câmera não registrasse a ação de Diego.

Paulo Ricardo disse que, ao perseguir Kaique, que havia invadido uma residência durante a fuga, “estava à frente, chutou a porta da residência e visualizou Kaique, que levantou as mãos. Nesse momento, pediu para os demais policiais pegarem o escudo e fala algumas vezes para Kaique: ‘Vem, vem, vem’, só que Kaique, ao invés de ir em sua direção, foi em direção à porta da residência, forçando para abri-la. Nesse momento, como tinha muita gritaria no interior da residência, inclusive de criança, foi em direção a Kaique e, ao chegar próximo da metade do corredor Kaique sacou uma arma e, então, o interrogando [Paulo] efetuou disparos. Disse que Kaique apontou a arma em sua direção e, por isso, se jogou para o lado esquerdo, onde tinha algumas bicicletas, tentando se proteger de um iminente disparo de arma de fogo. Nesse momento, o cabo Israel Moraes, que estava na sua retaguarda, efetua alguns disparos e pergunta se o interrogando estava bem, efetuando, após alguns segundos, outros disparos”.

Ele negou ter tapado a câmera, disse que segurou o equipamento “para que, com o impacto do chute, ela não caísse”, pois, segundo o cabo, “os integrantes da Força Tática precisam fixar as COPs [câmeras operacionais portáteis] com fios e barbantes, sendo que em ocorrências anteriores sua COP já caiu”. Isso, contudo, não se sustenta pois os policiais devem verificar os equipamentos antes de sair para a patrulha para que, caso algum problema seja observado, a câmera tem que ser trocada. Ele disse que viu Kaique e a arma ao lado.

O cabo Israel declarou que não tinha total campo de visão do local por ser estreito e que se posicionou ao lado de Paulo. “Em segundos, viu Paulo Ricardo um pouco mais à frente e escutou disparos de arma de fogo. Em seguida, viu Paulo Ricardo indo ao solo. Nesse momento, conseguiu ver o indivíduo com arma de fogo em punho e com ela apontada em sua direção, tendo, então, efetuado dois disparos. Olhou para Paulo Ricardo para ver se ele estava baleado e depois, ao direcionar o olhar para o criminoso, percebeu que ele ainda estava com a arma de fogo em punho, verbalizando por diversas vezes para que ele largasse a arma”, disse.

Ele negou que tenha tapado a câmera que usava “mas em dado momento teve que se abaixar para ingressar no corredor, porque ele era muito estreito e para diminuir sua própria silhueta”.

Na ocasião, além de outros policiais que participaram da ação e as vítimas do roubo, foi ouvido o capitão Fábio Ferreira Cheles, que foi encarregado pela apuração na esfera militar. Ele disse em audiência que, além de ouvir o sobrevivente e mais 10 policiais, “pelo que analisou das imagens, não tem nenhuma dúvida a respeito do seu relatório; de que houve uma execução e uma tentativa de execução contra os ofendidos. Confirmou que não houve comprovação de que as vítimas estivessem em posição de ataque ou oferecendo agressão aos policiais ou, ainda, que estivessem armadas”.

Paulo, Israel, Eduardo e Diego ainda respondem a acusação de fraude processual na Justiça Militar com os policiais militares Diego Souza Luna, Roberson Fabiano Alves Pereira, Gilmar Oliveira do Carmo e Willian Lopes Bulgarelli por causa do uso indevido das câmeras, por não terem feito o acionamento do áudio, cobrirem a câmera ou, ainda, se movimentarem de maneira que o aparelho não registrasse determinada conduta.

Diego Nascimento e Eduardo ainda são acusados de omissão de socorro. Diego Nascimento, Gilmar e Roberson também respondem por falsidade ideológica por não terem relatado disparos que fizeram. Todos são do 21º Batalhão da PM do Interior (BPM/I). O julgamento na Justiça Militar está previsto para 18 de outubro.

Relembre o caso

Em 7 de dezembro de 2022, a Ponte revelou as imagens das câmeras corporais de três policiais na ação que resultou na morte de Kaique Passos. Além dos cabos Israel Morais e Paulo Silva, mostramos também as imagens do equipamento do soldado Diego Souza Luna, que também cobriu a lente com a mão e pediu para para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, que obedece.

Parentes da vítima só descobriram como a ação aconteceu após a reportagem da Ponte. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafou Cassiane dos Santos Reis, 22, que planejava se casar com Kaique no final do ano. “No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirmou.

Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços, o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estaria se rendendo.

Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão (também não dá para ouvir nada pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MPSP) e Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, e ele obedece.

Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrada uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.

Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.

Ajude a Ponte!

O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.

Ainda em junho, 10 dias depois da morte do jovem, a promotora substituta Mariana da Fonseca Piccinini pediu o arquivamento da apuração do homicídio, por ter entendido que os cabos Paulo e Israel agiram “em legítima defesa própria e de terceiros”. Nem ela nem a Polícia Civil tinham solicitado as imagens das câmeras das fardas.

A Promotoria só mudou de ideia depois que o inquérito policial-militar (IPM), conduzido à parte da investigação do roubo, foi remetido à Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por determinação do juiz militar Ronaldo João Roth, em 17 de novembro, para analisar o crime de homicídio, e teve acesso às imagens dos equipamentos.

O que dizem as defesas

Contatamos o escritório Ochsendorf & Lima Claro Advogados, que defende os PMs Israel Morais Pereira de Souza e Diego Nascimento de Sousa. O advogado Renan de Lima Claro encaminhou a seguinte nota:

Nos casos dos crimes dolosos contra a vida, a Constituição prevê que é o povo quem deve julgar. Portanto, o Juiz da primeira fase apenas deve fazer uma análise preliminar e, se há duas versões sobre os fatos, são os jurados que devem decidir qual é a verdadeira. A Defesa, portanto, não recorrerá da decisão de pronúncia, a fim de que os acusados sejam levados tão logo possível a júri popular, a fim de restituir o quanto antes as suas liberdades.

A Ponte buscou o escritório Tauyl & Jardim Advogados, que representa o cabo Paulo Ricardo Silva, e o escritório Malavasi Advogados, que aparece no processo como defesa de Eduardo Maciel, mas não teve retorno.

O que diz o governo

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre as declarações dos policiais sobre as câmeras e como fica a situação profissional de Eduardo Maciel após a decisão de impronúncia, mas até a publicação não houve resposta.

Reportagem atualizada às 19h23, de 29/9/2023, para incluir resposta do advogado Renan de Lima Claro.

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