Fagner e Valdeir são acusados de terem participado de roubo a uma farmácia em SP na madrugada de 25 de janeiro, mas boletim de ocorrência diz que crime ocorreu no dia 27. Nesta quarta-feira (3) familiares foram às ruas pedir justiça
Desde o final de janeiro de 2021, Fagner Jorge Gonçalves, 29 anos, dono de uma loja de roupas e de uma empresa de materiais recicláveis e o reciclador negro Valdeir Cardoso do Amaral, 28 anos, lutam por sua liberdade.
Os dois estão presos no Centro de Detenção Provisória (CDP) Chácara Belém II, localizado no Tatuapé, acusados de terem assaltado uma filial da Drogaria São Paulo, no Cambuci, região central de São Paulo. Nesta quarta-feira (3/3) familiares dos dois se reuniram em um protesto no Cambuci para pedir pela soltura dos dois.
O crime ocorreu por volta das duas da manhã de 26 de janeiro, como mostram as câmeras de segurança do estabelecimento, mas o delegado Marco Antônio Duarte do 8º Distrito Policial (DP) do Brás apontou no boletim de ocorrência que o assalto aconteceu no dia 27 de janeiro, por volta das 21h. Neste dia por volta das 20h50 os policiais faziam uma abordagem de rotina com os acusados.
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As imagens revelam que três homens de máscara e boné entraram na farmácia e roubaram produtos do local. Segundo o boletim, a vítima estava no caixa da farmácia e um dos assaltantes, que não foi identificado, simulou estar com uma arma na cintura, coagindo o funcionário.
Os outros dois assaltantes, que supostamente seriam Fagner e Valdeir, foram à seção de perfumaria e encheram sacos de lixo com produtos. O boletim de ocorrência também aponta que o assaltante desconhecido levou a vítima até o fundo da loja e, junto ao gerente e ao farmacêutico rendidos, roubou medicamentos que estavam em uma geladeira.
No caixa, R$ 200 em dinheiro também foram roubados e os três assaltantes teriam fugido em um carro da marca Fiat, do modelo Palio Fire. O documento da Polícia Civil ainda aponta que foram roubados objetos no valor de R$ 80 mil, mas não menciona quais objetos foram levados.
Na noite do dia 27 de janeiro, Fagner e Valdeir estavam voltando do trabalho, quando foram surpreendidos por uma abordagem dos policiais miliatres Felipe Sojo do Nascimento e Sheymaxwell Kelwin Honorato Danilel. A ação durou cerca de duas horas e na sequência os dois foram encaminhados para a delegacia onde passaram a noite, sob a acusação de terem participado do assalto.
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De acordo com o boletim de ocorrência, o Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) teria descoberto qual era a placa do veículo que serviu para a fuga dos assaltantes, gerando então a ocorrência no bairro Jardim da Glória, no Cambuci, na noite do dia 27 de janeiro.
Os policiais fizeram uma abordagem de rotina no veículo de Valdeir que se encontrava no bairro Jardim da Glória. No carro não foram localizados os objetos nem o dinheiro roubado. A abordagem, que durou mais de duas horas, resultou no suposto reconhecimento do veículo que estaria na hora do crime.
Dentre as testemunhas do roubo, o delegado Marco Antônio Duarte ouviu apenas o profissional do caixa da farmácia, que fez o reconhecimento presencial de Valdeir e Fagner e confirmou a autoria dos dois no crime, apesar de os assaltantes utilizarem máscaras e bonés.
Imagens mostram Fagner em casa
A prisão em flagrante feita pelo delegado na madrugada de 28 de janeiro foi convertida em prisão preventiva pela juíza Carla Kaari, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), no mesmo dia. No início de fevereiro os advogados Sheyla da Cruz Silva e Vinícius Jonathan Caetano solicitaram a liberdade provisória dos dois, que foi negada em 25 de fevereiro pelo juiz Carlos José Zulian. Em 8 de fevereiro a Promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), Karina Scutti Santos, denunciou Fagner e Valdeir.
No dia 26 de fevereiro os advogados tentaram novamente o relaxamento da prisão em flagrante, mas ainda não houve resposta do TJ. “Nós pedimos que o juiz reconsiderasse a decisão que indeferiu a liberdade provisória dos acusados à vista das imagens das filmagens que foram juntadas recentemente no processo. O Ministério Público está tentando justificar a prisão dos acusados a qualquer preço. Eles mesmos reconheceram o erro nas datas e simplesmente mudaram a versão dos fatos que eles mesmos reconheceram”, diz o advogado Vinícius Jonathan Caetano.
Para ele, a acusação tenta justificar a conduta do delegado. “O delegado de polícia colocou no inquérito que os fatos aconteceram no dia 27 e na verdade aconteceram no dia 26. Mas por que ele colocou que aconteceu no dia 27? Para poder caracterizar a situação de flagrante, um flagrante que não aconteceu”, afirma Vinícius.
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Os advogados de defesa usam como prova imagens das câmeras de segurança do prédio de Fagner que mostram que, na noite do crime, ele e a esposa descem o elevador e voltam pouco tempo depois, trazendo o jantar. Fagner só sai novamente às 7h da manhã do dia 26 de janeiro.
No processo a defesa também pede em ofícios ao Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) e ao Batalhão da Polícia Militar as filmagens das câmeras dos policiais e os relatórios que mostram a presença do veículo na hora do crime.
Vinícius também lembra que o reconhecimento foi feito de forma induzida pela polícia. “O reconhecimento feito pelo delegado não respeitou o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) que fala que o acusado deve ser colocado em conjunto com mais pessoas para que a vítima faça o reconhecimento. Neste caso, ele simplesmente pegou os dois réus, colocou na parede e falou que eram eles, ou seja, os acusados não foram colocados com mais pessoas para que o reconhecimento deles pudesse ser feito corretamente. Esse reconhecimento foi induzido pela polícia”.
Nesta quarta-feira (3/3) a promotora do Ministério Público, Fernanda Riviera Czimmermann alegou por meio de nota que “as razões que fundamentaram a decretação judicial da prisão dos acusados estão devidamente detalhadas nos autos do processo, que tramita publicamente. As alegações apresentadas pela defesa se confundem com o mérito da ação penal, que ainda se encontra em fase inicial, e serão apreciadas, oportunamente, com isenção e atenção, pelo Ministério Público, juntamente com todas as demais provas”.
Também nesta quarta o Tribunal de Justiça abriu vistas para o Ministério Público, que voltou a alegar em novo parecer que não houve irregularidades na prisão dos réus. “A prova de materialidade e os indícios de autoria continuam presentes, especialmente o reconhecimento realizado pelo representante da vítima”, diz a manifestação.
O advogado Vinicius questiona essa nova alegação. “A promotora não está preocupada com a legalidade do processo, ela está convencida da materialidade da autoria do crime com base na simples palavra da vítima. Ela está tentando justificar um flagrante que não aconteceu. Os acusados ficam à mercê da própria sorte, eles querem culpar as pessoas a qualquer preço”.
Para a advogada criminalista Fernanda Peron, da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, a prisão de Fagner e Valdeir, por não ter respeitado os critérios para a prisão em flagrante, é ilegal. “A prisão em flagrante é aquela que acontece na hora do crime ou logo após, o que significa que não pode haver intervalo entre o cometimento do crime e o início da perseguição do suspeito. Se houver perseguição, esta pode durar vários dias, desde que seja ininterrupta. Mas isso não se confunde com a procura ou descoberta do criminoso, que é tarefa de investigação de atribuição da Polícia Civil, não militar. Ou seja, se precisou mandar foto para a vítima reconhecer, é porque não houve perseguição e consequentemente não houve flagrante. A prisão foi ilegal.”
“Casos assim têm acontecido cada vez mais, em que a Polícia Militar seleciona alguém andando na rua, sem qualquer parâmetro ou justificativa objetiva, e diz que estava em flagrante delito, mesmo quando a pessoa não estava fugindo ou com objetos do crime”, completa.
Familiares pedem Justiça
A prisão que já dura mais de um mês provocou revolta entre os familiares de Fagner e Valdeir, que foram às ruas do Cambuci no fim da tarde desta quarta-feira (3/3) exigir a liberdade de Fagner e Valdeir. O protesto foi organizado pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.
O ato contou com a presença de aproximadamente 20 pessoas que saíram da Rua Dr. Valentin do Amaral e foram até a Drogaria São Paulo, na Avenida Lins de Vasconcelos. Os familiares carregavam faixas com mensagens como “Justiça para Fagner” e “Não vamos nos calar”.
Triste, a empresária, mãe de dois filhos e esposa de Fagner, Tamiris Aparecida de Oliveira, 24 anos, não se conforma com a prisão de seu marido. “Estou passando um dos piores momentos da minha vida, pois tínhamos acabado de nos mudar, fizemos planos, nossos filhos perguntam dele todos os dias. Estou sem ânimo de fazer nada. Como pode um cara trabalhador estar preso há quase 40 dias? Está muito difícil mesmo”.
Apesar da presença de poucas pessoas, cerca de quatro viaturas da PM acompanharam o ato que acabou de forma pacifica. Com a avenida fechada durante a paralisação dos semáforos os manifestantes pediam aos motoristas e motoboys ajuda para divulgar o caso e distribuíam panfletos sobre o caso.
Já a amiga e ex-esposa de Valdeir, Vanessa Regina de Oliveira, de 41 anos, diz que não há justiça. “A profissão dele é frentista, ele nunca pegou nada de ninguém. Ele nunca precisou disso, ele escolheu trabalhar e isso é que dói mais. Ele sai de manhã para trabalhar e volta no início da noite e agora é acusado de um crime que não cometeu. É muita injustiça. É muito triste você ver o nosso filho chorando sabendo que o pai dele está preso”.
Na visão dela, o Estado vem se omitindo sobre a prisão de Fagner e Valdeir. “Eu fico indignada com a injustiça, com a falta de atenção do Estado. O reconhecimento foi totalmente fora do que diz a lei, ele está há mais de 30 dias preso enquanto as pessoas que fizeram o assalto estão soltos por aí”.
Para a psicóloga Marisa Feffermann, articuladora da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, a manifestação desta quarta tem por objetivo “demonstrar para o Estado, que a sociedade está organizada para defender os seus direitos”.
Ela ainda diz que uma prisão injusta pode ocorrer com qualquer pessoa. “A cultura da violência, o individualismo e o medo promovem a falta de empatia com a dor do outro. A proposta da manifestação pública é que os moradores e moradoras da região se sensibilizem com a situação da prisão forjada. A proposta é demonstrar que a violência do Estado pode ocorrer com qualquer um, em especial se for negro, assim o compromisso e exigência de justiça é de todos”.
Outro lado
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, por meio da assessoria de imprensa terceirizada InPress, não respondeu porque a Polícia Civil não enviou as imagens e documentos solicitados pelos advogados que mostrariam o carro no local do crime. A pasta também não respondeu porque o boletim de ocorrência afirma que o flagrante ocorreu no dia 27 às 21h e nem como foi feito o reconhecimento, uma vez que os assaltantes estavam de máscara e boné.
Até a publicação desta reportagem, o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que “o juiz que conduz esse processo é o dr. Carlos José Zulian. Em sua decisão, de 26/02, o magistrado considerou os depoimentos das testemunhas, as declarações da vítima e o Boletim de Ocorrência”.
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