Polícia Civil de SP ignora contradições ao apresentar suposto assassino de Dom e Bruno

Suspeito cometeu vários erros sobre a geografia da região amazônica e as condições do crime, mas mesmo assim foi apresentado pela polícia como um dos autores

Bruno Pereira e Dom Phillips | Foto: Gary Carlton/The Observer

Quando recebemos a informação na manhã desta quinta-feira (23/6) de que um homem havia se entregado à polícia em São Paulo para confessar ter participado na morte do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, no Vale do Javari, extremo oeste do estado do Amazonas, ficamos com um pé atrás — como se diz, “quando a esmola é demais, o santo desconfia”. O que faria um homem se entregar à polícia de bom grado, semanas depois das mortes, numa cidade a milhares de quilômetros de onde ocorreu o crime?

Ainda assim, a fonte da Polícia Civil paulista insistiu: “o depoimento parece verossímil”. Não foi o que pensamos assim que recebemos da mesma fonte policial o que seria um trecho do depoimento de Gabriel Pereira Dantas, 26, que teria procurado policiais militares na Praça da Sé, no centro da capital paulista, na manhã desta quinta-feira (23/6) para confessar sua participação nos assassinatos, segundo disse, mais tarde, o delegado Roberto Monteiro, titular da seccional do centro. Para além da sequência dos fatos em si, saltavam aos olhos uma série de contradições geográficas relatadas por Gabriel em seu depoimento no 2º DP (Bom Retiro), que está funcionando no prédio do 77º DP (Santa Cecília), e que podem ser verificadas por qualquer pessoa que se desse ao trabalho de abrir um mapa da região amazônica.

Gabriel diz que a morte de Bruno e Dom ocorreu no Rio Madeira rio Madeira, o maior afluente do rio Solimões, que nasce na Bolívia, entra em Rondônia, abrange a parte sul do Amazonas e tem a foz na parte central do estado, a mais de 1.200 km, em linha reta, do Rio Itacoaí, onde Bruno e Dom desapareceram. Ele ainda afirmou que os assassinatos aconteceram na comunidade Santa Isabel, mas no Amazonas não existe nenhuma “Santa Isabel” na região do Vale do Javari — talvez se referisse ao município de Santa Isabel do Rio Negro, no noroeste do estado, distante 1.000 km em linha reta da Terra Indígena Vale do Javari. Ou se confundiu com a comunidade São Rafael, por onde as vítimas passaram.

Trechos do depoimento de Gabriel obtido pela Ponte | Foto: Reprodução

Por fim, o mais fantasioso dos arroubos geográficos do depoimento de Gabriel é sua rota de fuga. Após o crime, ele teria viajado a Santarém, no Pará, distante 1.800 km em linha reta do Vale do Javari, sem identificar a rota tortuosa que teria que seguir para chegar. De lá, teria voltado ao oeste para Manaus, capital do Amazonas, seguido para Rondonópolis, no Mato Grosso, e só então partido de ônibus para São Paulo. É um caminho extremamente difícil, longo, demorado e caro de ser realizado, além de contraintuitivo — ainda mais para terminar se entregando na Praça da Sé.

Além do passeio, Gabriel ainda se contradiz em vídeos distribuídos à imprensa, onde fala que teria espalhado pertences de Bruno e Dom pela mata (os objetos foram encontrados afundados no rio), além de dizer que teria ido à região onde ocorreu o crime fugindo do Comando Vermelho, que, segundo reportagens, é uma das facções que disputam justamente o controle territorial no Vale do Javari.

Sem apontar as contradições presentes no depoimento, a Polícia Civil de São Paulo se adiantou para sair divulgando categoricamente ter preso um novo assassino de Bruno e Dom. Em entrevista à Rádio Bandeirantes, Roberto Monteiro, delegado da Seccional Centro, afirmou que “ele (Gabriel) estava junto na lancha voadora de onde foram disparados os tiros contra o ambientalista e o jornalista inglês, e depois ele ficou responsável por esconder os pertences das vítimas no meio da mata. Ele fugiu primeiro para Roraima e depois para São Paulo”.

Outros veículos noticiaram a informação como se fosse um fato comprovado. “Quarto suspeito da morte de Bruno e Dom é preso em São Paulo”, soltou o R7. Na Folha de S. Paulo, a chamada é “Polícia de SP prende outro suspeito do assassinato de Bruno e Dom”. O Nexo diz que “4º suspeito de matar Dom e Bruno se entrega à polícia em SP”. O jornal Estado de São Paulo segue na mesma toada: “Bruno e Dom: quarto suspeito de participar do assassinato se entrega e é preso em SP”. O G1 foi mais cauteloso e se ateve aos fatos: “Homem se apresenta à polícia de SP dizendo que participou dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no AM”.

A Polícia Civil de São Paulo não é responsável pela investigação do caso, que está nas mãos da Polícia Federal, mas divulgou foto, vídeo e dados pessoais de Gabriel (Luiz Bacci, apresentador da Record TV, chegou a apresentar foto de Gabriel com o número do CPF em um stories do Instagram), além de ter convocado uma coletiva de imprensa às 16h30 desta quinta (depois de muitos veículos já terem noticiado a prisão) para prestar declarações sobre a ida do homem ao distrito policial. Todos os jornalistas ali pensaram que poderiam questionar a respeito da aparição dele e tirar dúvidas sobre o depoimento, mas não foi permitido fazer perguntas.

“É uma versão que tem fundamento, ele realmente é de Manaus, ele relata com muita riqueza de detalhes o que ele fez durante o período em que foi até Atalaia do Norte”, declarou o delegado Roberto Monteiro, adotando um tom menos assertivo, ao lado da delegada Maria Cecilia Dias, do 2º DP, que pediu a prisão temporária (30 dias em casos de crimes hediondos, que podem ser prorrogados) de Gabriel. “Ele relata também como saiu do estado do Amazonas, depois se dirigiu ao estado do Pará, depois ao Mato Grosso do Sul, conseguiu uma carona com um caminhoneiro de Rondonópolis até São Paulo e ficou uns dias sem condições de permanecer, sem ter dinheiro, sem ter quem o abrigasse”, prosseguiu.

Monteiro informou que Gabriel conhecia Pelado, mas, em nenhum momento da coletiva, disse que ele teria relatado estar jurado de morte pelo Comando Vermelho “por uma questão de drogas” e, por isso, estaria fugindo conforme trecho do depoimento que deu na delegacia. O delegado disse que foram confirmados alguns álibis do homem, como o caminhoneiro que teria dado carona. “Ele está sendo ouvido na cidade de Rio Verde, em Goiás, pelo doutor Danilo que é o delegado da 8ª Delegacia Regional daquele município”.

O delegado declarou que agora aguarda o Tribunal de Justiça analisar o pedido de prisão temporária e o encaminhamento do caso. “Nós não estamos abertos a perguntas porque cumprimos aqui a nossa missão constitucional e legal de receber o relato de uma pessoa que confessa a prática de um duplo homicídio, ele participou da ação, e cumprimos nosso papel constitucional e legal de representar pela prisão dessa pessoa, autor confesso, ao Poder Judiciário Paulista”.

O que diz a Polícia Federal

Procuramos a assessoria do órgão a respeito sobre a prisão de Gabriel e questionamos a respeito da investigação do caso e aguardamos resposta.

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O que diz a Polícia Civil do Amazonas

Questionamos a assessoria se Gabriel alguma vez foi investigado por vínculo com organizações criminosas e/ou tráfico de drogas e atuação no Vale do Javari, mas não tivemos resposta.

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