Polícia leva jornalista e ativistas para delegacia por ‘perturbação de sossego’ em SP

Entre as 22 pessoas que foram levadas para o 77º DP estavam médico e fotógrafo que atuam na região conhecida pejorativamente como “Cracolândia”, no centro da capital paulista; “prisão sem embasamento”, diz advogado

O delegado Severino Vasconcelos no momento da detenção dos ativistas | Foto: João Leoci

O muro dos fundos do 77º DP, localizado na Rua Helvétia, se tornou um dos principais pontos de uso e comércio de drogas do centro da cidade de São Paulo. Por conta disso, o psiquiatra Flávio Falcone, o fotógrafo João Leoci e outras 20 pessoas que trabalham com acolhimento e redução de danos para as pessoas que vivem nas ruas estavam no local na tarde desta quinta-feira (1/9), foram detidos pela Polícia Civil e levados para delegacia que é vizinha do “fluxo”, nome dado popularmente à cena aberta de venda e uso de drogas na região.

O delegado Severino Vasconcelos, titular da delegacia, informou para o grupo que eles estavam sendo detidos sob alegação de perturbação da ordem pública. No mesmo momento em que foram levados para “prestar esclarecimentos”, era realizada pela Polícia Civil e pela Guarda Civil Metropolitana mais uma ação da Operação Caronte, que tem o objetivo de desfazer os pontos de venda de drogas do centro.

“Eles já chegaram atirando com balas de borracha e soltando bombas. Eu me identifiquei como jornalista e mesmo assim tive uma espingarda calibre 12 apontada para o meu rosto”, contou João Leoci, que acompanhava a ação do grupo comandado por Flávio Falcone, que uma vez por semana, vestidos de palhaços, fazem atendimentos na região central da cidade.

“Semana passada essas pessoas testemunharam a agressão que um guarda civil fez contra uma morador de rua que teve o nariz quebrado. Isso ocorreu bem em frente ao Teatro de Contêiner, na região da Luz. O grupo foi ameaçado e houve tentativa de invasão por parte dos GCMs no local”, explicou a advogada Juliana Valente, que faz parte da comissão de direitos humanos da OAB.

Segundo Luiz Carlos Zaparoli, chefe dos investigadores da Seccional Centro, foram presas 12 pessoas na ação de hoje. Como consequência da operação, boa parte do grupo que estava concentrada na Helvétia foi para a Rua Conselheiro Nébias, na altura da Rua Aurora, outro ponto de consumo e venda de drogas do centro de São Paulo.

Incomodados com o maior número de pessoas na região, moradores e comerciantes locais colocaram fogo no meio da via pública como forma de protesto e para tentar dispersar o grupo. “Depois que eles foram retirados da Praça Júlio Prestes, a maior parte deles ficou aqui. São cerca de 300 pessoas durante o dia e a noite são quase 500”, afirmou um comerciante que tem um loja na Conselheiro Nébias e preferiu não se identificar.

Ativistas detidos no 77º DP, na região central da capital paulista | Foto: João Leoci

Após passarem cerca de quatro horas detidos na delegacia, os ativistas foram liberados. “Foi uma tentativa de criminalização da redução de danos e das pessoas que defendem os usuários e estão denunciando as violações constantes de direitos humanos que essa operação está fazendo”, disse Flávio Falcone, psiquiatra e médico-palhaço que atua na região, ao deixar o 77º DP.

Flávio atua como médico-palhaço nas ruas do centro de SP atendendo pessoas em situação de vulnerabilidade desde 2007 e já atuou no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que presta atendimento ambulatorial e multidisciplinar para dependentes químicos e pessoas em situação de vulnerabilidade, em São Bernardo, na Grande São Paulo. O trabalho rendeu indicação para compor a equipe do extinto De Braços Abertos, programa do então prefeito Fernando Haddad (PT), que tinha por objetivo implementar a redução de danos na região da Luz, conhecida como “Cracolândia”. Na sequência, acabou sendo contratado para o Recomeço, na gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB), onde estava trabalhando até fevereiro de 2019.

Todas as quintas-feiras, Flávio e sua equipe percorrem as ruas do centro de São Paulo com uma bicicleta que carrega uma caixa de som que é denominada Rádio Kawex, como forma de ampliar a comunicação com as pessoas que fazem uso de drogas na região apontando os benefícios da redução de danos no consumo de substâncias.

O advogado criminalista Flávio Campos, que acompanhou o grupo durante a tarde, garante que houve excessos por parte do delegado Severino Vasconcelos e por isso fará uma denúncia na Corregedoria da Polícia Civil contra o titular da unidade policial.

“Foi uma prisão sem embasamento. Ele afirmou que trouxe as pessoas para cá para fazer uma averiguação. Não existe esse expediente de trabalho por parte da polícia. Não tem nenhum inquérito aberto, o delegado mesmo admitiu que fez isso baseado nas suas próprias suposições.”

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O grupo Craco Resiste, que atua junto às pessoas que fazem uso de drogas na região central de São Paulo, fez uma nota repudiando a ação feita pela polícia nesta quinta-feira. “Esse é mais um episódio da perseguição contra as pessoas que lutam pelos direitos humanos no centro de São Paulo. Um completo abuso, que se soma às ameaças, inquéritos sem pé-nem-cabeça e prisões arbitrárias”, afirma um trecho do texto.

Outro lado

Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a 1ª Seccional (Centro) realizou uma operação na região da “Cracolândia” e encaminhou um grupo de 15 pessoas ao 77ºDP para elaboração de um BO de “perturbação de sossego”. Segundo a pasta, moradores da região reclamam com frequência do som alto que ocorre todas as quintas-feiras. A caixa de som foi apreendida e o grupo liberado.

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