Polícia reprime com Caveirão cultura da favela no Rio de Janeiro

    Somente no último mês, três casos de destruição de equipamentos de som por PMs a bordo de Caveirão em favelas do Rio durante eventos musicais foram registrados pelo DefeZap

    Reunião de funkeiros na favela Praia de Ramos, na Zona Norte do Rio, para discutir formas de resistência contra a repressão cultural | Foto: Luiza Sansão/Ponte Jornalismo

    Eram aproximadamente oito e meia da noite quando a reunião começou, na terceira segunda-feira de abril (17/04). No salão da escola de samba Boca de Siri, na favela Praia de Ramos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, 26 profissionais do funk — e dois meninos pequenos, filhos de dois deles , distribuíram-se em cadeiras, formando um círculo, para discutir a questão que tem sido motivo de preocupação constante a cada evento em que trabalham: a violenta repressão do Estado.

    Todos são homens, com idades entre 35 e 60 anos e muitos anos de funk no currículo. O ambiente é de descontração, apesar do peso do assunto que é o motivo principal de estarem ali. Tão logo a reunião começa, os sorrisos dão lugar à seriedade que a situação exige: é consenso que a repressão cultural nas favelas tem prejudicado diretamente o trabalho na produção de baile funk de cada um deles.

    A maioria dos presentes na roda possui equipamentos de som que custam caro. Muitos deles, que ganham a vida tocando em bailes em diversas comunidades, relatam grandes prejuízos causados pela ação da polícia, que chega destruindo a aparelhagem. Segundo eles, a PM utiliza quatro formas específicas de depredação de equipamentos: fuzilamento, incêndio, facadas (para rasgar caixas de som, por exemplo) e a mais comum, que é derrubar tudo com o Caveirão veículo blindado da Polícia Militar.

    “Na equipe de som nós somos massacrados. Somos tratados como se fôssemos bandidos da favela. E nós só estamos ali fazendo o nosso trabalho, levando alegria ao povo”, disse M., que chegou a desistir de trabalhar depois de anos de repressão policial e caixas de som depredadas. “Uma e quarenta da manhã, vou bater boca com polícia, com um fuzil no meio do peito?”, argumenta ele, ao relatar um episódio em que, com medo, precisou pagar R$ 3.000 mil a policiais como suborno, anos atrás.

    Equipamentos de som derrubados por PMs a bordo de Caveirão na comunidade Parque das Missões, em Caxias, Baixada Fluminense. | Foto: Reprodução/DefeZap

    As histórias narradas por ele não são diferentes das dos demais, todos com longa trajetória como donos de equipamentos de som contratados para eventos diversos em favelas. Há desde casos de intimidações e ameaças até de tortura e extorsão por policiais. Todos em situações nas quais eles apenas faziam o seu trabalho, sem nenhuma prática criminosa.

    “Eles [policiais] entram na favela e acham que você é bandido. Nunca fui bandido. Sempre convivi com vários, porque fui criado na favela e não tem como não conviver. Mas segui meu caminho sendo um homem com H maiúsculo como minha mãe me ensinou. Mesmo assim, tive meus equipamentos quebrados muitas vezes”, disse um deles.

    Importante liderança no movimento do funk, Mc Leonardo, com 41 anos de idade e 25 como funkeiro profissional, é um dos presentes na reunião. Ele o irmão, Mc Junior, formaram na década de 1990 uma das principais equipes do funk carioca, tendo sido o “Rap das Armas” (1995) um de seus principais sucessos, sobretudo depois de  ser incluída na trilha sonora do filme “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha.

    “Os donos de equipes estão aí, todos chegando aos seus 60 anos, vendo o que fizeram nos últimos 40 pela cultura do Rio de Janeiro se diluir. A relação que existe hoje, de um agente de segurança pública com quem está fazendo um evento é ‘não quero ver seu papel [alvará], você tem cinco minutos pra desligar, se não vou quebrar tudo’. Isso é quando fala, porque tem os que não falam, que chegam e passam por cima das equipes de som”, diz Mc Leonardo, em entrevista à Ponte Jornalismo. “Da mesma forma que um policial dá três tiros em um suspeito, ele passa por cima de uma equipe de som”, afirma.

    Destruição de equipamentos pelo Caveirão em favelas

    Somente no último mês, três casos de destruição de equipamentos de som por policiais militares em favelas do Rio durante eventos musicais foram registrados pelo DefeZap, serviço que permite o envio de vídeos-denúncias de violações de direitos praticadas por agentes do Estado e encaminha as denúncias aos órgãos competentes.

    Nas três ocasiões, PMs utilizaram o Caveirão para derrubar os equipamentos de som das equipes.

    Primeira denúncia: na noite de 18 de março, um blindado derrubou equipamentos de sonorização da empresa de sonorização EDG, contratada para tocar em uma festa de aniversário no Bairro Carioca, condomínio do “Minha Casa, Minha Vida” localizado em Triagem, Zona Norte do Rio. Também atropelou mesas e cadeiras do evento, e lançou bombas de gás lacrimogêneo contra as pessoas, como mostra o vídeo recebido pelo DefeZap:

    “O Caveirão já chegou derrubando tudo” por volta de uma e meia da madrugada, afirma o dono da empresa, Edgar Rodrigues, de 52 anos, em entrevista à Ponte. Uma semana antes, em um evento de pagode na mesma comunidade, alguns policiais chegaram a pé e “se posicionaram atrás de carros e de árvores, todos de fuzil na mão”. Em seguida, um blindado empurrou o palco e derrubou algumas caixas, segundo o produtor cultural, que recolheu seus equipamentos e foi embora.

    Mas na noite de 18 de março seus equipamentos foram completamente destruídos. “O blindado chegou e já passou por cima das mesas que estavam ao ar livre, derrubou a primeira torre de caixas de som, foi mais pra frente, manobrou, voltou devagar. Os moradores começaram a jogar cadeiras e os policiais lançaram bombas de gás, foram lá fora, manobraram e voltaram de novo, no meio do palco. Aí eles conseguiram acabar com o som todo, destruíram o palco todo”, relatou.

    O prejuízo do produtor cultural, que trabalha com equipamentos de som há 33 anos, foi de cerca de R$ 115 mil. Desde então, ele não pôde trabalhar, porque seus equipamentos estão completamente danificados. Para dar conta dos contratos já firmados, ele tem tido que alugar de outras empresas os equipamentos que tinha até serem destruídos pela PM.

    Segunda denúncia: na noite de 24 de março, uma sexta-feira, durante um evento de funk no Parque das Missões, favela em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, policiais militares agiram com a mesma violência, derrubando os equipamentos de som da equipe que tocava no evento. “Covardia, ninguém tem nada a ver com isso e eles derrubando o trabalho dos caras”, diz a pessoa que gravou a cena:

    Terceira denúncia: em outro evento de funk, novamente em Caxias, na Baixada, desta vez na comunidade da Prainha, outra equipe teve seus equipamentos depredados por PMs a bordo do Caveirão, por volta das 22h do dia 15 de abril, um sábado.

    “Quebrou a equipe quase toda, a metade da equipe foi quebrada, tá ligado?”, lamenta um homem, em áudio recebido pelo DefeZap. “Gente, não vem pra Prainha. Caveirão derrubou equipe no chão, a gente tá preso aqui, não tem como sair, tá tudo cercado. Não vem ninguém, pelo amor de Deus, se tiver vindo volta!”, diz uma mulher em outro áudio. Em um terceiro áudio ainda, outro homem conta a um amigo que tinha um homem urinando dentro de um banheiro químico quando o Caveirão empurrou o banheiro, jogando-o longe.

    Todas as provas de violações recebidas pelo DefeZap foram encaminhadas ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Os dois primeiros casos já são objetos de processo do Ministério Público: MPRJ nº 2017.0026.8746 (Bairro Carioca, em Triagem) e MPRJ nº 2017.00299395 (Parque das Missões, Caxias), respectivamente. O processo relativo à terceira ocorrência (Prainha, Caxias) também já foi encaminhado e será aberto nos próximos dias.

    Outro lado

    A Ponte Jornalismo questionou a PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro), por meio de sua assessoria de imprensa, sobre cada uma das situações em que policiais militares destruíram equipamentos de sonorização nas favelas:

    – No evento de pagode no dia 18 de março no Bairro Carioca, em Triagem, Zona Norte do Rio.

    – No evento de funk no dia 24 de março no Parque das Missões, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

    – E no evento de funk no dia 15 de abril na Prainha, também em Duque de Caxias.

    A assessoria de imprensa da PMERJ informou que “os batalhões das áreas (3° e 15°) instauraram uma averiguação para apurar todas as circunstâncias destes casos. Os processos estão em andamento”.

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