Policial matou adolescente ao investigar crime do qual foi vítima

    Em abril, três pessoas tentaram roubar a moto de Carlos Eduardo Moretti; um mês depois, o escrivão investigou suspeitos e matou Juan Oliveira Ferreira

    Juan morreu na cozinha de casa | Foto: Arquivo/Ponte

    O policial civil que matou o adolescente Juan Oliveira Ferreira, 16 anos, no dia 22 de maio, no Jardim Elba, zona leste da cidade de São Paulo, investigou uma tentativa de roubo a moto da qual ele mesmo foi vítima, ocorrida um mês antes.

    Carlos Eduardo Moretti, 38 anos, é escrivão do 2º Distrito Policial da cidade de Santo André, na Grande São Paulo. No dia 22 de abril, ele estava em sua moto Kawazaki quando três homens tentaram roubá-la, conforme relato em boletim de ocorrência registrado na mesma unidade policial.

    Moretti reagiu e baleou dois deles. João Victor Angelo Silva, 19 anos, morreu no local, enquanto os outros dois fugiram em outra moto. A ação aconteceu na avenida dos Estados, em Santo André.

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    Um mês depois, em 21 de maio, um dos suspeitos foi preso pela PM junto de outro jovem. Eles usavam uma moto e teriam uma arma calibre .38, segundo os policiais.

    O crime foi registrado na delegacia onde Carlos trabalha, o 2º DP da cidade. Ele identificou um dos rapazes como um dos autores da tentativa de roubar sua moto em abril.

    Em depoimento ao delegado Paulo Rogério Dionísio, esse jovem teria revelado onde vivia o terceiro suspeito de envolvimento no crime do qual o policial civil foi vítima. Essa pessoa seria Juan.

    O depoimento aconteceu às 23h34 do dia 21 de maio. Carlos, então, segundo o registro da ocorrência, se juntou a outro policial do 2º DP e foi verificar a denúncia. A ação aconteceu entre 19h30 e 20h do dia seguinte.

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    Há duas versões para a morte de Juan: uma de que ele estaria armado, do lado de fora de casa, como apontado pela polícia; a outra, das testemunhas, é de que ele estava dentro de casa.

    Segundo Moretti, ele teria chegado ao endereço da pessoa suspeita e Juan disparou dois tiros, forçando o seu revide e causando a morte.

    Juan tem cinco irmãos e três deles — de 3, 11 e 12 anos — estavam em casa na hora da ação. Eles afirmam que o agente entrou no local e mandou o adolescente ajoelhar. Outro policial verificou o quarto em que as crianças estavam e, aí, eles ouviram os disparos. Eles negam que o irmão estivesse armado.

    O homem teria chegado ao local com uma caminhonete branca, segundo relato de testemunhas. Uma câmera de segurança em uma rua do Jardim Elba registrou um veículo com as mesmas características sendo escoltado por viaturas da PM na mesma noite.

    A delegada Raquel Kobashi, presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo), explica que não há empecilhos para policiais investigarem crimes dos quais eles sejam vítimas. A única circunstância é estar dentro da área de atuação de sua delegacia.

    “Caso o policial integre o setor de homicídios, ele não pode investigar um roubo ou tentativa de roubo ao qual ele foi vítima”, exemplifica. A proibição está na Lei Orgânica que define as atribuições da Polícia Civil.

    Para ela, ainda que não haja uma vedação legal para impedir a participação, existe uma “nuance de subjetividade”. “Esse policial não estará imparcial na investigação”, diz.

    Quanto ao fato de Moretti ser um escrivão e não investigador da Civil, Kobashi afirma ser normal o acúmulo de funções na corporação pela falta de policiais. “Até delegado atua como escrivão para registrar B.O.s”, justifica.

    A participação do escrivão nas apurações é vista com preocupação por Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da PM. Ele destaca o fato de o jovem ter sofrido sete tiros, como relatado pela mãe de Juan.

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    “Estranha o fato de uma ocorrência com tantos tiros, a pessoa reconhecida como vítima e a vítima vai lá apreender. Pode levar alguém a supor que houve uma morte por vingança. É hipótese. Sete tiros é muito tiro”, frisa.

    A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, administrada pelo coronal João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a participação do policial civil Carlos Eduardo Moretti na ação que terminou com a morte de Juan Oliveira Ferreira.

    A pasta não explicou sobre a legalidade da ação de Moretti, nem se ele segue sua rotina normal de trabalho.

    “Todas as circunstâncias dos fatos são investigadas por meio de inquérito policial instaurado pela Divisão de Homicídios do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). As armas utilizadas na ação foram apreendidas e encaminhadas à perícia”, sintetiza a SSP.

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