Policial penal confunde pente com arma e mata jovem dentro de presídio

Mãe busca justiça para Matheus Filgueira, de 19 anos, que foi baleado no olho dentro da Penitenciária I José Parada Neto por agente que justificou ter estranhado “volume” na cintura dele. MP-SP pediu arquivamento do caso

Matheus Justino Filgueira tinha voltado há dez dias da saída temporária do Dia das Mães. Policial penal que fez disparo disse ter visto um ‘objeto escuro’ em sua cintura, que seria um pente de cabelo | Foto: Arquivo pessoal

“Hoje eu vivo à base de remédio. Não tenho mais meu filho, não tenho emprego, não sou mais uma pessoa digna. Minha vida acabou”, desabafa Suelen Justino do Nascimento, de 35 anos. Em abril de 2023, ela perdeu o filho Matheus Justino Filgueira, 19. O jovem levou um tiro no olho, disparado por um policial penal dentro da Penitenciária I José Parada Neto, em Guarulhos, na Grande São Paulo.

A justificativa do agente foi de que Matheus fez menção de estar armado. Depois de ser atingido, um pente teria sido encontrado em sua cintura.

Para o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), o policial penal Gilson José Ferreira agiu em legítima defesa. Já a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que representa a família de Matheus, recorreu e agora espera uma manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ). O órgão vê o arquivamento do caso, proposto pelo MP-SP, como incabível. 

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Enquanto aguarda uma decisão, Suelen sofre pela ausência do filho mais velho. A última vez que teve contato com Matheus em vida foi na saída temporária do Dia das Mães. O jovem cumpria pena em regime semiaberto, mas não deixava a unidade diariamente por não ter emprego ou estudo fora. Por isso, a ida para casa teve um tom ainda mais especial.

O que a família não sabia é que aquela era uma despedida. 

Dois dias antes de morrer, em 1º de abril, Matheus passou por atendimento no ambulatório da unidade. O prontuário médico dizia que ele se queixava de um “problema espiritual”. A recomendação é que o jovem passasse por atendimento psiquiátrico.

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Em depoimento, Suelen contou que o filho estava tendo problemas com um funcionário da unidade, mas não identificou quem seria a pessoa. Matheus temia ficar preso naquela unidade e pedia para ir para o “seguro”, uma ala onde são enviados presos que não podem conviver com os demais. 

Pente confundindo com arma

A Ponte teve acesso ao processo que investigou a morte de Matheus. A descrição a seguir tem como base os depoimentos de policiais penais e de um detento ouvido pelo delegado Wagner Coimbra Terribilli. A reportagem também teve acesso a trechos da apuração sobre o caso feita pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP)

No dia em que foi morto, Matheus fugiu da cela quando a comida era servida aos detentos. Um servidor contou tê-lo visto empurrar um agente durante a entrega da alimentação. A fuga teria ocorrido neste momento. Ele também disse ter visto o jovem levar a mão à cintura “onde havia um objeto escuro”.

Gilson, que trabalhava no setor de manutenção da unidade há pelo menos três décadas, contou que estava na área externa quando ouviu na frequência do comunicador um pedido de apoio para coibir uma fuga.

O agente teria relatado a colegas que, ao saber da fuga, foi até o estacionamento que fica fora da unidade e pegou sua arma de uso particular. Ainda conforme o relato de outros dois funcionários, ao voltar à cadeia, houve demora na abertura do portão e o colega teria imaginado que os detentos estivessem rebelados e tivessem tomado a área.

Para a Polícia Civil, Gilson relatou que apontou a arma para Matheus e pediu que ele descesse, ordem que não teria sido obedecida. Na versão do agente, corroborada por outros policiais penais, o jovem teria dito “não vou descer, vou matar todo mundo”. 

Um suposto volume na cintura de Matheus teria então chamado a sua atenção. No momento em que o preso supostamente iria tirar o objeto que carregava, o agente atirou em seu olho esquerdo. O filho de Suelen chegou morto ao hospital.

A investigação teria apontado que o suposto objeto carregado por Matheus era um pente de cabelo preto.

Homicídio culposo

Em outubro do ano passado, o promotor Rodrigo Merli Antunes, do Tribunal do Júri, pediu a redistribuição dos autos sobre a morte de Matheus. O pedido ocorreu após o entendimento de que o caso não se tratava de um homicídio doloso — quando existe intenção de matar. 

Crimes dolosos contra a vida são julgados pelo Tribunal do Júri, que é formado por um juiz e 21 jurados, sete dos quais constituirão o conselho de sentença. São levados a júri os crimes de homicídio doloso, aborto e auxílio ao suicídio. Os demais são julgados pelo juízo criminal comum, sem jurados.

Na visão do promotor Rodrigo, Gilson teria matado Matheus em legítima defesa putativa — ou imaginária, por ter se confundido. Prevista no artigo 20 do Código Penal Brasileiro, ela é descrita nos seguintes termos: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. 

O caso, para o promotor, aparentava ser um homicídio culposo — quando não há intenção de matar.

Excludente de licitude 

Ainda em outubro, após decisão do juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, o caso foi redistribuído para uma vara criminal. Contudo, o promotor Gustavo Macri Moraes, da 8ª Promotoria de Justiça de Guarulhos, entendeu que o caso tinha descriminante putativa. Ou seja, um erro que pode ter a culpabilidade excluída.

Neste caso, o “erro” de Gilson ao atirar em Matheus poderia ser justificado pelo excludente de licitude. Para o promotor, Gilson não agiu com negligência, imperícia ou imprudência ao matar o jovem. A ameaça feita por Matheus, que carregava um pente na cintura, legitimou a ação do agente, defendeu Gustavo. 

O promotor escreveu que não ficou provada a impossibilidade de Matheus estar armado dentro do presídio. A Ponte questionou a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP-SP) quanto a possibilidade de um detento estar dentro de uma unidade. Não houve retorno.

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“Por isso, não se entende que seu erro deriva de culpa (negligência, imperícia ou imprudência), mas por erro plenamente justificado pelas circunstâncias fáticas, de forma invencível, em relação à legítima defesa putativa”, escreveu. A decisão é de 27 de novembro.

Tiro era evitável, diz Defensoria

Para a Defensoria, o arquivamento é incabível. Um recurso foi impetrado em 24 de dezembro, apontando uma série de questões do inquérito que poderiam ter sido observadas e diligências que poderiam ter sido feitas. O órgão também afirma que as provas colhidas “deixam evidente que o suposto erro cometido pelo agente penal sobre a causa justificadora era evitável”.

Entre os pontos levantados está o fato de que o pente atribuído a Mateus só foi entregue pelo diretor da unidade à Polícia Civil 26 dias após a morte.

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As defensoras Surrailly Fernandes Youssef e Andrea Castilho Haddad Barreto destacam que o órgão pediu imagens das câmeras da unidade que tivessem registrado desde o momento da fuga da cela até o momento do atendimento médico. A solicitação, contudo, foi negada. 

Surrailly e Andrea dizem ainda que, em depoimento, dois policiais penais fizeram menção de ter tido acesso a imagens de câmeras. Um deles contou que o colega ficou “olhando os monitores” e o outro “verificou nas câmeras de segurança sobre a veracidade da informação”. 

Contradição no depoimento

Um dos fatos que alimentam o entendimento da Defensoria são as contradições entre o depoimento prestado por Gilson à Polícia Civil e para a Comissão de Apuração da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Diferentemente da legítima defesa contada no relato à primeira instituição, o policial penal falou em tiro de advertência. E “que, para sua infelicidade, o disparo acertou o preso Matheus”.

As defensoras também questionam a tese de que o pente poderia ter provocado suspeita sobre uma arma. Elas entendem que a dimensão do objeto não seria capaz de provocar volume visível na roupa de Matheus. Para elas, seria impossível que Matheus estivesse armado dentro da unidade.

“Matheus Justino estava privado de sua liberdade em um ambiente controlado por câmeras, revistas pessoais e scanner. Era impossível que portasse uma arma de fogo em ambiente de extremo controle, como uma penitenciária do Estado de São Paulo em que estava sob custódia”, escreveram.

Também é questionada a forma como o pente foi encontrado. Uma imagem anexada ao inquérito mostra o objeto preso na calça de Matheus. O fato de a foto ter sido tirada em meio à urgência dos acontecimentos e o objeto não ter se movido apesar da queda foram levantados pela Defensoria.

A retirada do corpo de Matheus também é questionada pela Defensoria. O órgão defende que o jovem foi levado sem vida ao hospital, o que fez com que a cena do crime fosse alterada.

Surrailly e Andrea elencaram também uma série de diligências que poderiam ter sido feitas:

  • Uma reprodução simulada dos fatos separadamente com cada uma das testemunhas; 
  • Croqui descritivo, com informações sobre as dinâmicas dos fatos; 
  • Averiguar todas as câmeras disponíveis na penitenciária; 
  • Acesso aos Procedimentos Operacionais Padrão da SAP em casos de risco e do acionamento da Polícia Civil e 
  • Esclarecimento de Gilson e dos colegas sobre o porquê o local não foi preservado para perícia.

MP manteve decisão 

Em resposta, o promotor Gustavo Macri Morais manteve a posição pelo arquivamento. A decisão é da última segunda-feira (27/1). Gustavo defendeu que apenas os polícias penais testemunharam a morte e que os detentos ouvidos só acompanharam a fuga da cela e escutaram os disparos. Tal fato não traria fatos novos em uma reprodução simulada.

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O promotor também afirmou estar provado que o local onde Matheus caiu não tinha câmeras. Outro ponto respondido por Gustavo foi que não haveria necessidade de acesso aos procedimentos padrão, já que o caso ainda é investigado pela SAP, órgão que pode punir desvios de conduta.

Para evitar o arquivamento, o próximo passo para a defesa é o envio do caso para a Procuradoria-Geral de Justiça — espécie de segunda instância dentro do Ministério Público. Cabe à PGJ decidir se oferecerá denúncia ou não.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou o Ministério Público e a SAP solicitando entrevistas com os agentes públicos citados e uma posição sobre o caso. O primeiro respondeu que “o MPSP se manifesta nos autos”. Não houve retorno da SAP até o fechamento desta reportagem. Caso haja, o texto será atualizado. 

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