População carcerária do Brasil dobra em onze anos e vira 3ª maior do mundo

    Superlotação aparece em quase 80% dos estabelecimentos prisionais no país; população carcerária feminina aumentou mais de 16% em dois anos

    Em 2006, pouco mais de 170 mil brasileiros estavam presos. Dez anos depois, a população carcerária chega aos 727 mil e já é a terceira maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (mais de 2 milhões) e China (1,6 milhão). É como todos os moradores de capitais como Campo Grande ou João Pessoa estivessem encarcerados. Os dados foram divulgados nesta sexta-feira (08/12) pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e dizem respeito a coleta de dados até junho de 2016.

    A superlotação aparece em 78% das unidades prisionais e a pior situação é do Amazonas, onde a taxa de ocupação chega a 484%. Foi justamente o estado onde a chamada “crise do sistema prisional” eclodiu no início deste ano, quando mais de 60 presos foram assassinados durante briga entre facções dentro do presídio Anísio Jobim, em Manaus.

    Para Camila Nunes Dias, socióloga, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) e pesquisadora do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da USP), é possível fazer uma relação entre os dados e o episódio do início do ano. “O conflito das facções e a própria existência delas são efeito dessa politica de encarceramento. A superlotação acaba sendo uma das situações concretas que acabam obrigando os presos a criarem formas de organização para que consigam sobreviver ali dentro. O encarceramento, as superlotações são responsáveis por essas mortes no início do ano de maneira indireta e de maneira direta também, porque quando a gente tem uma situação como a de Manaus, que foi algo bem gritante, fica muito mais difícil o estado efetivar qualquer politica prisional. Eles não conseguem nem separar os presos”, explica.

    O déficit de vagas geral do sistema é de 358.663 vagas, ou seja, praticamente metade da população carcerária atual. E a tendência é de crescimento: em onze anos, a população carcerária dobrou. Ao analisar a série histórica – entre 1990 e 2016 – os anos 2002 para 2003 e 2014 para 2015 apresentaram o maior crescimento, que ficou por volta de 12%. O estado de São Paulo concentra 33% de todos os presos do sistema.

    Para a socióloga, a lógica do encarceramento foi adotada como política pública. “É notório que essa tendência de alta se mantém, que vem desde os anos 90 e se intensifica a partir dos anos 2000. E a despeito de algumas medidas que supostamente pretendem ‘descarcerizar’, que são as audiências de custódia, a aplicação de penas alternativas e as tornozeleiras eletrônicas, são absolutamente incapazes de reverter essa tendência”, avalia Camila. “E é interessante que diante dessas políticas, como as audiências de custódia, muitos operadores do sistema têm uma falsa impressão de que a justiça está soltando. Essa sensação, muito presente no senso comum, é absolutamente equivocada, porque os dados mostram que não se está soltando. Ao contrário, está prendendo cada vez mais”, afirma Camila.

    Ainda de acordo com dados do Infopen, há mais presos provisórios, aqueles sem condenação (40%), do que, por exemplo, sentenciados em regime fechado (38%). Camila Nunes Dias aponta que a ausência de investigação e a exigência de cumprimento de metas por policiais incorre no alto número de prisões em flagrante.

    “A polícia acaba trabalhando para bater metas determinadas pelos estados e que, muitas vezes, são metas de prisão. Evidentemente esses flagrantes vão entupir o sistema de justiça, que por sua vez tem problemas enormes, não tem capacidade de dar conta de tudo isso e acaba atuando numa lógica reprodutora. Você tem o flagrante, depois o inquérito, a denúncia e o processo. Quando você analisa, o que prevalece é o primeiro relato do policial que fez o flagrante. Ou seja, a justiça não apenas deixa de quebrar essa logica da polícia, como reforça”, explica.

    Crimes contra o patrimônio (furto e roubo) e tráfico de drogas são os dois tipos penais que mais encarceram, correspondendo a 45% e 28%, respectivamente. A massa carcerária de mulheres chega a 42.355 e o tráfico corresponde a  62% das prisões. Para a socióloga, não é difícil entender que a causa desse cenário é a política de drogas vigente: repressiva, punitiva e encarceradora, que recai sobre os indivíduos que estão na ponta dessa economia ilícita.

    “Não é por acaso que as mulheres acabam sendo impactadas de maneira mais forte nessa chamada guerra às drogas. As mulheres, em sua totalidade, acabam tendo posições nas pontas dessas redes e são mais vulneráveis às investidas da polícia. E os homens presos por tráfico seguem essa mesma lógica. São pessoas pobres, negras e que estão entupindo o sistema prisional, sem que isso represente qualquer mudança no que diz respeito a atuação dessas redes e a circulação dessas mercadorias ilícitas”, critica.

    Se o sistema tivesse um rosto, uma identidade, ele pouco teria mudado em dois anos. Continua sendo homem (94%), negro (64%), jovem (41% têm entre 18 e 29 anos) e com baixa escolaridade, já que 75% abandonaram os estudos antes de chegar ao ensino médio. “A política de segurança pública funciona através de mecanismos que criminalizam essa população. A política prisional não soluciona, tampouco encaminha para uma solução de resolver problemas de violência na nossa sociedade, porque ela apenas reproduz as desigualdades abissais. Ela é baseada na atuação ostensiva da polícia militar, que por sua vez está pautada na abordagem dos suspeitos de sempre, que vão compor essa porta giratória do sistema prisional”, avalia a socióloga e integrante do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

    Com relação à atividades voltadas para a reinserção social do detento, o levantamento mostra que apenas 12% das pessoas privadas de liberdade têm acesso à educação e só 15% da população carcerária brasileira tem acesso a trabalho.

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