Por que alteração de nome sem cirurgia é conquista para transgêneros

    Para especialistas ouvidos pela Ponte, decisão do STF considera que identidade não é determinada unicamente pelo genital e reconhece pessoa trans como cidadã

    Advogados e militantes que participaram da votação no STF | Foto: Arquivo pessoal/Paulo Iotti

    Em votação unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quinta-feira (1/3) que pessoas transexuais (que não se reconhecem com o gênero de nascimento) e travestis (que vivenciam o gênero feminino) podem alterar o nome sem necessidade da intervenção da cirurgia de redesignação sexual, apresentação de laudos ou autorização judicial, por meio da Ação Direta de Constitucionalidade 4275 (ADI/4275).

    Para a pesquisadora, professora e psicóloga, Jaqueline Gomes de Jesus, que também é militante trans, a decisão do STF é um marco significativo, não só para a luta da população trans em termos de cidadania, mas também para uma democracia de fato. “A partir de agora, nós temos reconhecida, no meu entendimento, um início relevante em termos legais, jurídicos, da cidadania da população trans, do direito da população trans à identidade, que se substancia nesse direito à retificação do registro civil, ou seja, a adequação do nome e do sexo ao gênero no qual a pessoa se identifica”, avalia. Para Jaqueline, a decisão reforça o que para a militância sempre foi óbvio: um procedimento cirúrgico não determina uma identidade. “Atrelar a retificação de registro civil à cirurgia é determinar que os corpos trans são corpos determinados unicamente pelo genital. O fato do STF reconhecer a total desvinculação entre o direito a identidade e a necessidade de submissão a uma cirurgia de ‘transgenitalização’ reforma essa outra dimensão da humanização de pessoas trans. Isso que dizer que pessoas trans são reconhecidas hoje, cada vez mais, como pessoas”, afirma Jaqueline.

    A vitória, para Jaqueline, é fruto de uma luta antiga da militância trans, muitas vezes submetida à violência. “Essa é uma vitória de uma luta histórica, principalmente daquelas travestis que foram assassinadas, que foram violentadas, que não tiveram direito nem acesso a saúde, renda, educação, nome, que resistiram e criaram uma riquíssima cultura que tantas vezes é apropriada, tirada o nome de cultura trans e colocados outros nomes, sem o reconhecimento da contribuição dessas pessoas”, avalia a psicóloga e militante.

    O próximo passo agora é esperar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publique o acórdão para que a decisão passe a valer. A previsão é que isso aconteça em até 60 dias, como explicou à Ponte o presidente do Instituto Latino Americano de Direitos Humanos e advogado, Dimitri Sales. “Como esse é um tema que causará polêmica, evidentemente o Congresso Nacional vai reagir, a bancada fundamentalista vai reagir, então deve demorar pouco tempo, em torno de 1 ou 2 meses. Os votos serão revisados, os 11 ministros terão que dar o seu aval, terá que ser feita a discussão sobre a ementa do acórdão”, esclarece. Ou seja, na prática, enquanto não houver a validação da decisão, as pessoas trans ainda precisam conseguir na Justiça a alteração do nome social. “Se eu fizer uma petição hoje, por exemplo, eu posso mencionar a decisão do Supremo, citar alguns votos distribuídos, mas de fato precisa ir ao judiciário. Depois de publicado, basta ir a um cartório”, explica Dimitri Sales.

    Para Paulo Iotti, especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), os cartórios poderiam ter esse entendimento de que, como é uma decisão oficial, já poderia valer na prática. Contudo, acredita que esperar pode evitar frustrações. “As pessoas trans já queriam ir amanhã no cartório, mas pedimos calma. É muito compreensível, ainda mais um tema tão agoniante pra elas. É muito hipócrita, pra ser franco, o cartório falar que precisa esperar publicar a decisão, todo mundo sabe que o Supremo decidiu, mas é uma formalidade esperar o acórdão pra ser obrigatoriedade”, avalia.

    Para o advogado Dimitri Sales, a decisão de agora é mais grandiosa do que outra, de 2011, quando o casamento de pessoas do mesmo sexo passou a ser permitido, uma vez que já havia uma jurisprudência para reconhecer uniões homoafetivas. “Você tinha decisões [de alteração de nome] aqui em São Paulo, ora o tribunal avançava, ora retrocedia, mas você tinha no resto do país entendimentos absolutamente contrários a esses direitos”. O advogado reforça que a decisão do STF não garante apenas o direito de mudar nome e sexo, como permite que essa mudança se dê pelo reconhecimento pessoal subjetivo que a pessoa constrói para si. “É muito extraordinário. É você olhar para uma população que nunca foi enxergada como cidadã e dizer a essa população ‘agora você tem todos seus direitos, agora você é cidadão e cidadã'”, conclui.

    O especialista em direito da Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti, ressalta que a cirurgia de redesignação sexual é irreversível, por isso que se exigem tantos requisitos. Contudo, durante o julgamento houve conflito de informações e até exigências de mais laudos e documentos, já previstos pelo Conselho Federal de Medicina, na Resolução 1955, de 2010. “Já estão previstos requisitos da cirurgia, que tem 2 anos de acompanhamento com equipe multidisciplinar, com cirurgião, psicólogo, psiquiatra, assistente social e endocrinologista, e para pessoas com mais de 21 anos”, explicou.

    Iotti se refere à exigência feita pelo ministro Marco Aurelio Mello de permitir a alteração de nome mediante 5 laudos, depois de dois anos e só para maiores de 21. “O Judiciário hoje já aceita um único laudo de psicólogo ou psiquiatra independente de idade”, lembrou.

    A Corte Interamericana considera que identidade de gênero tem que ser baseada unicamente na soberana vontade da pessoa, na auto identificação. Com base nisso, alguns ministros do STF dispensaram ação judicial, laudo e cirurgia. Os placares foram: 11 a 0 para dispensar a cirurgia, 10 a 1 para dispensar laudos e 6 a 5 para permitir a mudança em cartório. O desempate ficou a cargo da ministra Cármen Lúcia, em um voto, segundo Iotto, muito emocionante. “Ela falou que a mulher, em geral, sofre muita discriminação pelo machismo, mas que uma pessoa transgênero tinha falado para ela que uma pessoa LGBTI tem um dado a mais, que ela tem na família o primeiro lugar de discriminação, quando deveria ser um lugar de refúgio; ela fez uma fala muito bonita citando Cecília Meirelles, falando ‘Já fui loura, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz. Já fui Maria e Madalena. Só não pude ser como quis’. Então também adotando a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ela dispensou cirurgia, laudo e ação judicial”, conta Paulo Iotti.

    Para ele, apesar importância da decisão do STF, o projeto de lei federal 5002/2013, conhecido como Lei João Nery, ainda é de extrema importância. “Não é porque a gente ganhou no Judiciário que temos que desistir do Legislativo. Vai que daqui 10 ou 20 anos pode mudar a composição do Supremo e ele muda de ideia. O Judiciário garantiu e a decisão do Supremo tem força de lei no Brasil inteiro, CNJ também. Não precisa neste momento [voltar a discutir o PL], mas é importante. Tanto que uma democracia só é uma democracia de verdade quando a lei expressamente reconhece seu direito e você não tem que ficar contratando advogado para ter seu direito”, explica Paulo.

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