Desigualdade social e falta de equipamentos de saúde em regiões periféricas, que concentram a população negra no país, são impulsionadores na pandemia da Covid-19
Mais de 45% das mortes por coronavírus no Brasil, até 26 de abril às 14h, são de pessoas negras (soma de pessoas pretas e pardas). É o que revela o Sistema de Informação de Vigilância da Gripe, do Ministério da Saúde, em boletim epidemiológicos. O termo SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), usado comumente em estatísticas da pandemia, é um quadro clínico grave que pode ou não ser decorrente da Covid-19.
Os casos confirmados, até a data, somavam 61.888, sendo que 31.077, 50,2%, foram registrados no Sudeste. O estado de São Paulo é o mais infectado do país, com 20.715, seguido por Rio de Janeiro com 7.111, Ceará com 5.833, Pernambuco com 4.898, e Amazonas com 3.833. Os óbitos contabilizam 4.205 óbitos (6,8% dos infectados).
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As hospitalizações por SRAG chegam a 70.060 e 18,8% delas (13.169) são por Covid-19. O recorte racial de internações é bem simbólico: 37,4% são de pessoas negras.
O número de óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave por Covid-19 é de 2.142. O recorte racial aponta que 45,2% dos casos são de pessoas negras.
O grande problema para determinar o perfil de raça e cor tem sido os casos em que essa informação simplesmente não é considerada, que somam 5.263 em relação às hospitalizações e 1.298 em relação aos óbitos.
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Assim como no Brasil, a população negra dos EUA é a mais atingida pelo coronavírus, conforme noticiou a Vox. Segundo dados do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), 30% dos pacientes com Covid-19 são negros.
Mas, afinal, qual é a importância de traçar o perfil de raça e cor na pandemia da Covid-19? Quem responde isso é a médica de família Ana Carolina de Paula, que atua nas periferias da zona leste da cidade de São Paulo e integra do Coletivo NegreX, primeiro coletivo de médicas e médicos negros do país, formado em 2015.
“Se eu sei que a população mais afetada é a população periférica e a população negra, eu vou estabelecer medidas para impedir que isso aconteça. Sem saber quem é essa população, o tamanho dela, as especificidades, não tem como direcionar de forma assertiva esses recursos”, explica Ana Carolina.
Desigualdade social é o principal fator
A população negra é mais afetada pelo coronavírus, afirma a médica, pela desigualdade na distribuição de aparelhos de saúde, já que pessoas negras moram, majoritariamente, nas periferias.
O Mapa da Desigualdade 2019, elaborado pela Rede Nossa São Paulo, por exemplo, traz o perfil racial da população periférica da cidade de São Paulo. Em bairros periféricos como Jardim Ângela, Grajaú e Parelheiros, todos na zona sul da cidade, a população negra é de 60,11%, 56,81% e 56,61% respectivamente. A mesma coisa acontece na zona leste da cidade, em que bairros como Cidades Tiradentes e Guaianases concentram 56,07% e 54,49% de pessoas negras.
Segundo dados divulgados pela Prefeitura de SP, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, é nas periferias que o coronavírus tem feito mais vítimas. Os últimos dados foram disponibilizados na última segunda-feira (27/4).
A Brasilândia, periferia da zona norte da cidade, permanece como recordista no número absoluto de mortes: 81 mortes por coronavírus confirmadas ou suspeitas. Na semana anterior, em 17/4, o número era de 51 mortes. Por grupo de 100 mil habitantes, a Brasilândia tem 28,7 mortes.
Os três bairros na sequência por mortes absolutas da Covid-19 são região periférica da zona leste da cidade: Sapopemba, com 77 mortes, São Mateus, com 58, e cidade Tiradentes, com 51. O quinto bairro periférico com mais mortes absolutas registradas é a Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, onde 50 pessoas morreram.
“É nítido que os recursos da saúde são aplicados nas regiões centrais, nas regiões mais ricas. A periferia fica de lado. Um exemplo disso são os locais onde foram construídos hospitais de campanha: Anhembi, Ibirapuera, Pacaembu. As regiões extremas da cidade não estão inclusas. E nas periferias é onde temos o menor número de leitos de UTI [Unidade de Terapia Intensiva]”, aponta Ana Carolina.
Um dos motivos, explica a médica, é a desigualdade social, que afeta mais a população negra. Uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2018, aponta as desigualdades entre negros e brancos no mercado de trabalho: pretos ou pardos representavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada. Nos trabalhos informais, brancos ocupam 34,6% e entre os pretos ou pardos esse percentual era de 47,3%.
O rendimento médio mensal também mostra essa desigualdade: brancos com nível superior completo ganhavam por hora 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesmo nível de instrução. O salário de pessoas brancas é 73,9% maior do que de pessoas negras, que ganham aproximadamente R$ 1.608.
“Não existe home office para grande parte da população negra. A questão do isolamento social da população periférica também é algo que não é possível colocar em prática, pelas condições das moradias. Acesso ao álcool em gel é uma coisa que a maioria não tem”, pontua.
Só o investimento pode mudar a realidade de saúde das pessoas negras e periféricas, aponta Ana Carolina. “Criar mais vagas nas periferias, criar hospitais de campanha, levar mais recursos para essas regiões, melhorar a qualidade do serviço e dar melhores condições de trabalho para os médicos”, elenca.
O papel dos profissionais de saúde nas periferias
Outro ponto preocupante, afirma a médica, é a desistência de profissionais de saúde que atuam nas regiões periféricas na cidade de São Paulo, principalmente os profissionais que atuam em UBSs (Unidade Básica de Saúde), AMAs (Assistência Médica Ambulatorial) e UPAs (Unidade de Pronto Atendimento).
“Eles estão pedindo demissão porque não têm uma condição de trabalho adequada, não tem EPI [Equipamento de Proteção Individual]. O profissional prefere perder o emprego do que continuar naquele local correndo risco de vida. A grande maioria dos profissionais de saúde que estão morrendo trabalham com as populações periféricas”, aponta.
Ser médico e ser negro, argumenta Ana Carolina, é outro fator determinante no atendimento às populações periféricas por uma questão de empatia. “Você entende quais são os dramas que essa população sofre, você olha para essa população com olhar de dignidade, não com um olhar de exclusão e um olhar de superioridade”.
“É a questão da empatia, eu me enxergar naquela população. O cuidado é muito mais próximo e pessoal do que se estivesse em uma posição social muito distante daquela população que eu estou atendendo”, finaliza.
Conquista dos movimentos negros
Para a médica Rosane de Souza, especialista em controle de infecção e neonatologista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), os dados com recorte racial são uma conquista dos movimentos negros, já que resultam do pedido do Grupo de Trabalho sobre saúde da população negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Por causa disso, desde o dia 10 de abril, o Ministério da Saúde tem lançado boletins epidemiológicos com informações sobre raça e cor. “Assim, fica mais fácil analisar como a Covid-19 impacta a população negra”, disse.
O índice de testagem para coronavírus, segundo o site Worldmeter, que reúne dados da pandemia pelo mundo, são muito baixos: menos de 300 testes feitos por milhão de habitantes. Outros países da América Latina, por exemplo, testam muito mais: o Chile realiza mais de 4 mil testes por milhão de habitantes, e a Venezuela, mais de 6 mil por milhão.
“A impressão é de que a subnotificação ocorre preferencialmente na população negra, na população mais desassistida, que tem menos acesso aos serviços de saúde e menos informação sobre quais são os sinais de alarme”, argumentou Rosane. “Não temos dados, não sabemos onde estão as pessoas infectadas. É praticamente impossível construir estratégias e políticas sem saber para onde estamos indo”.
Rosane também afirma que, em muitos aspectos, a situação da maioria da população negra nos Estados Unidos na pandemia se assemelha à da brasileira. “Mas, como lá, negras e negros são minoria, fica evidente a determinação racial na saúde, ou melhor, como barreira ao direito à saúde. Aqui, como somos a maioria da população, e a maioria da população é pobre, a questão econômica mascara a étnica”, analisa.
“Não tem nada na raça negra que aumente a presença, que atraia o vírus. Hipertensão arterial e diabetes são fatores de risco para formas mais graves da infecção, e são condições de alta prevalência entre pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil, mas não só por fatores físicos: são consequência também das dificuldades para uma alimentação balanceada, de jornadas extenuantes de trabalho”, argumenta a especialista.
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