É preciso abolir as prisões, mas também a exploração pelo trabalho, a gentrificação, o extrativismo predatório e toda e qualquer expressão de submissão que seja imposta a nós, enquanto partes dos povos que ocupam este mundo
Apesar da constante interpelação que abolicionistas sofrem em relação à validade, à concretude e às possibilidades de se realizar o horizonte abolicionista, o abolicionismo resguarda capacidades de enfrentamento crítico que cabem ser levadas adiante com entusiasmo. Primeiro, vale lembrar: ser abolicionista depende tanto do domínio de categorias analíticas teóricas como da capacidade de observar as contradições sociais onde estamos inseridas – e não se concentra em uma mente única, individual e iluminada.
A vontade de abolir deve ser vista como uma possível faísca num ambiente prestes a ser incendiado – simplesmente porque o abolicionismo não é uma construção de hoje, e ele penetra como gás inflamável, por buracos pouco visíveis, esperando encontrar a fagulha que pode demolir as relações de dominação e exploração que fizeram necessárias à sua existência; que fizeram necessária a necessidade de uma abolição.
Observar o contexto em que nos inserimos permite pensar o abolicionismo a partir de duas abstrações que podem parecer pouco palpáveis, mas que tanto nos atravessam, como nós somos capazes de transformá-las: o espaço e o tempo.
No mundo em que vivemos, a força determinante da forma como se molda o espaço e em qual velocidade se vive o tempo é o capital. É esta coisa pouco concreta, no sentido de que não vamos passar na rua e ver o capital como um objeto equivalente a um prédio, ou um carro. Mas é essa coisa super concreta que determina quem vai poder morar num prédio ou andar de carro. Determinante, no entanto, não é determinística. O capital permeia a tudo, ainda que não seja o todo.
Milton Santos escreveu que o espaço é formado pela história, pelas relações sociais e pelas características naturais que nele estão contidas, da mesma forma em que é capaz de determinar os percursos da história, os sentidos das sociedades e a forma que assume a natureza. Por exemplo: o Rio Doce, contaminado por uma centena de anos pelo rompimento da barragem da Samarco, é um espaço que se constitui a partir de histórias distintas. Por um lado, a Samarco detinha uma visão utilitarista do rio. Um curso d’água que, eventualmente, poderia servir para dar vazão aos rejeitos que viriam de um possível rompimento de barragem. Esta visão se baseia na função em que o rio tem de acordo com as demandas da Samarco para realizar o processo de mineração que alimenta a cadeia global de acumulação de capital.
No entanto, Ailton Krenak nos ensina em Ideias para adiar o fim do mundo que, para o povo Krenak, o rio não era um mero curso d’água – na cosmologia daquele povo, o rio era seu avô; parte viva e integrante daquela comunidade. O rio não está vinculado ao povo Krenak, neste caso, apenas por suas funções de garantia de subsistência, como a pesca de peixes que alimentam a aldeia.
O rio, enquanto corpo vivo e complexo, socialmente e biologicamente, carrega um significado espacial amplo que determina a qualidade do ecossistema em que se insere o povo Krenak, o cotidiano do povo Krenak (e daqui podemos pensar, a alimentação, a divisão do trabalho e a própria concepção de humanidade); mas também a história daquele povo que, em algum momento, foi forçado a conviver com a mineradora – e, posteriormente, com os rejeitos de minério despejados ao rio.
A partir dessas duas visões de espaço conseguimos perceber como a organização capitalista do espaço se impõe sobre outras formas de pensá-lo, experimentá-lo e construí-lo. E isso acontece em detrimento de formas distintas de estar e viver o mundo em que habitamos. Essa imposição, cabe dizer, é inerentemente colonial. Se impõe, desqualifica e rebaixa a diferença em nome da exploração da Natureza e da força de trabalho humana, que resulta na destruição de mundos e de povos que desafiam este caminho que se pretende único.
E da mesma maneira em que o capital busca determinar a forma em que ocupamos o espaço, ele busca determinar como vivenciamos o tempo. O sociológico Enrique Leff diz que o tempo determina a nossa condição ontológica no mundo – isto é, o tempo define as condições fundamentais de nossa existência e, portanto, das possibilidades de agir neste mundo.
Pensemos numa grande cidade. A organização espacial das cidades no capitalismo divide, de maneira desigual, hierarquizada e excludente, a oferta de serviços públicos (transporte, creche, postos de saúde, saneamento básico etc.), a carga horária de trabalho e o acesso ao lazer. Uma trabalhadora doméstica que leve duas horas em cada trecho de deslocamento ao trabalho, terá adicionada à sua carga horária um total de quatro horas que, se respeitada por seus empregadores, resultará numa carga horária de doze horárias diárias de dedicação ao trabalho. Se essa trabalhadora dormir oito horas de sono, ela teria apenas quatro horas para se dedicar a qualquer outra atividade que necessite ou deseje.
Alguém que trabalhe numa função onde a carga horária diária seja de seis horas e tenha um salário que lhe permita morar perto ao trabalho, pode gastar oito horas em todo o conjunto de deslocamento e jornada de trabalho, ganhando quatro horas diárias em relação à trabalhadora doméstica (não tão) hipotética de nosso exemplo anterior. Assim, é possível perceber como espaço e tempo estão intimamente vinculados nas determinações do nosso dia a dia. E que o trabalho assume uma posição definitiva nas formas possíveis de pensar como usufruímos de nosso tempo e dos espaços que são a nós acessíveis. Seguimos, então, com a determinação do capital sobre as nossas vidas.
Mas como isso alcança o abolicionismo?
As funções sociais que o sistema de justiça criminal (SJC) exerce sobre nossos corpos define, de maneira concreta, como vivemos nosso espaço e nosso tempo. Dada a divisão racial da punição, o direito de usufruto do espaço público a pessoas negras e indígenas é restrito , por exemplo, de uma maneira que não é cerceada para pessoas brancas. O tempo que pessoas encarceradas levam dentro dos conjuntos prisionais, por menor que seja, restringe a elas o direito de circulação e convivência que pode ser visto na estigmatização social a qual egressas do cárcere estão submetidas.
Da mesma forma, as familiares de pessoas em situação de cárcere passam a ter que dedicar tempo de suas vidas para garantir direitos de estar com seus familiares, ou para que esses familiares tenham acesso ao mínimo essencial, como alimentação e produtos de higiene pessoal – não incomumente negligenciados.
Mais atenção nos demanda quando lembramos que com a lógica da guerra às drogas, o tempo de vida de pessoas encarceradas fica marcado profundamente pelas condições permanentes de violência e tortura que formam o sistema punitivo – quando pessoas encarceradas por tráfico, não raramente, são presas por serem usuárias, tendo seus destinos determinados pela racialização.
Isso nos ajuda a entender, por fim, o que Sueli Carneiro chamou de dispositivo de racialidade. A racialização, tal qual ela ocorre, vai nos dizer como podemos – e se podemos – usufruir do nosso tempo e dos nossos espaços, ao longo de nossa história.
O projeto genocida de Estado, como nos lembra Ana Flauzina, demarca às pessoas negras o lugar da privação de liberdade. Privação esta que não se realiza no distanciamento do convívio em sociedade, mas na necessidade de extermínio que se concretiza no espaço dos presídios, mas também fora deles, com as ditas operações policiais.
O abolicionismo, portanto, nos impele a pensar espaços que não sejam determinados pela violência, onde a determinação racial não defina que em qualquer espaço ela possa ser vítima de violência que, como sabemos que acontece, não lhe tire a vida. Ao mesmo tempo, o abolicionismo nos provoca a pensar a construção de uma autonomia, construída coletivamente e permeada pela nossa individualidade, que faça do tempo de nossa existência, tempo de realização de nossa experiência. E abolir, neste momento, tem o significado de abolir um complexo emaranhado de relações que o capital segue buscando determinar. Abolir as prisões, mas abolir a exploração pelo trabalho, abolir a gentrificação, abolir o extrativismo predatório e toda e qualquer expressão de submissão que seja imposta a nós, enquanto partes dos povos que ocupam este mundo.
E se pensamos na tamanha precariedade que já nos é imposta, ser a faísca que faz explodir o gás inflamável do abolicionismo não é transformar tudo em ruínas. Afinal, esta explosão abolicionista sempre se construiu com formas diversas de estar no mundo, produzidas por todas aquelas que, em algum momento da história, tiveram que lidar com as ordenações do capital sobre o espaço e o tempo. O abolicionismo significa, sim, destruir coisas inteiras – como as prisões; mas também significa construir coisas que estão, há tempos, sendo cultivadas – como a liberdade.
* Vitor Costa é Doutorando em Relações Internacionais (RI) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em RI pela Universidade Federal da Bahia. Ele faz parte da equipe da coluna Abolição, coletivo que discute abolicionismo penal na Ponte.