Orlando Morando (PSDB) considerou charge de Luiz Carlos Fernandes, do Diário do Grande ABC, “jocosa”; para artista, papel do chargista é ser crítico
Nos últimos 40 anos, Luiz Carlos Fernandes, 61 anos, já fez de tudo: ilustrador, quadrinista, chargista, cartunista, caricaturista, esculturalista. O que nunca tinha acontecido com ele, mesmo trabalhando durante a ditadura militar, era ser processado.
Mas, em julho de 2020, uma de suas charges, publicadas diariamente no jornal Diário do Grande ABC, que fala sobre o ABC paulista e onde Fernandes trabalha desde 1983, foi acionado judicialmente por Orlando Morando (PSDB), prefeito de São Bernardo do Campo, que é investigado por corrupção e fraude a licitações pela Polícia Federal desde 2018. Raphael Rocha, editor de política do Diário, autor da reportagem, também foi acionado. O diretor de redação Evaldo Novelini e o editor-chefe Wilson Moço foram citados pelo tucano.
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Para o prefeito, a charge foi “jocosa” e o ilustrador precisa se explicar à Justiça. A charge em questão, explica Fernandes à Ponte, é uma alusão à empresa do qual Morando é sócio, a OAC Participações, que negociou terrenos e imóveis residenciais no Grande ABC por valores bem menores do que são avaliados.
Durante a sua trajetória como ilustrador, Fernandes já ganhou mais de 40 prêmios de humor gráfico, no Brasil e exterior. Em 1998, ganhou o Troféu HQ Mix, considerado o Oscar dos quadrinhos brasileiros, de melhor livro infantil (pelas ilustrações do livro Castelo Rá-Tim-Bum) e de melhor caricaturista em 2010.
Para o ilustrador, “o papel da charge é ser crítica, colocar uma luz porque através do humor você chama atenção, a imagem é muito forte”. “Eu vivi a ditadura, fazia charge contra o [Paulo] Maluf [ex-governador e ex-prefeito de São Paulo, e ex-deputado federal], o [João] Figueiredo [último presidente do período da ditadura militar] e nunca deu em nada”, compara.
“O que é jocoso nessa charge? Por ser um homem-placa? Uma profissão humilde? Estamos vivendo um momento esquisito, isso [ação judicial] é uma forma de intimidar. Ele [Orlando] estava incomodado com as charges e encontrou essa forma de brecar”, aponta Fernandes.
O ilustrador conta que a inspiração para a charge foi uma denúncia de que o prefeito estaria envolvido em compra e venda de terrenos de forma ilegal, além das denúncias investigadas em relação às merendas escolares. Ele lembra que o jornal Diário do Grande ABC sempre fez esse tipo de críticas aos governantes, inclusive “batíamos muito mais no ex-prefeito [Luiz Marinho, do PT] e nunca fui intimidado”.
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Muitos nomes importantes da ilustração, da charge e dos quadrinhos saíram em defesa de Fernandes, como o jornalista Paulo Ramos, do Blog dos Quadrinhos, do Uol, que denunciou o fato em suas redes sociais. Pelo menos sete ilustradores refizeram a charge em apoio ao colega de profissão. Gilmar, o Cartunista das Cavernas, foi um deles.
O ilustrador reforça que sempre teve muita ética em seus trabalhos, por isso não faz qualquer crítica pessoal aos políticos, “seja do Lula, da Dilma ou do Bolsonaro”. “Eu critico as ações das pessoas públicas, que são pagas por nós. Temos que fiscalizá-los”.
“Temos que ter muito cuidado para não cairmos na reprodução dos preconceitos, seja de raça, gênero ou religião”, aponta. Apesar do susto com a notificação judicial, Fernandes garante: “Vou continuar fazendo o meu trabalho do mesmo jeito. Hoje mesmo fiz outra charge sobre ele”.
Fernandes acredita que ação “foi um tiro no pé”. “Isso trouxe visibilidade para a charge”. “Toda charge que eu faço passa pelo crivo do editor, eu participo das reuniões de pauta e tudo é aprovado. Eu não tenho autonomia de publicação, mas ele está processando a mim, o repórter e o editor. O que está sendo criticado ali é a ação do homem público, não a questão pessoal”.
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A ACB (Associação dos Cartunistas do Brasil), por meio do presidente José Alberto Lovetro, lançou uma carta aberta ao prefeito Orlando Morando nas redes sociais. “Essa carta é um pedido pelo bom senso”, iniciou a ACB.
“Quando um cidadão se propõe a entrar na política, em um país democrático como o nosso, também sabe do ônus de se transformar em personagem público e, por essa razão, haverá críticas à sua atuação assim como aprovação quando houver atos que ajudem ao bem comum. Portanto é constante a observação do eleitor, meios de comunicação e entidades que representam parte da opinião pública sobre ações e informações de sua vida política”, continuava a carta.
“A charge, dentro de um veículo de comunicação, cumpre duas funções – analisar acontecimentos e ser um termômetro do que o povo fala nas ruas”, completou a ACB, lembrando que jornalistas e cartunistas do Pasquim foram presos durante a ditadura militar. “Um chargista não cria fatos, mas analisa fatos já acontecidos”.
A ACB também lembrou que o país vive “um momento em que se questiona a ética política e para isso é preciso entender que profissionais de imprensa sempre lutaram pela liberdade de expressão de todos. Inclusive de quem não defende a democracia”.
Apontando que os políticos podem questionar e também se defender demonstrando, com provas, de que houve erro de interpretação do cartunista “mesmo antes de entrar na área jurídica”. “Isso é democracia. Assim esperamos que o Sr. Prefeito reveja sua atitude com bom senso, senso de humor e espírito democrático”, finalizou ACB na carta.
Outro lado
A assessoria do prefeito alegou ao Diário do Grande ABC que os processos contra os profissionais do Diário “afastam-se completamente de qualquer intento de censura”.
“O histórico do prefeito revela que sempre foi totalmente a favor da liberdade de imprensa, expressão e manifestação do pensamento. Porém, o ordenamento jurídico brasileiro também garante àquele que se sentiu ofendido em face de acusações infundadas a prerrogativa de buscar o Judiciário para salvaguardar seus direitos. A salvaguarda de direitos individuais em nada significa atentar contra a liberdade de imprensa como um direito público e absolutamente inalienável.”