Preso em falso flagrante, Hiago foi condenado por roubo ocorrido na rua onde mora

Ajudante de pedreiro negro foi condenado com base em dois reconhecimentos irregulares, um “informal” feito por Whatsapp e outro, na delegacia, em que foi colocado ao lado de pessoas brancas

Hiago Matheus Moreira Galvão, que está preso há quase 10 meses no CDP Pinheiros IV, zona oeste da cidade de São Paulo | Foto: arquivo pessoal

“Quando eu imagino que meu filho está passando fome e pagando por uma coisa que não fez é muito doído. Meu filho nunca me deu trabalho, nunca fez nada de errado, ele sempre trabalhou. É muito dolorido, dói muito, dói na alma. Isso tem que ser denunciado para ver se param com isso.” O desabafo em prantos da dona de casa Lucimara Moreira Galvão, 39 anos, resume um pouco a angústia que tem vivido nos últimos dez meses longe do seu filho mais velho Hiago Matheus Moreira Galvão, 19, jovem negro e ajudante de pedreiro.

Em 31 de agosto de 2021, Hiago foi preso “em flagrante”, segundo a polícia, acusado de participar de um roubo de cargas ocorrido na mesma rua onde mora, no bairro de Guaianazes, periferia da zona leste da capital paulista, junto com outros dois jovens. Abordado na porta de sua residência por policiais civis, ele foi alvo de um reconhecimento por foto informal e, em seguida, um outro reconhecimento na delegacia que não seguiu as regras previstas no Código de Processo Penal.

Mesmo com as irregularidades, o Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou Hiago e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) o condenou a cinco anos e quatro meses de reclusão em abril deste ano. O ajudante de pedreiro segue preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) Pinheiros IV e tem relatado à sua família uma rotina sob condições precárias de alimentação e higiene.

“Eu não posso ficar aqui parada esperando, tenho que dar um jeito de provar que meu filho é inocente. Porque meu filho é inocente, ele nunca fez nada de errado. Isso é uma injustiça muito grande e até hoje eu não acredito que ele foi condenado. Eu não acredito. Eu estava com um fio de esperança de que eles não iam fazer isso com o meu filho. Mas justiça mesmo é só para quem tem dinheiro”, lamenta Lucimara sobre a situação

Duplo reconhecimento irregular

À Ponte, Lucimara conta que, no dia em que foi preso, o filho estava trabalhando fazendo “bico” em uma obra do bairro e, por volta das 13h, foi para casa almoçar junto com as irmãs mais novas. Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Roberto Afonso da Silva, da 3ª Delegacia da Divecar (Divisão sobre Investigações sobre Roubos e Furtos de Veículos), do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), o crime teria ocorrido por volta das 15h30.

A vítima do roubo disse que, por das 14h, realizava entregas para o site Mercado Livre em seu carro, um Gol, na região de Guaianazes, quando foi abordada e rendida por dois assaltantes que aparentavam estar armados. Outros quatro homens se aproximaram do carro e outros dois levaram o motorista para uma viela, onde ele ficou até os 65 pacotes de mercadorias, avaliados em R$ 6.362,62, serem descarregados pelos ladrões.

Os policiais civis Wilson Lopes Valderrama Junior e Guido Luiz Auricchio Mazzei, do Deic, relataram que uma empresa de rastreamento informou que um de seus motoristas havia sido roubado na região da Vila Roseira II. Ainda de acordo com o documento, a empresa chegou a informar as características de quatro assaltantes: um homem branco e três homens “pardos”, sendo que um deles vestia uma camiseta de time e um boné preto.

Ao se dirigiram até a rua do crime, os policiais abordaram três rapazes que eram de “cor parda” — um deles trajava uma roupa que batia com a descrição — e em seguida encontraram 44 mercadorias em um terreno baldio próximo. O motorista relatou que recebeu por WhatsApp as fotos de Hiago, Lucas dos Santos Candido, 22, e Wesley Rodrigues Bento, 23, e reconheceu, de modo “informal”, os três como sendo os assaltantes.

Encaminhados para a 3ª Delegacia da Divecar, Hiago, Lucas e Wesley participaram do auto de reconhecimento pessoal ao lado de dois homens brancos, contrariando o que prevê o Código de Processo Penal, que, no artigo 226, afirma que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”. A vítima reconheceu Lucas como o rapaz que a rendeu e tomou a direção do veículo; Wesley como um dos rapazes que a levaram para a viela; e Hiago como um dos rapazes que chegou quando já estava rendida.

Os três foram autuados “em flagrante” pela Polícia Civil e, por conta da pandemia de Covid-19, a audiência de custódia não foi realizada. Após a manifestação favorável do promotor de justiça Wilmar Pinto Correia, a prisão dos três jovens foi convertida em preventiva pela juíza de plantão Celina Maria Macedo Stern, do TJ-SP, no dia 1º de setembro.

Durante as audiências de instrução, realizadas em janeiro e abril deste ano, o ajudante de pedreiro negou envolvimento no crime e disse que estava no horário de almoço do trabalho. Em juízo, a vítima relatou que só lembrou de Hiago passando na hora do roubo e que em seguida ele correu. A mãe do jovem explica que, naquele momento, Hiago havia deixado a irmã mais nova na vizinha, que é amiga da família. Segundo ela, os policiais chegaram a intimidar a comunidade atrás dos suspeitos pelo roubo.

Mas, apesar das alegações da defesa de Hiago, em 28 de abril o juiz Luis Gustavo Esteves Ferreira, da 1ª Vara Criminal da Barra Funda, negou a nulidade da prisão em flagrante e do reconhecimento pessoal e condenou o ajudante de pedreiro e os outros dois rapazes.

“Ele estava com o pensamento ‘para que eu vou me esconder? não devo nada’. Um rapazinho negro, pobre, é claro que eles iam levar. Acharam [as encomendas] no meio do nada, não acharam quem fez e levaram meu filho e esses dois rapazes”, aponta Lucimara.

Na luta para provar a inocência de seu filho, a dona de casa perdeu o emprego de balconista num supermercado por passar os dias buscando imagens e testemunhas da comunidade para relatarem o que aconteceu naquele 31 de agosto, sem sucesso. “A vida do meu filho era curtir funk, trabalhar, sem maldade nenhuma”, afirma.

Hiago Matheus Moreira Galvão em casa | Foto: arquivo pessoal

A ausência de Hiago também é sentida por sua esposa, a consultora de vendas Greycienne de Santana Correia, 28 anos. “Ele está cada vez mais para baixo e a gente sempre procura ir. Mas é só Deus para fortalecer ele lá. Eu sinto ele muito assustado no meio daquelas pessoas”, conta. “Trataram ele como se fosse um bandido mesmo e isso é o que mais está doendo na gente. E está sendo bem difícil conviver com a ausência dele. Todo dia é motivo de chorar porque parece que a gente não vai achar uma solução e que ele vai ficar lá pagando por algo que nunca fez”, lamenta.

Agora a família aguarda uma decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre um pedido de habeas corpus, após o recurso de apelação da defesa ter sido negado pelo TJ-SP.

‘Não é um caso isolado’, diz especialista

A advogada criminalista Maira Pinheiro, que analisou o processo contra Hiago a pedido da Ponte, elenca uma série de irregularidades na condução da polícia, desde a abordagem do jovem até o processo de reconhecimento. Segundo ela, a situação descrita no momento da prisão não se encaixa em um flagrante, o que, de acordo com o artigo 302 do Código de Processo Penal, acontece quando os suspeitos são detidos durante ou logo após a infração, quando são perseguidos após o delito ou quando são pegos, também logo depois da ação, portando algum objeto que indique ter participado do crime.

“Eles não estavam em situação de flagrância, então, o que a polícia deveria ter feito é ter intimado cada um deles para comparecer na delegacia e prestar esclarecimento na presença de advogado, numa data previamente agendada, e avaliar se eles tinham elementos de autoria suficiente”, explica. Maíra diz que até mesmo o local exato do crime não ficou claro e os policiais se basearam em uma geolocalização aproximada dos fatos.

Além disso, a advogada também destaca que o reconhecimento fotográfico “informal”, feito na rua, via Whatsapp, torna nulo o reconhecimento formal realizado depois na delegacia, porque incentiva a vítima a identificar diante de si o mesmo rosto que acabou de ver no celular. “Essa prática de fotografar a pessoa em abordagem depois de mandar para vítima por WhatsApp não é um caso isolado, é uma prática recorrente principalmente no Deic, principalmente nas delegacias do Divecar”, ressalta. “Quando os policiais fazem essa fotografia e enviam para a vítima, estão interferindo diretamente na produção da prova, o que inclusive pode caracterizar um abuso de autoridade”, prossegue.

Ajude a Ponte!

Maíra aponta que a condenação de Hiago vai na contramão do entendimento do STJ de que o reconhecimento não pode ser considerado prova única para decidir pela culpa de um acusado, uma vez que se torna cada vez mais frágil à medida em que é repetido. “A forma permissiva como essa prova é empregada no sistema de justiça criminal brasileiro é um problema da criminalização da pobreza, porque é um tipo de prova que é empregada em crimes que são atribuídos por excelência às pessoas pobres que vivem nas periferias. A polícia tem mais a acesso ao corpo da pessoa por causa da sua fragilidade socioeconômica, racial, e se aproveita desse acesso para converter esse em meio de prova de maneira totalmente arbitrária”, critica.

O que diz o governo

A Ponte entrou em contato com Secretaria da Segurança Pública do governo Rodrigo Garcia (PSDB) para questionar o suposto flagrante, o procedimento adotado pelos policiais do Deic na abordagem de Hiago, Lucas e Wesley e quais outros elementos foram levantados pela investigação. A pasta encaminhou uma nota:

“O caso foi investigado pelo Deic. O inquérito policial foi relatado à Justiça em 2 de setembro de 2021 e não retornou à unidade com solicitações de novas diligências. A Polícia Civil esclarece que os reconhecimentos seguiram os procedimentos determinados pelo artigo 226 do Código de Processo Penal.”

O que diz o Judiciário

Também questionamos o Ministério Público Estadual de São Paulo e o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre as alegações do álibi de Hiago e sobre o reconhecimento ter sido realizado fora das regras previstas na lei. O MP enviou um posicionamento da Promotoria sobre o caso, alegando que a vítima reconheceu Hiago, Lucas e Wesley na delegacia e em juízo:

“Na primeira oportunidade em que a Defesa do réu Hiago se manifestou nos autos, em 06 de outubro de 2021, requereu a soltura dele alegando vicio no reconhecimento da vítima, que a prisão não era necessária e que ele foi abordado pelos policiais, porque estava caminhando pela Rua Renata, onde reside e foi conversar com alguns colegas que também moram na região, sendo abordado pelos policiais. A Defesa do réu Hiago alegou ainda que ele tinha acabado de sair do emprego na empresa JJ Embalagens e Festas Ltda, permanecendo nesse emprego até julho de 2021, juntado a rescisão do contrato de trabalho. Não houve qualquer menção sobre Hiago ter emprego de pedreiro no dia em que ocorreu o roubo. Durante a audiência de instrução, a vítima reconheceu Hiago na audiência virtual como sendo um dos roubadores que chegou logo depois que foi abordado por dois roubadores que simularam o emprego de arma de fogo. Reconheceu também a foto tirada na Delegacia de Polícia. Hiago disse que estava em horário de almoço trabalhando de pedreiro somente perante o juiz durante o interrogatório, sem trazer prova de sua alegação. Foi condenado por roubo em concurso de agentes à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão em regime fechado, sendo que o Ministério Público não recorreu da decisão. O processo se encontra aguardando apresentação de recursos dos acusados.” 

Já o TJ-SP enviou a seguinte nota:

“O TJSP não emite nota sobre questão jurisdicional. Os juízes têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos cabíveis, previstos na legislação vigente.”

ATUALIZAÇÕES: matéria atualizada dias 20/6, às 14h20, e 21/6, às 15h50, para adicionar os posicionamentos enviados pelo Ministério Público (MP) e pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) respectivamente.

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