Carregador negro foi preso em 28 de novembro de 2019 acusado de participar de um roubo a um sítio em Itapecerica da Serra (Grande SP); especialista diz que reconhecimento fotográfico não sustenta condenação
A dona de casa Marineide Silva Santos, 52, não vê o filho há mais de dois anos e três meses. Flavio Silva Santos, homem negro de 29 anos auxiliar de carga e descarga em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, costumava visitar a mãe aos finais de semana no município vizinho, em São Lourenço da Serra, para lhe fazer companhia. Porém, a rotina da família de Marineide não é mais a mesma desde que Flavio foi preso no dia 28 de novembro de 2019 acusado de participar de um roubo a um sítio localizado na Rodovia Régis Bittencourt, na altura de Itapecerica.
Segundo as investigações da Polícia Civil, uma foto de Flavio retirada do Facebook foi suficiente para incluí-lo o como um dos oito suspeitos encapuzados que invadiram a propriedade no dia do crime. Oito meses depois, no dia 11 de agosto de 2020, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a 13 anos e 5 meses de reclusão com base em um reconhecimento irregular e hoje cumpre pena em regime fechado na Penitenciaria de Taquarituba, no interior de São Paulo, a mais de 300 km de casa.
“É um sofrimento. Acabou com a família”, se emociona Marineide ao falar da situação do filho. “Quando a gente vê na televisão, a gente não acha que vai acontecer com a gente e aconteceu. Eu nunca fui [visitá-lo] por ele se preocupar comigo também. Eu achei que fosse forte, mas não sou, tem sido muito difícil, doloroso. A gente sempre teve uma vida humilde, mas sempre foi uma família unida”, lamenta.
Agora morando em São Carlos, Marineide mantém contato com Flavio por meio de cartas e recebe informações dos demais filhos que o visitam e buscam respostas sobre o caso. O que não ficou claro até hoje para a toda a família Santos é como a foto de Flavio foi parar nas mãos da polícia. Nem mesmo no processo constam informações de como isso aconteceu.
De trabalhador a suspeito por conta de uma foto
De acordo com o boletim de ocorrência assinado pela delegada Gina Alves do Rosário, um agricultor compareceu na Delegacia de Polícia de Itapecerica da Serra para relatar o roubo que acontecera dois dias antes, em 26 de outubro de 2019, às 05h30, em seu sítio. Em depoimento, a vítima diz que estava com familiares e funcionários na residência quando todos foram surpreendidos e rendidos por oito assaltantes que estavam armados e encapuzados na sua maioria com toucas “ninja” e até usavam luvas. Durante a ação, alguns deles agiram com violência agredindo algumas das vítimas, entre eles um idoso. Segundo o agricultor, um dos assaltantes abaixou a camiseta que improvisou para cobrir o rosto e que, em certo momento, seus companheiros o chamaram de “Luís”. Foram levados celulares, eletrodomésticos, R$ 20.000 em espécie, US$ 7.000 e € 1.000, além de ienes.
No dia 30 de outubro, o agricultor declarou que desconfiava que os assaltantes poderiam ser da região do Parque Santa Amélia, em Itapecerica, por isso procurou nas redes sociais e foi apresentar na delegacia a foto de Luiz Felipe Santos Silva. Cinco dias depois, foram feitos dois autos de reconhecimento fotográfico que não cumpriram com os procedimentos previstos pelo artigo 226 do Código de Processo Penal. Além de a vítima apontar Luiz Felipe como o suspeito chamado pelos companheiros, também apontou Flavio Silva Santos como outro suspeito que, embora estivesse usando uma touca, foi reconhecido pela cor dos olhos, porte físico, altura e “bigode ralo” a partir de uma foto que consta nos autos do processo.
A Polícia Civil ouviu testemunhas e recebeu denúncias anônimas sobre os outros suspeitos do crime. Foram expedidos mandados de prisão temporária, entre eles o de Flavio, e de busca e apreensão. Em entrevista à Ponte, Laiziane Cristina Melo da Silva, atendente e esposa de Flavio, conta que até então ele não sabia que estava envolvido na investigação. A família só recebeu a informação quando policiais entraram de surpresa na casa de Flavio, em 18 de novembro de 2019, procurando por ele.
“Ele fazia bicos fixos e saia para trabalhar 05h20 da manhã. E teve um certo dia que ele saiu para trabalhar, eu estava dormindo. Eu escutei um barulho na porta e depois vi uma lanterna no meu rosto, acordei assustada e já eram os policiais. Eles não revistaram a casa e nem nada. Depois perguntaram ‘cadê as crianças, você tem filhos?’ e eu falei não”, recorda. Laiziane ligou para o marido em seguida para contar da abordagem e diz que ele ficou preocupado de acontecer alguma coisa pois nunca teve nenhuma passagem na polícia.
No dia 28 Flavio, acompanhado da esposa e do irmão Tarcísio Silva Santos, 33, foi espontaneamente até a delegacia de Itapecerica para saber sobre a investigação e as acusações contra ele, e desde então ficou preso e foi alvo de mais um reconhecimento irregular. Dessa vez, uma testemunha preservada foi até a delegacia e o reconheceu “com 100% de certeza” como um dos assaltantes que entraram na sua casa e agiram de forma agressiva. “Ele já voltou da sala com o mandado de prisão. Nessa ficamos sem saber o que fazer, nos desesperamos”, conta Laiziane.
No relatório de investigação, as policiais civis Mirileia Barroso Cunha e Jane Cazuza F. Cordeiro informaram que Flavio negou envolvimento no roubo e que não foi encontrado nenhum outro elemento e prova que pudesse incriminá-lo, além dos reconhecimentos fotográfico e pessoal. Mesmo assim, o promotor Alexandre Acerbi apresentou o pedido de prisão preventiva e denunciou Flavio pelo crime junto com Luiz Felipe e um outro suspeito. Os três foram encaminhados ao Centro de Detenção Provisórioa (CDP) de Itapecerica da Serra.
Durante meses, a defesa de Flavio apresentou pedidos de liberdade com recibos dos dias de trabalho, a comprovação de residência fixa, as contradições do processo, mas todos foram negados pela Justiça. O Ministério Público se manifestou pela condenação somente de Flavio, que reafirmou sua inocência e disse que no dia do roubo foi para a casa da mãe junto com a esposa, logo pela manhã, como de costume. Já no andamento da audiência, que aconteceu de forma remota em agosto de 2020, o juiz Bruno Cortina Campopiano da Comarca de Itapecerica da Serra pediu que vítima reconhecesse mais uma vez Flavio.
Na sentença, o magistrado argumenta que a condenação de Flavio se sustenta pelo fato de ele ter sido reconhecido pela vítima “sem qualquer hesitação por parte do ofendido”, contrariando diversas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que admitem que o reconhecimento fotográfico não é suficiente para condenar o réu.
Falhas no reconhecimento
A advogada criminal Débora Nachmanowicz de Lima, que analisou o processo a pedido da Ponte, aponta que o reconhecimento fotográfico apresentado contra Flavio não pode servir de prova única, até mesmo pela maneira como foi feito com a busca ativa pela vítima do roubo. “Se a gente chega no reconhecimento fotográfico, ele precisaria ter o alinhamento, ter instruções, ter o que se chama de duplo-cego [em que nem mesmo a autoridade que conduzirá o reconhecimento saiba sobre o principal suspeito], ter ausência do feedback positivo. No caso do Flavio, você tem tudo o contrário”, afirma.
“De qualquer maneira, se foi a vítima ou se foi a polícia que encontrou a foto do Flavio, é errado porque quando você usa fotografia da rede social você não tem um procedimento padrão, com critérios, com fotos que vão pegar rosto, corpo, todos do mesmo jeito. Além de tudo, você pode ter modificação digital das fotos e o viés racial, que nesse caso é especialmente pior porque as vítimas são orientais e os acusados são negros”, explica.
Débora fala que a neurociência comprovou que, além das dificuldades relacionadas a falha da memória e a necessidade de encontrar um culpado, o reconhecimento fica ainda mais comprometido quando é feito por pessoas de raças diferentes, por depender da percepção das diferentes características. Segundo ela, uma vez que a vítima viu a foto de Flavio, ela tende reconhecê-lo outras vezes.
O critério de ser reconhecimento pela “altura” em uma foto, como apontou a vítima, também é contestado pela especialista. Ela destaca que a própria polícia não indiciou Flavio por não ter encontrado outros elementos. “O reconhecimento pessoal também não teve os critérios do Código de Processo Penal [respeitado], não estava junto com pessoas semelhantes a ele e foi diretamente apontado como suspeito”, aponta.
Família luta por justiça há dois anos
“Eu acho muita injustiça. Querendo ou não vem acabando com a nossa vida, a família sofre”, desabafa Laiziane. “A gente está tentando ajudar ele da forma que dá. Às vezes a gente chega lá e ele está bem abatido, chora muito, está magro. E ficamos pensando: meu Deus, até quando a gente vai passar por isso?”, questiona angustiada. A esposa conta que Flavio tem anemia, fez exames e precisou ficar internado por um tempo.
O primeiro ano longe dele foi o mais difícil para a família. Laiziane e o marido viviam juntos há dois anos, e nesse período, se juntou aos parentes para dar conta dos custos da defesa. Ela diz que Flavio nunca teve problema com a Justiça. “É uma pessoa que, para ele, todo mundo é amigo. Se ele te conheceu agora, ele vai te tratar maravilhosamente, parecendo que você é amigo dele de anos. O negócio dele era ir a um bar, beber e jogar sinuca. Até hoje o patrão dele tem os recibos dele tudo certinho”, conta.
À Ponte, Tarcísio Silva Santos, 33, marceneiro e irmão de Flavio que acompanha mais de perto o processo, diz que o irmão foi vítima de uma injustiça e acredita que não houve reconhecimento. “Você imagina ter sua família, sabe o que o seu irmão faz e deixa de fazer. E veio essa bomba. Nós não sabíamos o que ele tinha sido acusado, não sabíamos de nada”, recorda. Ele conta que nesse período, a família não tinha sido bem orientada sobre a defesa e um dos advogados contratados não conseguiu conduzir da melhor forma as alegações que favoreciam Flavio, como o álibi dele, e perdeu o prazo de recurso.
Tarcísio fala que nunca aceitou a condenação do irmão e buscou apoio de organizações como Innocence Project, que trata da questão de prisões de inocentes no país. “Ele foi condenado graças a uma foto dele que não condiz com a personalidade dele. Pegaram essa foto e montaram um enredo em cima dela”, considera o irmão, levando em conta os estereótipos aos olhos do MP e da Justiça. “Sempre fizemos visitas para ele, não abandonamos. Ele foi transferido para Taquarituba e, infelizmente, não dá para visitar de 15 em 15 dias por conta do custo. É quase R$ 800 toda vez para ir”, explica.
Um pedido de habeas corpus de Flavio está para ser julgado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Enquanto isso, Tarcísio busca alternativas para expor as irregularidades no caso. Em janeiro deste ano, ele contratou uma perícia para analisar a assinatura do auto de reconhecimento fotográfico feito pela vítima do roubo, pois a vítima teria dito que não viu a foto de Flavio em audiência. O laudo assinado pela perita Leidiane de Mesquita conclui que a assinatura foi falsificada.
Procurada pela reportagem, a vítima afirmou que Flavio teria sido reconhecido também por mais testemunhas no bairro e que qualquer questionamento sobre o caso teria que ser feito à Justiça.
O que diz a polícia
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre os apontamentos da defesa de Flavio e se o reconhecimento fotográfico faz parte dos procedimentos adotados na Delegacia de Polícia de Itapecerica. A pasta encaminhou a seguinte nota como resposta:
“A Polícia Civil de Taboão da Serra esclarece que o caso foi investigado pela Delegacia de Itapecerica da Serra e relatado ao Poder Judiciário em novembro de 2019. A Justiça determinou a prisão preventiva do indiciado. Todos os procedimentos de polícia judiciária foram realizados nos termos da legislação vigente. Até o momento, o IP [Inquérito Policial] não retornou ao distrito policial com cota ministerial para cumprimento de novas diligências.”
O que diz o MP
A reportagem também entrou em contato com o Ministério Público de São Paulo (MPSP) para questionar sobre o auto de reconhecimento ser a principal prova na condenação de Flavio. O órgão respondeu:
“A atuação do MPSP se deu, no caso, nos exatos termos e de acordo com a Constituição Federal, normas legais e infralegais, como é possível observar na longa e analítica análise dos autos, que indicam e depuram todos os elementos e provas que culminaram em nossa convicção e atuação, jamais utilizando qualquer elemento extraprocessual ou pessoal, primando pela melhor prestação judicial à sociedade, sem abuso de poder, sem discricionariedade ou qualquer traço de ilegalidade.”
O que diz a Justiça
Em nota, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) diz que “não emite nota sobre questões jurisdicionais”. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente“, conclui a nota.