Preso por crime que não cometeu, jovem negro deixa prisão na Grande SP

    ‘Sonhava em abraçar minha família’, diz Heverton Enrique Siqueira após 40 dias na prisão; Justiça de SP determinou liberdade após denúncia da Ponte

    Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, está em casa. Depois de 40 dias preso por um crime que a própria vítima afirma que ele não cometeu, a primeira coisa que ele fez quando chegou em Sapopemba, zona leste da cidade de São Paulo, foi cortar o cabelo. O segundo passo seria tomar um banho quente, já que no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Mauá, na Grande São Paulo, onde ele ficou detido, só rolava ducha fria, mas ele decidiu falar com a Ponte antes.

    Alegria é o único sentimento que Heverton tem agora. Ele relatou à Ponte que a sensação de liberdade é inexplicável. “Quando te privam de liberdade por algo que você não fez é muito ruim. Até cair a ficha que você tá naquele lugar demora, porque você fica sem entender o que aconteceu. Eu não pensava muito nas coisas do mundo, só pensava em estar perto da minha família, reconciliar com as pessoas que eu tive intriga da minha família e estar próximo de todos”, confessa.

    Na manhã desta terça-feira (19/11), por volta das 10h, Heverton finalmente pode abraçar, em liberdade, sua família que lutou incansavelmente para denunciar os erros do caso e provar a inocência do jovem. Ele foi recebido com emoção e muitos abraços na saída do CDP.

    “Eu só não chorei quando abracei elas hoje, mas a emoção apertou no peito. Eu sonhava com esse momento, sonhava que eu saía e abraçava minha família. Tudo que mais tava na minha mente era sair e dar um forte abraço nelas”, desabafa Heverton.

    A expectativa era de que esse longo abraço acontecesse ainda na noite de segunda-feira (18/11), quando a juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães determinou a liberdade provisória ao jovem, depois da audiência no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste da cidade. Conforme apontado no alvará de soltura, Heverton não foi inocentado das acusações, mas conseguiu o benefício de responder em liberdade considerando que tem residência fixa e registro de trabalho.

    “Até ontem eu não acreditava na liberdade. Como eu ganhei a liberdade e tava voltando pra lá novamente? Eu só acreditei quando comecei a assinar os papéis do alvará, aí caiu a ficha, meu sorriso já mudou, meu semblante já mudou”, conta o jovem com um sorriso no rosto.

    Algumas medidas cautelares foram determinadas pela Justiça: Heverton não pode se ausentar da cidade sem aviso prévio durante a tramitação do processo, não pode frequentar bares, não pode se aproximar da casa da vítima e não pode ficar na rua no período noturno, salvo se estiver trabalhando. A próxima audiência do caso está marcada para dia 10 de março do ano que vem, quando a vítima, Heverton, os PMs envolvidos na prisão e testemunhas serão ouvidos.

    Os dias no CDP de Mauá não foram fáceis. “Eu fiquei doente lá. Tem muita impureza na alimentação. É só mesmo pra manter a gente com a barriga cheia”, conta Heverton.

    Heverton ao lado da namorada Kelly (à esq.) e de sua irmã do meio Leiliane Santos (à dir.) | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Agora, Heverton Enrique só quer recomeçar e continuar construindo seus sonhos ao lado da namorada Kelly Meira da Silva, 19 anos: ter uma casa e uma família. “Eu não consegui dormir ontem, tava muito ansiosa. Foi a melhor coisa ver ele aqui fora. Agora é ver ele se reconstruir, continuar os nossos planos”, reforça, Kelly.

    Em entrevista à Ponte, Leiliane Santos, 24 anos, irmã do meio e quem denunciou a prisão de Heverton, conta como é gratificante ver o irmão em casa. “Eu fiz tudo isso porque eu o amo, qualquer irmão faria o que eu fiz, mas eu fico muito feliz de ver que ele quer recomeçar a vida dele, deixar tudo para trás. Agora é ajudar ele a esquecer isso”, crava.

    Apesar disso, a irmã não esconde a revolta em saber que o Heverton ficou preso por algo que não cometeu. “É revoltante porque ele não fez nada e mesmo assim ficou 40 dias preso, mas é muito emocionante ver ele saindo de lá. Só estando nessa situação pra gente começar a ver as coisas e dar valor para o que temos que dar. Ver como algo simples ali naquele momento é o mais gratificante”.

    Leiliane conta que, apesar de dias de muito sofrimento, tudo valeu a pena para ver o irmão bem. “Em cada humilhação eu pensava que estava fazendo isso pelo meu irmão. Então hoje, lá na frente, eu quis olhar para os agentes penitenciários e mostrar que o meu irmão é inocente, pois um dia eu falei isso e eles tiraram sarro de mim. Meu irmão entrou algemado, mas saiu pela porta da frente”, comemora.

    Ela também agradece mais uma vez ao trabalho da Ponte. “Sou muito grata a vocês pelo que fizeram, aquela primeira matéria que deu visibilidade essa visibilidade toda e foi dando cada dia mais força pra gente”.

    A Justiça de SP determinou a liberdade do jovem negro depois que a Ponte denunciou alguns erros no caso. O principal deles é que o reconhecimento foi feito de maneira irregular, já que Heverton só foi reconhecido quando foi obrigado a colocar um capuz, e foi invalidado pela vítima: no dia 22 de outubro a reportagem divulgou uma carta escrita de próprio punho pela vítima afirmando que Heverton não era o responsável pelo roubo de um carro em Sapopemba, na zona leste de São Paulo. Ele tomou essa decisão depois que tentou ir depor no 69º DP (Teotônio Vilela) para modificar o reconhecimento feito anteriormente e recebeu uma recusa.

    Heverton foi detido no dia 10 de outubro enquanto fumava um cigarro em uma praça perto de sua casa. Pensar nesse dia, conta Heverton, traz à tona um momento de tristeza.

    “No dia em que eu fui preso, eu tava muito assustado, chorando demais. Ficava pensando ‘o que eu fiz? Eu não fiz nada pra tá aqui’. Fiquei sem entender aquilo. Pedia para Deus me ajudar a entender o que estava acontecendo”, desabafa Heverton.

    “Eu falava para os policiais que eu não tinha feito nada e eles me chamavam de ladrão e perguntavam porque eu tava mentindo pra eles, que era pra eu chegar na verdade. Eles batiam de pé junto que eu tinha feito”, conta.

    No dia seguinte, a vítima, que é motorista de aplicativo, percebeu que havia se enganado no reconhecimento e tentou reverter a injustiça, mas não conseguiu ser ouvido. Decidiu então escrever a carta e registrar em cartório.

    A atitude da vítima deixou o jovem esperançoso. “Antes eu achava que seria condenado por algo que eu não fiz, mas aí recebi a notícia de que a vítima havia colaborado e fiquei mais contente, parei de chorar e comecei a conversar com as pessoas lá dentro”, agradece Heverton.

    Além do engano reconhecido pela própria vítima, reportagem da Ponte apontou outros elementos que afastavam Heverton da cena do crime: o fato de que no horário do crime o jovem estava conversando com a namorada através de um aplicativo de mensagens e a distância de quase 2 km que separavam Heverton do local do roubo.

    Reportagem atualizada às 16h10 do dia 19/11foram incluídas declarações de Heverton e seus familiares, que receberam a reportagem da Ponte logo após a saída dele do CDP

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