Inundação que atingiu estado deixou unidades prisionais ilhadas e com falta de abastecimento de água; esposas tiveram de se arriscar para levar mantimentos em presídio de Montenegro, a 60 km de Porto Alegre
Nós estamos há sete dias sem banho. Sete dias comendo arroz e feijão. Nós estamos [em] seis dentro de uma cela e eles pagam um, dois litros de água para cada cela. Dois litros para seis cara. E a situação de higiene… Nós estamos cagando na sacola e jogando para o fundo da galeria. Tá tudo cagada. Ninguém aguenta mais o fedorão de merda.
Esse é o relato obtido pela Ponte de um detento da Penitenciária Modulada Estadual de Montenegro, uma das unidades prisionais que estão ilhadas na região metropolitana do Rio Grande do Sul após as inundações que afetaram 80% dos municípios do estado desde semana passada, sob a gestão do governador Eduardo Leite (PSDB).
“As notas oficiais dizem que não falta água, mas não é o relato que estamos recebendo”, denuncia Ana Paula Saugo, vice-presidente da ONG Viver sem Cárcere e integrante da Frente dos Coletivos Carcerários do Rio Grande do Sul. “Se antes das enchentes a situação dos presídios já era ruim, imagine agora.”
Segundo familiares que pedem para não serem identificados por medo de represálias, a situação do sistema carcerário está crítica e os presos dependem de mantimentos enviados pelos parentes para sobreviver. No caso da unidade em Montenegro, que fica a cerca de 60 quilômetros da capital Porto Alegre, as águas não entraram no interior do presídio, mas o problema é o abastecimento de água.
“Quando eu liguei lá, disseram que na unidade não tinha água e que foi oferecido para eles um pouco de água por meio de caminhões-pipa que estavam indo eventualmente. Mas como está meu familiar especificamente, eles não informam”, conta Raquel*, que tem um companheiro preso.
Ela falou com a reportagem após tentar reunir outros parentes para buscar rotas seguras para se deslocarem até o presídio, já que algumas delas moram a uma hora ou mais de distância e diversas estradas foram interditadas ou completamente destruídas com as enchentes.
As famílias foram informadas que poderiam entregar água, alimentos e itens de higiene na porta da Montenegro nesta quarta-feira (8/5) após dias de angústia em busca de informações, já que as visitas aconteceram parcialmente na semana passada e as do do final de semana tinham sido completamente canceladas. No boletim divulgado no início da tarde, assim como nos anteriores, a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo e a Polícia Penal informaram que Penitenciária de Montenegro continua ilhada, “mas operando dentro da normalidade”.
“Se tivesse numa situação normal, a casa [unidade prisional] não teria autorizado as famílias a levar água, né?”, questiona Raquel*.
Para ela, a situação é “constrangedora”. “A sua casa tá debaixo de água, muitos familiares estão em abrigos, dependendo de doações de outras pessoas, e ainda a gente tem que se deslocar nessa situação para suprir uma necessidade que é a responsabilidade do Estado, que é o básico, que é comida e água”, lamenta. “Além de tudo isso, a gente não vai poder ver o nosso familiar. A gente vai largar a sacola lá para eles e vai voltar para casa arriscando a vida.”
Joana* é uma das familiares que ainda estava se reerguendo da enchente de 2023 quando teve de largar a casa que morava na semana passada. “Eu perdi a minha casa de novo. As cobertas que eu tenho eu recebi da doação do ano passado”, afirma. “Tive que pegar um dinheiro emprestado para comprar as coisas para o meu marido e vou ter que passar por esse risco.”
Mirela*, que também tem um companheiro em Montenegro, porém, não vai conseguir ir até a unidade. “Não tem por onde passar e não tem como eu pedir para outra pessoa enviar porque a sacola é por familiar que está cadastrado com carteirinha”, lamenta. “Ele vai depender do que os outros presos forem dividir.”
As esposas relataram que a lista foi flexibilizada e os itens “dobrados”, ou seja, foram permitidos 10 itens entre alimentação e roupas (antes eram cinco), até cinco litros de água e sete itens de materiais de higiene e limpeza. Raquel relatou que conseguiu fazer a entrega das sacolas, mas teve que sair rápido pois voltou a chover e, ao chegar na própria casa, estava sem água na torneira e energia elétrica instável. “A última sacola foi entregue meio dia. Foi sair que chegou um monte de viatura da Polícia Penal, seis carros e duas vans, cheia de polícia, armados até os dentes e ninguém sabe o que eles vão fazer lá dentro”, disse.
Na cidade de Charqueadas, onde há um complexo prisional com sete unidades com capacidade para seis mil pessoas, a enchente invadiu três delas devido ao aumento do nível da água do Rio Jacuí, segundo o superintendente dos Serviços Penitenciários (Susepe) do Rio Grande do Sul Mateus Schwartz dos Anjos. Na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), parte dos detentos foram realocados para galerias superiores enquanto outros 1.057 presos foram transferidos para Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) no último final de semana.
Na ocasião, um vídeo gravado por um detento mostrou a água que havia atingido as celas. A Susepe informou, nesta quarta-feira (8/5), que todos os presos retornaram para a PEJ devido à queda do nível do rio. Familiares ouvidos pela Ponte relataram dificuldade de obter informações mesmo com os telefones de WhatsApp disponibilizados nas redes sociais da Susepe, já que em Charqueadas as visitas foram totalmente canceladas e não havia autorização para envio de água e mantimentos, além dos acessos ao município estarem prejudicados.
Ainda no final de semana, a Vara de Execução Penal de Porto de Alegre autorizou que detentos do regime semiaberto fossem liberados para prisão domiciliar no Instituto Penal de Charqueadas (IPCH) pelo prazo de 20 dias, e Instituto Penal de Canoas (IPC) por cinco dias, excluídos os que estejam presos preventivamente, segundo a assessoria do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS).
Dos 161 do IPCH, o superintendente Mateus Schwartz informou à reportagem que 158 foram liberados e três pediram para ficar na unidade prisional pois não tinham para onde ir. “O restante disse que ia sair, que gostaria de sair e que iria até suas residências por meios próprios”, disse.
A Ponte o questionou sobre a liberação, uma vez que familiares informaram que não houve apoio da Polícia Penal para os deslocamentos e há vídeos de detentos buscando carona em caminhão e outros andando na chuva. “Não [houve transporte] porque a maioria dos presos que são entregues no Complexo de Charqueadas é da região metropolitana de Porto Alegre”, afirmou. Ele ainda disse que alguns abrigos informaram presença de presos que tiveram as casas inundadas.
Schwartz conta que o complexo teve um problema de racionamento de água, mas não houve desabastecimento e que há estoque de alimentos que não foram afetados com a inundação. Também informou que estão utilizando a Cadeia Pública de Porto Alegre para montar alojamentos para servidores e familiares que perderam as residências durante as enchentes. E as unidades que estão ilhadas, como em Charqueadas e o Presídio Estadual de Arroio do Meio, estão tentando fazer as trocas de turnos dos funcionários com rebocador. Nesta última, o acesso é apenas pela água ou pelo ar.
O Instituto Penal de Montenegro teve liberação para os detentos do semiaberto por 15 dias, que podem ser prorrogáveis, por causa de inundação e pane na rede elétrica. Já o Instituto Penal de Novo Hamburgo (IPNH) e o Instituto Penal de São Leopoldo (IPSL) também tiveram autorização para prisão domiciliar aos que cumprem o semiaberto por falta de abastecimento de água, de acordo com o TJ-RS, sendo que o retorno estava previsto para ontem, quando seriam informados sobre prorrogação do benefício ou retorno imediato para as galerias.
À reportagem, a mãe de um detento em Novo Hamburgo disse que foi avisada sobre a liberação do filho, não pode buscá-lo, mas ele conseguiu chegar à casa de parentes. No caso dele, a domiciliar foi prorrogada. “Ele conseguiu carona e vir por trechos que não estavam tão alagados. A situação dele não é grave, mas teve preso que saiu no meio da água em Charqueadas com o alvará na mão”, afirma.
Mariele* conseguiu buscar o companheiro no Presídio Regional de Pelotas, mas já estava preocupada pois a prefeitura da cidade orientou, nesta terça-feira (7/5), moradores de 14 localidades a saírem de suas casas pelo risco de enchente nos próximos dias devido à elevação no nível da água em Lagoa dos Patos e do canal de São Gonçalo, que margeiam o município, como informou o jornal Folha de S. Paulo.
“Já temos que subir os móveis porque a água vai vir tudo para cá. Por enquanto está tranquilo em Pelotas, mas está uma luta para outras famílias por causa da falta de sistema que vem todo de Porto Alegre, de suspenderem novas carteirinhas, e não tem como ter sinal para as tornozeleiras. Em Porto Alegre, pelo menos, deram essa exceção [de não usar tornozeleira]”, relatou.
Na capital gaúcha, familiares estão tendo um pouco mais de acesso aos privados de liberdade. Juliana* explica que na Penitenciária Estadual de Porto Alegre (PPOA), as visitas foram mantidas. “Ali não alagou, mas a questão da luz, a questão do racionamento de água é muito ruim. Qualquer coisa ali falta luz e falta água. E no momento, eles estão totalmente sem água. Nem para tomar nem para banho, limpeza, higiene, nada”, afirma.
De acordo ela, a unidade permitiu que parentes recolhessem galões para encher e levar até o local. “Não tem água para comprar aqui. O único jeito é encher galão, garrafa, nas nascentes, onde estão distribuindo água e levar para eles.”
No caso dessa penitenciária, Juliana diz que foram permitidos cinco itens. “Dois já são de potes de comida, de carne, porque a comida da cadeia é ruim. Às vezes vem estragado, às vezes não vem carne. E estão autorizando a entrada de um galão até cinco litros por familiar na visita”, relata.
Ela afirma que estão sendo feitas visitas duas vezes por semana. “O que a gente leva dura dois dias ou nem isso porque tem muitos presos que não têm visita e eles compartilham entre si.”
O que dizem as autoridades
A Susepe tem informado em boletins no Instagram que não faltam energia elétrica nem água potável nas unidades, sendo que as que tiveram problemas com abastecimento tiveram apoio de caminhões-pipa ou bombonas de água, embora os parentes ouvidos pela Ponte contestem a frequência e alcance dessa medida. A Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo e a Polícia Penal também informaram que “todas as pessoas privadas de liberdade estão em segurança, com acesso à alimentação e água potável”. A unidade de Rio Pardo voltou a ter energia elétrica nesta quarta, diz a pasta.
À Ponte, o superintendente da Susepe disse desconhecer pedido de água potável da pasta ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), como foi noticiado pelo UOL. A Susepe disse em nota que “não foi necessário um pedido formal” à pasta.
Sobre a questão dos presos do semiaberto liberados durante a chuva, a superintendência disse que eles “corriam risco de vida em função do rápido avanço no nível da água na unidade. Conforme a decisão [judicial], o dispositivo de monitoramento eletrônico deve ser instalado em cinco dias, conforme protocolo. As condições do local não permitiram a oferta de transportes para estes apenados”.
Informou ainda, que as tornozeleiras são colocadas no Instituto Penal de Monitoramento, que fica em Porto Alegre, e que a Polícia Penal fará a instalação dos dispositivos.
A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), por sua vez, disse em nota que “a ação é uma iniciativa própria em virtude dos fatos recentes no Rio Grande do Sul” e que a arrecadação de água, alimentos não perecíveis e roupas doadas são para a população como um todo, não apenas do sistema prisional. “A Penitenciária Federal em Catanduvas entregou as doações ao Corpo de Bombeiros Militar do Paraná para destinarem ao Rio Grande do Sul”, informou.
A secretaria ainda declarou que “está tratando o envio Policiais Penais Federais bem como solicitando o apoio de outras forças de segurança para que as doações alcancem a finalidade pretendida” e que a destinação deve ser checada com o governo gaúcho.
Procurada, a assessoria da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul disse que acompanha a situação das unidades prisionais e que não cobrou nenhuma medida pois a Susepe já fez a liberação emergencial dos detentos do regime semiaberto.
*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas.
Reportagem atualizada às 18h, de 8/5/2024, para incluir resposta da Susepe.