Após seis meses preso, educador social Marcelo Dias luta para provar inocência da acusação de tráfico de drogas e quer reparação do Estado: ‘Como dizer para uma criança preta da periferia não ter medo da polícia?’
Marcelo subiu três lances de escada com entusiasmo. A luz do sol do final da tarde destacava o laranja dos tijolos do seu local preferido: a laje de casa. Ali no alto, onde era possível ver grande parte das casas do Cursino, na periferia da zona sul de São Paulo, ele explicava por que é conhecido como “encrenqueiro do bairro”. “Aquela praça ali a gente começou a ocupar para fazer as atividades das crianças, a ginástica das senhorinhas, porque elas não tinham um lugar para recreação e a praça era usada para tráfico de drogas”, mostrava. Com o indicador, apontava em direção ao Túnel Maria Maluf, próximo a uma escola de samba. “A gente teve que pressionar para aquela quadra ficar aberta durante o dia para os jovens jogarem bola porque ficava fechado o dia inteiro e só abria à noite para ter festa”, recordava. “Por ali também passa um caminhoneiro que sempre descarta lixo e ainda não conseguimos chamar a atenção dele para não fazer isso. Já gritei daqui de cima”, ria.
O educador social de 39 anos voltou a ter aquela visão panorâmica do bairro onde cresceu há exatamente uma semana. A camiseta que vestia naquela tarde de quinta-feira (27/12) foi bordada a mão por um dos colegas de cela com as duas palavras que há seis meses sua família gritava nas ruas: “Marcelo Livre”, acompanhada da hashtag “justiça”. “Eu estou livre. Mas só de corpo porque de pensamento… eu não estou restabelecido”, dizia, sem conseguir conter as lágrimas. “É uma tortura psicológica. Parece que o sistema foi feito para te matar aos poucos”.
Marcelo Dias teve a liberdade provisória concedida no dia 19/12, recebido pela família de braços abertos e muita emoção. Vestia a mesma camiseta bordada quando nos recebeu. Tanto o juiz Antonio Maria Patiño Zorz quanto o Ministério Público entenderam que há indícios de fragilidade das provas contra o educador diante da acusação de tráfico de drogas e associação para o tráfico e que, por ele ter residência fixa, registro em carteira de trabalho e atividade em organização social, a liberdade não implicaria riscos ao processo.
Ele foi preso no dia 9 de junho de 2018, acusado de fazer parte de um grupo de 4 pessoas flagrado com 4,9 kg de pasta base de cocaína. De acordo com o educador social, dois jovens haviam deixado uma sacola na Rua Mario Grazini, em frente a ONG que preside, enquanto o grupo estava em um táxi. Marcelo estava em seu carro, carregando cadeiras para um bingo que seria realizado na sede da entidade, e sinalizou a policiais militares que passavam pelo local sobre o objeto deixado. Ele foi acusado de integrar a quadrilha.
“Acho que só depois os policiais perceberam quem era o Marcelo, que eu não era só um preto, pobre, boca dura que sabia os seus direitos. Me chamaram de ‘neguinho filha da puta’, perguntavam o meu artigo e eu falava que não tinha artigo [jargão policial para se referir ao tipo de crime no Código Penal]. Um deles começou a me empurrar, colocar o joelho nas minhas costas porque ele não acreditava que eu era presidente da ONG, ele não queria aceitar que eu tinha formação, que eu era esclarecido”, conta Marcelo. “Nunca tive contato com droga, nunca roubei, sempre fiz tudo certinho e acabei sendo preso”.
Herança
A família de 25 pessoas, a maioria mulheres, vive na mesma casa no Cursino há aproximadamente 40 anos. Ali perto, Marcelo relembra onde cursou o primeiro grau da escola e mostra a sede da ONG Novos Herdeiros Humanísticos, espaço que conseguiu cedido pela Prefeitura em março de 2018. Desde os 18 anos, quando usava a praça que fica a poucos metros do local como sala de aula, ele atua como líder comunitário – idade em que também conheceu o budismo por causa de uma tia que seguia a filosofia após se curar de um câncer.
“Antes de eu praticar o budismo, eu ainda estava construindo minha casa, isso aqui era um barraquinho que passava rato e mesmo assim eu ainda lutava pela ONG. Minha mãe e minhas irmãs não estavam de acordo. Elas falavam ‘a gente precisa estar bem antes de ajudar os outros’ e eu dizia ‘a gente não pode perder tempo’”, lembra.
Seguir com a entidade, segundo ele, é uma forma de retribuir e dar continuidade ao projeto de uma escolinha de futebol do bairro que ele frequentou quando criança, cujo dono faleceu quando ele tinha cerca de 16 anos. “O nome da ONG reflete isso, que são novas pessoas que vão herdar o sentimento humanista”, explica. “Muita gente me perguntava como eu, preto, pobre da periferia, não ia pro crime, não usava droga. E é por causa do meu pai, porque no ano que eu nasci ele foi preso. Tive pouco contato e eu não queria causar o mesmo sofrimento que eu tive e que meus avós tiveram indo visitá-lo na cadeia”, desabafa.
O primeiro contato que ele teve com o sistema penitenciário foi ainda na infância durante as visitas ao pai. Em uma delas, aos 7 anos de idade, quando ingressava a primeira série do ensino fundamental, o pai perguntou o que ele queria ser quando crescesse. “Eu estava sentado na frente dele, minha mãe do lado, e eu disse ‘polícia’. Ele me deu um tapinha na orelha e disse ‘não, filho, polícia faz mal para o pai’. Foi ali que minha ficha caiu de que meu pai era bandido, fiz um escândalo e não fui mais visitá-lo. Só voltei aos 18 anos, por conta do budismo. Quatro meses depois ele foi morto na cadeia de Tremembé. Ficou 24 anos preso”, lembra.
Essa relação, que ele considera como “kármica”, também passou pela sua mente no momento da audiência de custódia, que aconteceu no dia seguinte à detenção e determinou a prisão preventiva no CDP (Centro de Detenção Provisória) Pinheiros 2. “O juiz perguntou se eu queria acrescentar mais alguma coisa no meu depoimento, eu estava chorando muito, mas falei que nesses 18 anos de trabalho social, eu falava para as crianças que o policial é um trabalhador igual a mãe e o pai, para não ter medo porque a polícia está ali para proteger”, declarou. “Tem pessoas ligadas a movimentos sociais que colocam esse discurso de não confiar na polícia e eu não concordava. Só que diante do que eu passei, eu não tenho mais essa convicção. Como eu vou falar para uma criança, pra um jovem preto da periferia, um aluno meu não ter medo da polícia? O papel da polícia está distorcido. Meu namorado é branco e as únicas três vezes que ele levou enquadro foram quando estava comigo. Tenho certeza que se fosse uma pessoa branca naquele dia da prisão dizendo que era presidente da ONG, ela não seria presa”, desabafa.
Legado
Na cama, Marcelo colocou dois sacos com centenas de cartas que recebeu e papeis escritos por ele e outros presos enquanto esteve no CDP. Cada documento era aberto com todo o cuidado. “Eu tinha que esconder essas cartas porque tinha blitz todo o dia nas celas e os agentes rasgavam tudo procurando drogas. Algumas não consegui trazer, mas boa parte está aqui”. No canto do quarto, diversas roupas estavam sendo separadas para serem doadas para lá.
“Eu ainda estou me readaptando porque toda a vez que eu como, eu lembro dos presos que estavam sem comer; quando tomo banho e tenho o chuveiro quente, lembro da água fria, dos presos dormindo no chão, com pneumonia, tuberculose. É desumano. Gente lá presa há mais de três anos sem ser condenado. Como justiça quer que as pessoas sigam a lei se nem ela mesmo segue?”, questiona. “Agora eu entendo por que as pessoas que passam por lá voltam mais revoltadas e piores do que entraram”.
Dentre os papéis, ele mostrava diversas páginas que começou a escrever desde que foi para o CDP, narrando a abordagem até os seis meses que se seguiram. “Quando eu percebi que eu ia ficar preso lá, eu pensei em líderes que tinham sido presos injustamente e que deixaram um legado por onde passaram. Eu percebi que há muito potencial nas pessoas que estão presas, mas não têm incentivos nenhum, que elas têm um outro lado além do que a sociedade taxa, de que só existe maldade, e eu queria deixar o meu lá”, se entusiasmava.
Durante o período, já em cartas trocadas com a reportagem, Marcelo contava das gincanas que fez no Dia das Crianças, quando os filhos de presos foram visitar os pais, dos concursos de leitura e poesia, do incentivo para que os presos que não sabiam ler nem escrever se matriculassem na escola do CDP. “Tem gente que a família nem sabia que estava presa porque não sabia mandar uma carta. Eu tentava usar parte das minhas para fazer roda de leitura”, lembra.
Em uma das suas postagens no Facebook, no dia 23 de dezembro, já em liberdade, ele ostentava o arco-íris que se formou por volta das 6h da manhã com a seguinte legenda: “Hoje compareci no CDP de Pinheiros para entregar o bolo de final de ano como havia prometido para os presos e seus familiares. E vejam o que apareceu no céu para nos recepcionar”.
“Eu tinha prometido levar o bolo de natal. A gente entrou em contato com uma mulher de um dos presos, levamos o bolo desmontado porque eles tinham que rechear em frente aos agentes e fomos embora. E me perguntam, sem acreditar, ‘mas você voltou ao CDP para levar um bolo às 6h da manhã?’. Sim, foi o combinado e eles tiveram um natal melhor”, sorri.
Agora, Marcelo quer transformar essa experiência em livro contando não só a sua história, mas de outros 11 presos com quem conviveu no período. De acordo com o educador, o objetivo é mostrar a situação de presos numa cadeia que não é controlada por facções criminosas e são colocadas como “neutras”.
“Desde o momento em que eu fui preso, antes de ir para o CDP, fui percebendo essa separação de quem era de facção e de quem não era. Por ser gay, era melhor eu ir para um presídio mais tranquilo pois se você não é de facção, você não é aceito. Os faccionistas, por não conhecerem uma cadeia neutra colocam várias coisas na cabeça dos primários e dos que são de sua facção, falam que os presídios neutros são piores com estupradores, pedófilos, presos que perseguem a família, e são pessoas da pior espécie, denominados de “coisa””, explica. “Muita gente que era só um ladrão de galinha ou um usuário acaba indo pra cadeia de facção para não ser taxado de ‘coisa’. No CDP de Pinheiros eu encontrei muita gente que era ex-faccionista que não concordava com as regras da facção, e acho que a gente tem que mostrar esse lado também”.
Além de provar a inocência, Marcelo tem planos de processar o Estado. “Dinheiro nenhum vai pagar o que eu passei ou trazer de volta o tempo que eu perdi, mas as pessoas não podem esquecer. O Estado tem que se responsabilizar. Aqui na região, a minha ONG é a única que traz alguma atividade para as crianças daqui. Foram seis meses em que elas poderiam estar fora da rua”, comenta. “Minha família nunca tinha saído para as ruas em manifestação e assim como eu, tem mais gente está sofrendo injustiça, a Babyi Querino, o Igor Barcelos e não podemos deixar de lutar por essas pessoas”.