Decisão do STF afetou a reconstituição e defensor aponta “irregularidades na investigação”; mãe de adolescente desabafa: “pela crueldade, esperava mais agilidade”
A Polícia Civil do Rio de Janeiro adiou por tempo indeterminado a reconstituição da morte do garoto João Pedro Matos Pinto, 14 anos, ocorrida no dia 18 de maio, no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do RJ.
A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), do dia 5/6, quando o ministro Edson Fachin proibiu operações policiais no Rio durante a pandemia de coronavírus, justificou o cancelamento. Para acontecer, as ações devem ter motivos definidos textualmente e encaminhados ao MPE (Ministério Público Estadual). Entre os argumentos para tomar a decisão, o ministro citou justamente a morte de João Pedro, atingido por um tiro de fuzil quando brincava na casa de um primo.
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Fachin argumentou que “nada justifica que uma criança de 14 anos de idade seja alvejada mais de 70 vezes” em ação da Polícia Civil com a Polícia Federal. As crianças estavam na sala quando a casa foi fuzilada. Ele se referia à quantidade de marcas de tiros encontradas nas paredes do local em que João estava com outros adolescentes.
Questionada pela Ponte, a Polícia Civil explicou que seguiu a determinação do STF e a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí marcará nova data para a simulação, “imprescindível para a condução do inquérito”. A determinação de Fachin acaba somente com o fim da pandemia.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro acompanha o caso e considerou a decisão correta. De acordo com o defensor público Fábio Amado, coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, reconstituições levam efetivo com cerca de cem pessoas à cena do crime.
“Seria um descumprimento da decisão [do STF]. Está correto”, afirma à Ponte. No entanto, ele aponta que há outros motivos para o adiamento da simulação da morte. Na avaliação dele, fazer a reconstituição agora seria apressado porque ainda faltam provas na investigação.
“Queremos uma reconstituição que seja eficiente, que traga todas as informações necessárias para responsabilizar quem for”, afirma, citando que há “uma série de irregularidades” na condução dos trabalhos. Um deles é o fato de os policiais terem retirado estojos de cartuchos disparados da cena do crime, como revelado pelo jornal Extra.
Ainda de acordo com o Extra, um dos policiais envolvidos no crime entregou o fuzil usado no dia da morte de João Pedro apenas uma semana depois da operação. Além disso, esse policial teria ficado com materiais recolhidos na ação feita no Salgueiro.
Amado explica que parte da perícia feita na casa em que o garoto estava teve como autor a Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade em que trabalham os policiais que atuaram na ação. Os policias ainda teriam alterado a cena do crime, ao retirar uma escada de lugar.
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Ele aponta que essa sucessão de irregularidades quebraria determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que modificou a responsabilidade de apuração de crimes envolvendo policiais. Isso aconteceu na condenação que o Estado brasileiro sofreu pelo massacre na Favela Nova Brasília, em 1995, com 26 mortos e três mulheres estupradas. Na sentença, a Corte determinou que casos como o da matança sejam investigados por “um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado, ou acusados”.
O defensor aponta que isso não tem ocorrido até o momento, como o depoimento de testemunhas, que serão ouvidas apenas na semana que vem pelos Ministérios Públicos estadual e federal.
A cobrança da Defensoria é que a Polícia Federal assuma a reconstituição. “A responsabilidade não é só do estado do Rio, não só do responsável pelo disparo que ceifou a vida de João. É do Brasil, com uma política de segurança que tem levado vidas com sua altíssima letalidade”, afirma Fábio Amado, responsável por acompanhar a família de João Pedro, repassando atualizações da investigação.
“Não sei como retomar a vida”
Mãe do garoto, Rafaela Coutinho Matos, professora de 36 anos, revela sentir angústia quando vê que nem tudo tem sido feito para solucionar o crime. “Pela crueldade que foi, deveria ser algo solucionado com mais agilidade”, afirma, em entrevista à Ponte.
Rafaela conta que a Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, os procurou para prestar solidariedade e dizer que faria o possível para o caso ser solucionado.
Segundo ela, ver que um ministro do STF embasou uma decisão por conta da morte de João “é bem positivo”. “Não precisaria chegar a esse ponto, de ter que morrer um jovem para isso acontecer, mas acho que foi bem positivo causar esse impacto todo”, defende.
A repercussão ultrapassou o Brasil, chegando aos Estados Unidos, de onde o ator negro Terry Crews, astro da série Todo Mundo Odeia o Chris, enviou um vídeo para a família.
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Na mensagem, Crews presta apoio na luta por justiça e “para terminar a brutalidade policial nos Estados Unidos e no Brasil”. “Conforta o coração. Claro que nada vai reparar esse erro. Se fosse me perguntar, eu preferia, com certeza, que meu filho estivesse aqui comigo”, afirma.
A mulher diz que o processo de impeachment que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), sofre na Assembleia Legislativa significa um “momento de ele colher o que tem plantado”.
Questionada se pretende integrar algum movimento de luta contra a violência de Estado, como as Mães de Maio ou as Mães de Manguinhos, disse que ainda não teve tempo para pensar pelo fato de a morte de João Pedro ainda ser muito recente.
“Para ser sincera, eu nem sei mais como eu vou prosseguir. Vou ter que reaprender a viver. Até quando eu estava com o João eu sabia como seria. Agora, eu já não sei como retomar a vida”, desabafa.