Punida com aposentadoria, juíza colaborou na defesa de PMs que mataram menino negro de 10 anos

Órgão Especial do TJSP decidiu, por maioria de votos, punir Débora Faitarone com aposentadoria compulsória por negligência, delegar seu trabalho para assistentes e agir com parcialidade ao escolher processos e no tratamento com servidores

Débora Faitarone é conhecida por ter proferido decisões que absolveram policiais militares em crimes dolosos contra a vida | Foto: Reprodução/Facebook

A juíza Débora Faitarone, da 1ª Vara do Júri do Foro Central Criminal da Barra Funda, revisou e orientou modificações em uma petição de um defensor público responsável por representar PMs acusados de matar com um tiro na cabeça Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, 10 anos, depois de rejeitar a denúncia do Ministério Público. A Promotoria recorreu da decisão, momento em que o defensor apresentou as contrarrazões para que o recurso não fosse aceito – foi esse texto que ela reavaliou. Os policiais, porém, vão responder pela morte do menino, que aconteceu em 2016, já que os desembargadores aceitaram a acusação.

Essa é uma das acusações que recaíram sobre Faitarone e que fizeram o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) determinar como punição, por maioria de votos, a aposentadoria compulsória da juíza com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, que é a punição máxima em procedimento administrativo disciplinar (PAD). 16 desembargadores seguiram o voto do relator designado e corregedor-geral Fernando Torres Garcia. Cinco votaram pela remoção compulsória (deslocamento para outra comarca) e dois pela disponibilidade (afastamento da função). O julgamento começou em fevereiro e foi concluído em 9 de março. A notícia foi divulgada pelo site Conjur na quarta-feira (16/3).

“A magistrada, desde 2015, não adota comportamento em consonância com a valorização do ofício judicial sob sua responsabilidade, e não cumpre determinações provenientes de seu órgão disciplinador. Isso não seria manifesta negligência do cumprimento de seus deveres? Não seria incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário? E o que dizer das condutas autoritárias com relação aos colegas? O que dizer das qualificações de ‘imbecis’ e ‘baratas’ dirigidas a juízes e defensores?”, questionou Torres Garcia durante a leitura do voto. “A eventual continuidade da magistrada no exercício da relevante atividade, ainda que em outra unidade judiciária, não será bem recebida pela sociedade sempre atenta a desvios de comportamento dessa ordem, ferindo de morte a credibilidade e respeitabilidade da magistratura”.

A Ponte foi o primeiro veículo a revelar, em 2020, o afastamento da magistrada. Ela foi acusada de resistência às ordens da Corregedoria Geral da Justiça para implementação de melhorias aos serviços cartorários; desídia funcional (negligência, como não fazer júris, adiá-los); descumprimento do dever de urbanidade (magistrado deve tratar com respeito e cordialidade seus pares e a quem o procurar); descumprimento de orientação da Corregedoria Geral da Justiça de observância do critério de divisão de processos entre os juízes da vara, segundo o algarismo final do número do processo (segundo servidores, ela pedia para trocar processos); e introdução de modificações em contrarrazões de apelação elaboradas por Defensor Público, com tratamento diferenciado concedido ao Defensor Público – este último o caso do menino Ítalo.

Nesse caso, houve uma auditoria do sistema SAJ, que é onde são criados os processos digitais, e foi verificada a troca de peça que havia sido colocada com indicação de modificações para a petição corrigida. A auditoria teve acesso a uma troca de e-mails, de fevereiro de 2019, entre o defensor público Jamal Chokr e Faitarone, no qual ele escreveu: “Débora por favor leia e pode fazer as correções ou apontamentos que quiser. Amanhã estarei no fórum. Bjs.”. A petição foi encaminhada para ela e para o promotor Walfredo Cunha Campos, com quem mantinha relacionamento amoroso, e depois foi devolvido com correções a Chokr.

Ela passou a ser investigada no final de 2018 e início de 2019 após a Corregedoria Geral de Justiça fazer inspeções e implementar ações para melhorar o fluxo de trabalho e produtividade da Vara. No mesmo período, servidores que trabalhavam com ela também fizeram denúncias sobre a magistrada delegar tarefas suas a eles, agir de forma parcial com relação a julgamento de casos envolvendo policiais militares, assédio moral e tratamento diferenciado a servidores que a contrariassem.

A Ponte teve acesso aos depoimentos desses funcionários dados à Corregedoria em 2019 sobre delegação de trabalho e a atuação da magistrada em relação a processos que envolviam policiais, segundo eles.

J é a juíza corregedora e D é depoente. Trecho em que servidora comenta sobre a Defensoria ter interposto recurso cuja petição foi revisada pela magistrada | Imagem: Reprodução

Na sustentação oral no julgamento, em 16 de fevereiro (que pode ser assistido na íntegra aqui a partir de 15min47s), o advogado Felipe Locke Cavalcante, que representa Faitarone, negou as acusações e alegou que caberia apenas uma punição de censura ou advertência por conta de um dos áudios de uma conversa com o escrivão ter chamado uma das juízas da corregedoria de “vaca”, em tom de “desabafo”, após uma reunião com a Corregedoria sobre as mudanças de trabalho. O defensor ainda disse que em apenas cinco júris ela havia feito a troca de forma injustificada com outros juízes, mas que teriam sido “mais simples” para eles, e que não deixava de comparecer ao Fórum nem saía mais cedo do expediente.

Também alegou, sobre a troca de e-mails, que seria apenas uma consulta, como ela já havia feito com membros do Ministério Público, e não uma orientação para a defesa. “O que ela traz na peça é uma informação legal”, disse. E que o escrivão vasculhou o e-mail da juíza, ao qual teria acesso, indevidamente e o entregou à Corregedoria”. “O depoimento da principal testemunha contra a doutora Débora é um depoimento altamente faccioso que não pode ser levado em conta”, defendeu Cavalcante.

Em uma das sessões, a magistrada argumenta que está sendo perseguida e diz que os desembargadores do Órgão Especial, ao votarem pelo seu afastamento em 2020, “não leram o processo ou não souberam interpretar”, o que foi rechaçado pelos desembargadores durante o julgamento quando liam os votos, e que as denúncias eram baseadas em “ilações sem provas”. “Se eu tivesse absolvido o Fernandinho Beiramar, eu não estaria aqui respondendo as perguntas do senhor. Mas como absolvi policiais que agiram legitimamente dentro da lei, o faria mais mil vezes, eu os absolveria novamente mais mil vezes, mesmo sabendo que eu perderia o cargo por causa disso e temporariamente perdi, os absolveria mais mil vezes mesmo sabendo que passaria por todo esse calvário”, disse Faitarone em uma audiência.

A Ponte não conseguiu contato com os advogados.

A juíza chegou a entrar com procedimentos de controle administrativo (PCA) no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para barrar o prosseguimento do PAD, sendo que cinco deles foram arquivados. Segundo a assessoria do órgão, “os dois processos em tramitação no CNJ contra a magistrada estão sobestados (suspensos) aguardando que o Tribunal de Justiça de São Paulo encaminhe à Corregedoria Nacional de Justiça o resultado do julgamento”.

O histórico da magistrada

No Facebook, a juíza Débora Faitarone tinha como foto de capa a bandeira do Brasil. Nas eleições de 2018, manifestou apoio a Jair Bolsonaro, quando utilizou sobre sua foto de perfil a tarja com o slogan que o elegeu: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Brasil acima de tudo, Deus acima de todos: apoio aberto à candidatura de Jair Bolsonaro em 2018

Na mesma época, esteve em um evento no quartel da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, e posou ao lado do falecido senador Major Olímpio (PSL-SP) fazendo “arminha” com a mão.

Em novembro de 2017, a juíza inocentou cinco PMs que respondiam pelos assassinatos dos pichadores Alex Dalla Vechia Costa, 32 anos, e Ailton dos Santos, 33, em 2014, alegando legítima defesa.

Também foi uma tese de legítima defesa o que Débora usou para rejeitar a denúncia do Ministério Público contra os cinco policiais que mataram o menino Ítalo, no Morumbi, bairro rico de São Paulo, em setembro de 2018. Na ocasião, ela elogiou o trabalho do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e criticou defensores dos direitos humanos por “não preservar o direito dos policiais”. Segundo ela, esses grupos “acompanham todos os processos de crimes dolosos contra a vida quando os réus são policiais militares, mas não o fazem quando eles são vítimas.”

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Em maio de 2019 mais uma vez o script se repetiu e a juíza alegou legítima defesa para livrar os policiais Jorge Inocêncio Brunetto e Sidney João do Nascimento do júri popular pela morte de Frank Ligiere Sons, em 2010, apontado pela polícia como integrante do PCC.

O que diz a Defensoria

A reportagem procurou o órgão sobre o caso da petição, cuja assessoria encaminhou a seguinte nota:

Apurações sobre condutas funcionais de membros da Defensoria Pública de SP são de competência de sua Corregedoria-Geral, a quem cabe analisar representações feitas. Nos termos da legislação, eventuais procedimentos, quando abertos, tramitam sob sigilo. Sobre o caso trazido pela reportagem, não há informações a respeito registradas até o momento.

*Reportagem atualizada às 16h46, de 18/3/2022, para incluir resposta da Defensoria.

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