Quando a PM do RJ ‘confunde’ objetos com armas nas mãos de suas vítimas e atira para matar

    As desculpas dos militares para tentar justificar mortes passam por pedaço de madeira, guarda-chuva, furadeira e até saco de pipoca

    Dierson Ges da Silva, 50 anos foi morto no início de janeiro após um PM “confundir” um pedação de madeira com um fuzil. Foto: Arquivo Pessoal

    Entender que um pedaço de madeira às costas, sustentado por uma cordinha, seria um fuzil. Foi essa a desculpa dada por policiais militares do 18º BPM (Jacarepaguá), no Rio de Janeiro, para atirar e matar o catador de materiais recicláveis negro Dierson Ges da Silva, 50 anos, na última quinta-feira (05/01), na Cidade de Deus, zona oeste da capital fluminense.

    Os PMs, cujos nomes são mantidos em sigilo pela Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro, sentiram-se ameaçados e confundiram a madeira com um fuzil. Dierson era portador de deficiência intelectual e estava no quintal de casa quando foi atingido. “Cheguei a ver muito sangue, até porque foi muito tiro”, relatou uma moradora ao portal de notícias G1.

    Segundo a pasta, o local foi periciado e o Comando do 18ºBPM está em contato permanente com o titular da Delegacia de Homicídios da Capital, a Corregedoria Geral da Corporação também acompanha o caso. Os PMs envolvidos foram afastados do cargo que desempenhavam.

    A repetição de situações como a do catador Dierson marca negativamente o histórico de ações desastrosamente letais da polícia do estado do Rio de Janeiro. Os objetos que justificaram os “enganos” ao longo dos últimos anos vão de uma furadeira até um guarda-chuva. Em alguns casos, policiais mataram civis ao fuzilar carros onde supostamente estavam suspeitos de cometerem crimes.

    Guarda-chuva vira fuzil

    A noite chuvosa de 17 de setembro de 2018 foi fatal para o garçom Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, 26 anos. O jovem negro foi morto por policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na favela Chapéu Mangueira, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, quando foi buscar um celular, chaves, um guarda-chuva e um “canguru” (espécie de suporte para carregar crianças) em casa. Detalhe: o carregador de crianças foi visto pelos PMs que o mataram como com um colete a provas de balas e o guarda-chuva preto, segundo a visão dos militares, seria um fuzil.

    Pai de duas crianças, de quatro anos e 10 meses, Rodrigo foi morto com três tiros. O trabalhador era vigia em um bar em Ipanema, zona sul do Rio.

    À época do crime, em entrevista à Ponte, um morador do Chapéu Mangueira disse que chovia e a esposa e os filhos de Rodrigo não estavam em casa, por isso, ele desceu a ladeira do morro para esperá-los. Segundo o morador, não havia operação policial no morro naquele momento. “A polícia desceu correndo, achou que ele estava com colete e com fuzil, e atirou. A PM não só atirou, como matou o homem”, revelou o morador. “Não estava tendo operação naquela hora. Não teve troca de tiros”.

    Na época, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou à Ponte que “os agentes foram alertados por populares que havia criminosos na localidade do bar do David. Chegando ao local, houve troca de tiros e um breve confronto”.

    Procurada pela reportagem, a Polícia Militar não respondeu aos questionamentos enviados sobre quem eram os policiais envolvidos e nem se eles ainda estão trabalhando na corporação. O MPRJ também não informou se há alguma denúncia contra os PM’s envolvidos no caso.

     Macaco hidráulico

    Os mototaxistas Thiago Guimarães Dingo, 24 anos, e Jorge Lucas Martins Paes, 17, estavam a caminho de uma oficina mecânica quando foram assassinados pelo sargento da PM Carlos Fernando Dias Chaves, então do 41º BPM (Irajá), na Pavuna, zona norte do Rio de Janeiro. O crime ocorreu em 29 de outubro de 2015. 

    Nesse crime, o policial disse ter “confundido” um macaco hidráulico com uma submetralhadora e atirou nos jovens. Foram vários os alertas dos demais PMs que patrulhavam o local e sabiam que os jovens que estavam em uma moto não portavam uma arma, conforme divulgado pelo jornal Extra, à época: “disseram para o Carlos Fernando não atirar, eles gritaram para não atirar, dizendo ‘ninguém atira, não atira, não é arma’”. Em seguida, o PM disse: “O Carlos Fernando mirou e atirou e ninguém entendeu nada”.

    Thiago e Jorge pretendiam devolver a ferramenta emprestada para ajudar um conhecido a consertar uma Kombi quebrada. Naquela tarde Thiago trabalhava e, mais tarde, pretendia comprar, junto a namorada, o enxoval de sua primeira filha

    Em seu depoimento, o sargento Carlos Fernando tentou acusar os jovens de fazerem “disque-drogas” (fazer entrega de drogas a domicílio) e que só atirou porque pensou que sua equipe estava “em iminente perigo”.

    Carlos Fernando se tornou réu na Justiça em 2016 pelo duplo homicídio. O policial continua trabalhando na PM do Rio de Janeiro. De acordo com reportagem do portal UOL, Carlos Fernando ostenta o segundo maior número de registros de assassinatos decorrentes da atividade policial, estando envolvido em 28 mortes, isso apenas entre os anos de 2010 e 2015.

    A PMERJ não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem sobre a situação atual do PM Carlos Fernando. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) informou que não houve agendamento de júri popular, e que o andamento do processo na primeira instância aguarda o julgamento do recurso interposto pelo PM.

    Saco de pipoca X Saco de drogas

    Em 30 de junho de 2016, o adolescente negro Jhonata Dalber Matos Alves, 16 anos, foi morto durante uma ação da Polícia Militar, no Morro do Borel, localizado na zona norte do Rio. De acordo com familiares, o jovem tinha ido à casa do tio, com dois amigos, para buscar pipoca para uma festa junina e esse saco de pipocas foi confundido com drogas pelos policiais.

    O soldado Douglas Ferreira Zaia foi responsabilizado pelo crime em junho de 2018, em ação do Ministério Público Estadual. Reportagem do Extra aponta que Jhonata foi executado com um tiro na cabeça. Em depoimento no dia do crime, o soldado Zaia, afirmou, que Jhonata teria apontado uma arma para ele, nenhuma arma foi apreendida com a vítima. Ao ser atingido pelo militar, o rapaz estava de costas. De acordo com o portal de notícias, em 2019 a Justiça determinou a suspensão do exercício da função policial e a autorização para portar arma de fogo da PM.

    A Polícia Militar não respondeu aos questionamentos enviados sobre a situação atual do soldado Zaia na corporação. Segundo o TJRJ, o processo no qual o militar é réu encontra-se na fase de alegações finais e tramita na 1ª vara criminal.

    Vassoura vira fuzil

    O vigia de posto de saúde Fábio Tavares da Silva, 42 anos, foi executado durante uma operação da PM na favela da Guacha, localizada na cidade de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, em 22 de março de 2022. Fábio estava com uma vassoura nas mãos quando, ao abrir o portão da unidade de saúde em que trabalhava, foi morto por policiais que disseram ter confundido o objeto de limpeza com um fuzil, segundo relatos de familiares de Fábio ao portal UOL.

    Os nomes dos policiais que mataram Fábio não foram revelados. De acordo com a versão da PM, “na ação, dois suspeitos foram feridos em confronto na comunidade, que fica no bairro Redentor, e que com eles foram apreendidos duas pistolas e um rádio comunicador”.

    Procurada pela reportagem, a Polícia Militar não respondeu aos questionamentos enviados sobre quem eram os policiais envolvidos e nem se eles ainda estão trabalhando na corporação. O MPRJ também não informou se há alguma denúncia contra os PM’s envolvidos no caso.

     Estouro de pneu X Tiro

    O adolescente Rafael Costa, 17 anos, dirigia o carro da mãe quando um dos pneus do veículo Fiat Idea furou em um ponto da estrada do Porto Velho, no bairro de Cordovil, na zona norte do Rio de Janeiro. O barulho do estouro do pneu foi o motivo encontrado pelo policial Márcio Perez de Oliveira para disparar contra o jovem. Era por volta das 19h de 28 de outubro de 2012. Ao todo foram quatro tiros contra o veículo. Um deles pegou no pescoço do adolescente, que morreu na hora.

    O terceiro sargento Márcio achou que o som do pneu estourando era, na verdade, o de tiros. Outros sete policiais estavam com Márcio naquela noite. Todos faziam patrulhamento de rotina na região e eram do 16º BPM (Olaria). Além de Rafael, outros quatro jovens estavam no carro, um deles foi ferido de raspão. Em novembro de 2012, o terceiro sargento Márcio foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público Estadual, que também pediu a prisão preventiva do PM. 

    Em 2015 a juíza Elizabeth Machado Louro, da 4ª Vara Criminal da capital, decidiu que o sargento Márcio Perez de Oliveira iria a júri popular. A reportagem tentou contato com a PM, com o MPRJ e com TJRJ para saber se o júri popular ocorreu e se o PM foi condenado, mas não houveram respostas até a divulgação. 

    Furadeira e duas vítimas

    O supervisor de supermercado Hélio Barreira Ribeiro, 47 anos, estava no terraço de casa, no Morro do Andaraí, na zona norte, no Rio de Janeiro, pregando uma lona com uma furadeira quando foi morto por um policial militar do Bope (Batalhão de Operações Especiais). O PM Leonardo Albarello disse que confundiu a furadeira com uma submetralhadora e que essa confusão fez com que atirasse no trabalhador. O assassinato foi em 19 de maio de 2010 e o policial foi absolvido, após pedido do próprio MPRJ dois anos depois do crime.

    Na decisão, o juiz da 3ª Vara Criminal da capital fluminense, Murilo Kieling Pereira, disse que “a distância, a influência dos raios solares e a presença de vasos do tipo xaxim pendurados no terraço não permitiam que o acusado tivesse certeza na identificação do objeto que Hélio segurava”.

    Em 2 de abril de 2019, o DJ João Victor Dias Braga, 22 anos, foi morto durante uma operação militar na comunidade Santa Maria, na Taquara, zona oeste do Rio. Segundo relatos da família do jovem negro ao portal G1, os PMs também confundiram uma furadeira com um fuzil, o que teria provocado os disparos contra João Victor. Naquele dia, ele havia saído para realizar um serviço na barbearia de um amigo.

    “Foi por volta de meio-dia que ele foi fazer um serviço na barbearia. Quando ele desceu, estava com uma furadeira na mão e a polícia já estava dando tiro. Era polícia com bandido. Estava dando tiro. Aí deu um tiro nele. Um tiro no pescoço e o outro no tórax”, contou a mãe do rapaz, Carla Dias Braga ao site de notícias.

    Carla também pontuou que moradores da comunidade contaram que João Vitor foi colocado dentro de um camburão junto com outros dois homens. Todos haviam chegado mortos no Hospital Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca. 

    257 tiros em carro

    A morte do músico Evaldo Rosa dos Santos, homem negro de 51 anos, chocou o país, isso porque o carro onde estava o artista e a família foi fuzilado com 257 tiros por militares do Exército, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio. Dos tiros, 62 atingiram o veículo. Era tarde de domingo, 7 de abril de 2019, quando a família se dirigia a um chá de bebê. Além de Evaldo, os tiros dos militares também acertaram o catador de recicláveis Luciano Macedo, 27 anos. Ele tentava ajudar a família de Evaldo quando foi baleado.  

    Pelas mortes de Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, oito militares do Exército foram condenados em outubro de 2021. O tenente Italo da Silva Nunes, que comandava a operação, foi condenado a 31 anos e seis meses de reclusão em regime fechado, por duplo homicídio e a tentativa de homicídio de Sérgio Gonçalves de Araújo (sogro de Evaldo), na mesma ação. 

    Além da exclusão das Forças Armadas, outros sete militares, que realizaram disparos, foram condenados a 28 anos de reclusão em regime fechado. Todos permanecem em liberdade, até o julgamento dos recursos. Outros quatro militares que estavam na ação foram absolvidos.

    Chacina de Costa Barros

    Os jovens negros Wilton Esteves Domingos Júnior, 20 anos, Carlos Eduardo Silva de Souza, 16, Wesley Castro Rodrigues, 25, Roberto Silva de Souza, 16, e Cleiton Corrêa de Souza, 18, foram executados, em 28 de novembro de 2915, quando foram confundidos por PMs que tentavam montar uma emboscada contra suspeitos de roubar a carga de um caminhão. Os jovens iam comemorar o primeiro emprego de Roberto em uma lanchonete. O crime ficou nacionalmente conhecido como chacina de Costa Barros.

    Os PMs envolvidos nas mortes dos cinco rapazes afirmaram que checavam uma denúncia de roubo de carga, na Avenida José Arantes de Melo, em Costa Barros, na zona norte do Rio. Segundo os policiais, um dos jovens havia atirado contra eles e, no revide, os militares deram 111 tiros contra o carro dos rapazes.

    Três dos quatro PMs envolvidos nas cinco mortes foram condenados pela chacina. Os ex-soldados Thiago Resende Viana Barbosa, Antônio Carlos Gonçalves Filho e o sargento Marcio Darcy Alves dos Santos foram expulsos da PM e condenados a 52 anos e seis meses de prisão. Antônio Carlos também foi condenado a 8 meses e 5 dias a mais pelo crime de fraude processual.

    Lotados à época no 41º BPM (Costa Barros), os PMs também modificaram a cena do crime. Eles mostraram um revólver quebrado à Polícia Civil, apontando que um dos jovens havia atirado contra eles. Um quarto policial, o cabo Fábio Pizza Oliveira, foi absolvido pelo júri popular. Ele está solto e segue na corporação. Em outubro de 2021, a 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que ele fosse julgado novamente. A reportagem procurou a PMERJ para saber se esse júri aconteceu, ou se tem data marcada, mas não obteve respostas até o fechamento da matéria.

    Pedestal X Fuzil

    Em setembro de 2019, um vídeo no qual um policial critica um morador negro da Vila Vintém, zona oeste do Rio de Janeiro, por transportar um pedestal de microfone, alegando que o objeto parece um fuzil, circulou fortemente nas redes sociais.

    As cenas, gravadas pelo próprio PM, mostram um homem carregando o objeto na garupa de uma moto, enquanto outro dirige a moto. De dentro da viatura, o policial questiona o objeto segurado pelo homem da garupa. “Depois nego diz que morre à toa? Olha só o que parece que ele está na mão. Na Vila Vintém, saindo de favela. O que parece que ele está na mão?”, indaga o militar. 

    Logo que os moradores na moto são abordados, o PM diz: “Depois ele morre e a culpa é de quem? Do polícia!”. O homem que carregava o objeto explica que é um pedestal de microfone. “Pode filmar aí”, diz. “Você é louco, cara!”, rebate o PM. “Isso não existe. Você não pode sair com isso à noite. Você saindo de favela, da comunidade, eu te abordei. Porra, quase que você ia tomar? Vocês dois aí!”, critica o policial.

    “Argumento é a justificativa para o cometimento de crimes”

    O uso recorrente da justificativa de que determinado objeto foi confundido com arma de fogo tem como motivação principal a prática do crime de assassinato, aponta João Tancredo, advogado que atua desde 1988 com famílias vítimas da violência policial no Rio de Janeiro.

    “Esse argumento é a justificativa para o cometimento de crimes. Crimes cometidos contra pobres não são investigados; crimes cometidos por pobres são apurados de forma célere e eficaz”, diz.

    Segundo João Tancredo, falhas de policiais que dizem ter confundido objetos com armas não ocorrem em locais onde os moradores têm maior poder aquisitivo. “Se analisarmos os locais onde se dão as confusões, perceberemos que é em razão da falta de respeito aos moradores daquela localidade. Nenhum policial confunde uma bengala de um morador de uma área de moradores ricos com uma arma”.

    Além disso, o advogado acredita que é preciso acabar com a política de extermínio da população negra e pobre. “O importante não é punir os policiais, mas as políticas de extermínio da população pobre [favelas e periferias], com a responsabilização dos mandantes e governantes”, conclui.

    O que diz a PM 

    A reportagem questionou a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) sobre a situação de todos os militares envolvidos nos casos citados, além disso foi perguntado se é procedimento da PMERJ atirar antes de abordar a pessoa. Em resposta a corporação disse que o órgão está em esquema de plantão e que a prioridade são as ocorrências factuais. 

    Segundo a assessoria de imprensa da PMERJ, para responder às questões solicitadas é preciso que o setor de comunicação questione a Corregedoria, os comandantes dos policiais envolvidos nos casos citados e o secretário de polícia. Por fim, o órgão se comprometeu a responder as indagações durante a semana. A Ponte segue aberta para receber as respostas. 

    O Ministério Público do Rio não se manifestou sobre os casos relatados nesta reportagem.

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