Quatro anos depois, caso da morte de ativista baiano está parado no Ministério Público

Conhecido por denunciar violência policial em Tucano (BA), Pedro Henrique foi morto em 2018. Polícia Civil apontou dois PMs como os assassinos ainda em 2019, mas MP até hoje não denunciou suspeitos nem pediu arquivamento

Professora Ana Maria Cruz com o filho Pedro Henrique Sousa, morto em 27/12/2018, na cidade de Tucano (BA) | Foto: Arquivo pessoal

Angústia, incerteza e descaso passaram a fazer parte da vida da professora e escrivã Ana Maria Cruz, 56 anos, ao longo dos últimos quatro anos. “Eu tenho certeza que se fosse o Pedro que tivesse atirado nos policiais a situação seria outra, ele nem estaria preso, ele e toda a família já estariam debaixo da terra”, lamenta. Em 27 de dezembro de 2018, seu filho, o ativista Pedro Henrique Santos Cruz Sousa, foi assassinado a tiros dentro de casa, aos 31 anos, na cidade baiana de Tucano.

Ainda em 2019, a Polícia Civil concluiu o inquérito sobre a morte de Pedro e apontou dois policiais militares como os autores do crime: Bruno de Cerqueira Montino e Sidiney Santana Costa. Mesmo assim, o caso está parado. Em vez de denunciar os suspeitos ou pedir o arquivamento do inquérito, o Ministério Público da Bahia (MPBA) tem solicitado aos policiais civis diligências complementares, ou seja, novas investigações. “Parece que para eles não dão importância, é um desgaste muito grande”, desabafou Ana à reportagem.

O inquérito que apura o assassinato de Pedro foi digitalizado no final de 2021. De lá para cá, foram poucas as movimentações, além de pouco detalhamento sobre algumas dessas diligências. Determinadas ainda em agosto do ano passado, essas diligências envolviam a apuração do envolvimento de um terceiro PM, que foi reconhecido presencialmente pela namorada de Pedro, única testemunha do crime. A pedido do MP, a Justiça, que já tinha determinado a quebra do sigilo dos celulares de Sidiney, estendeu a medida aos números de Bruno e desse terceiro soldado. Contudo, nenhum relatório sobre o resultado dessas interceptações foi incluída no inquérito até agora.

Também não consta laudo balístico para verificar se os vestígios de projéteis retirados do corpo da vítima são compatíveis com as armas dos PMs (de propriedade do Estado ou particulares) e nem se houve perícia nessas armas. Há apenas um laudo descritivo dos projéteis, sem imagens, informando que se tratam de calibre .38 “ou similar”, como diz o texto, além de um ofício da PM sobre a relação de armas que os policiais suspeitos tinham e utilizavam.

Nos autos existe, ainda, um laudo da necropsia de um homem que nada tem a ver com a investigação do caso, mas foi anexado em meio à papelada.

Além disso, o Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública do Ministério Público baiano, que passou a investigar tardiamente três denúncias de violência policial que Pedro fez em vida, pediu o arquivamento por considerar que os crimes de constrangimento ilegal e ameaça já tinham prescritos e que faltavam elementos que comprovassem as agressões que teriam sido cometidas pelos PMs Sidiney Santana e Bruno Montino, já que a única prova era a palavra da vítima. O tribunal acolheu a solicitação e arquivou o caso em janeiro deste ano.

Na época, entre 2017 e 2018, o ativista denunciou ao MPBA que havia sofrido agressões e ameaças dos soldados Bruno e Sidiney em uma abordagem. A dupla de policiais confirmou que abordou Pedro em duas situações em 2018, por ele ser usuário de maconha, mas disse que não houve abuso nem agressão.

Em 2019, a Ponte teve acesso a uma série de termos de declaração feitos no Ministério Público e assinados por Pedro entre 2014 e 2018, quatro dos quais relatavam abusos policiais. Em setembro de 2014, por exemplo, Pedro informou que havia sido abordado de forma violenta e relembrou que, em abril daquele ano, um homem de nome Aderbal, que havia presenciado a agressão contra Pedro em 2012, havia sido morto. Na ocasião, o ativista assinalou que acreditava que a motivação foi “preconceito do então tenente hoje capitão Alex Andrade de Souza, que comandava a operação, por ele ser usuário de maconha e adepto da cultura ‘Rastafari’.”

Na ocasião, Pedro informou também à promotoria as tentativas do tenente de desqualificar a “Caminhada pela Paz”, criada pelo ativista, ao dizer, sem nenhuma prova, que havia envolvimento com tráfico de drogas e que o evento era financiado por facções criminosas. Alex Andrade chegou a ser apontado como um dos suspeitos pelo assassinato do ativista, mas não foi reconhecido pela testemunha que presenciou a ação dos atiradores.

PMs perdem pedidos de indenização

A mãe de Pedro se tornou alvo de ao menos cinco ações judiciais movidas por policiais, como a Ponte revelou, que vão de pedidos de indenização por dano moral a acusações por injúria e difamação por publicações que ela fez em redes sociais criticando a polícia. Pelo menos nisso Ana Maria tem um motivo para celebrar: a maioria foi arquivada.

A sentença mais recente é de agosto de 2022, quando o soldado Bruno Montino pediu R$ 35 mil em danos morais à professora por ela ter compartilhado links de reportagens sobre o caso de Pedro, incluindo um editoral da Ponte, publicado na newsletter em 28 de janeiro de 2019, que tratava do assassinato do jovem. Bruno alegava que estava sendo falsamente acusado pelo crime.

A juíza Raíssa de Cássia Sandes Moreira, do Juizado Especial Cível, entendeu que Bruno não foi diretamente acusado ou lesado em nenhuma das postagens e que as críticas são voltadas à corporação, com base em relato testemunhal em delegacia. “Note-se que o arcabouço probatório colacionado junto à exordial [petição feita pelo advogado de Bruno] não representa, sequer minimamente, ofensas dirigidas ao autor, mas tão somente desabafos, ainda que por vezes destemperados, direcionados a Polícia Militar no geral, não especificando, em momento algum, um indivíduo que compõe o quadro da PM”, argumentou. Esse processo ainda está tramitando e a reportagem não localizou recurso por parte da defesa na segunda instância.

Uma ação movida por Sidiney foi extinta pelo juiz Matheus Martins Moitinho, que considerou que o processo não poderia correr na cidade de Euclides da Cunha, já que nem o policial ou a professora moram na cidade. Outra foi uma interpelação judicial, ou seja, um pedido de explicação pelas postagens da professora, movida pelo capitão Duarte Gomes da Silveira, comandante da mesma Companhia (agrupamento de policiais militares, parte de um Batalhão) dos dois PMs suspeitos de matarem Pedro. Depois disso, o capitão entrou com uma queixa-crime que se transformou numa ação penal por difamação e injúria, aberta em agosto de 2019. Essa e outras duas ações, uma delas movida pelo capitão Alex Andrade de Souza, do mesmo batalhão, foram arquivadas porque os policiais não pagaram as custas processuais para o andamento do processo e nem pediram assistência jurídica gratuita dentro do prazo. A Ponte também não localizou recursos por parte da defesa.

Segundo Ana Maria, ainda existiria um outro processo em tramitação e que estaria em sigilo, mas não soube informar os detalhes. A reportagem não localizou nos sistemas de acesso eletrônico do Tribunal de Justiça nem no Diário da Justiça. Questionamos as assessorias do tribunal e da Defensoria Pública, que representa a mãe de Pedro, mas até a publicação não houve resposta.

Todos os policiais são representados pelo advogado Carlos Kleber Freitas de Oliveira, que, procurado pela reportagem, não quis se manifestar e disse que há processos em andamento, sem especificar quais. Também disse que não representa Sidiney e Bruno no inquérito criminal.

Para a professora, as ações judiciais foram coordenadas para tentar intimidá-la. “Eles tentaram me calar”, afirma. Ana Maria, que também é escrivã da Polícia Civil há 24 anos, afirma que é difícil continuar trabalhando em delegacia. “O trabalho de professora é mais leve, mas na delegacia eu fico mal, quando tem ocorrência com policial militar, eu não consigo fazer”, lamenta. Ela passou por uma depressão e precisou fazer uso de medicamentos e pretende se aposentar da profissão no ano que vem.

Ajude a Ponte!

Enquanto cobra por respostas, Ana também vai retomar a Caminhada da Paz, manifestação que era organizada anualmente por Pedro desde 2013 em Tucano, quando foi agredido em uma abordagem policial, e decidiu protestar contra a violência de Estado. “Desde a pandemia, a gente não fez mais, mas vamos fazer no ano que vem”, afirma.

O intuito é manter o legado do filho e continuar exigindo que as autoridades resolvam o caso. Um certo conforto que disse ter sentido foi ver Pedro e sua história se transformando em videogame, em um projeto de alunos do curso de jogos digitais do Instituto Federal da Bahia (IFBA) no campus da cidade de Lauro de Freitas. “Ainda não foi lançado, é um protótipo, mas é um alento porque, diante de tanta notícia ruim e sem novidade do caso, é bonito ver”, diz.

O que diz a Polícia Civil

A Ponte procurou a pasta sobre as diligências e a demora da conclusão do caso. A assessoria encaminhou a seguinte nota:

Após cumprir requisições do MP, o procedimento foi novamente encaminhado para a comarca de Tucano, em 23 de julho de 2022.

O que diz o Ministério Público

A assessoria do Ministério Público também foi questionada e enviou a seguinte nota:

O Ministério Público estadual tem procedimento investigatório próprio sobre o caso, que é sigiloso. Por isso, não é possível fornecer, no momento, informações sobre o andamento ou quanto ao pedido de cautelares. O inquérito policial foi concluído e remetido ao MP, que prossegue com as investigações próprias. 

O que diz a Polícia Militar

A reportagem não localizou possíveis defensores de Sidiney Santana e Bruno Montino no inquérito criminal. Questionada, a Polícia Militar da Bahia, subordinada ao então governador Adolfo Menezes (PSD), encaminhou a seguinte nota:

O processo foi arquivado pelo Ministério Público. Os policiais militares permanecem na corporação.

Reportagem atualizada às 17h07, de 27/12/2022, para incluir resposta do MPBA, às 9h58 e às 16h22, de 4/1/2023, para adicionar retorno da PMBA e da PCBA.

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