‘Quero sair de Itu’, diz familiar de vítima após eleição de líder do ‘Bonde do Moacir’

Vereador mais votado na cidade, o investigador da Polícia Civil Moacir Cova (Podemos) responde a oito inquéritos por denúncias de tortura e mortes

Moacir Cova ganhou uma cadeira na Câmara de Vereadores de Itu com 2.881 votos nas eleições de outubro| Foto: reprodução/Facebook/Moacir Cova

Há pelo menos quatro anos, o investigador da Polícia Civil Moacir Cova procurava entrar para a política. Ele já havia tentado, sem sucesso, uma vaga na Câmara Municipal, em 2020, e na Assembleia Legislativa, em 2022. Em outubro, mesmo respondendo a pelo menos oito inquéritos abertos este ano — por denúncias que incluem tortura e mortes —, Cova foi eleito o vereador mais votado da cidade de Itu, no interior paulista.

“Se ele já mandava na cidade estando na Polícia Civil, o poder dele vai aumentar”, lamentou à Ponte um familiar de uma das vítimas do líder do temido Bonde do Moacir, grupo de policiais civis que são investigados por denúncias de execução, agressões e tortura.

Moacir concorreu pelo partido Podemos e recebeu 2.881 votos. Em uma transmissão ao vivo no Facebook, disse que esse número poderia ter sido bem maior se não tivesse feito uma campanha com poucos recursos que, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), saíram do próprio bolso (R$ 1.520 para impressão de cartões e santinhos). Na live de agradecimento pela votação, prometeu agir com transparência, ouvir críticas e ser cobrado pela população por suas ações.

Desde terça-feira (15/10), porém, o vereador Moacir não responde ao pedido de entrevista da reportagem da Ponte.

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Durante a pré-campanha, em julho, a Ponte tinha tentado entrevistá-lo, mas o investigador disse que só poderia dar esclarecimentos sob autorização da Delegacia Geral da Polícia Civil, que, por sua vez, também não respondeu sobre a solicitação. 22 dias depois, Moacir participou de um podcast em que disse que “as pessoas de bem” de Itu apoiam seu trabalho “contra o tráfico de drogas” e afirmou que seu afastamento das funções, decretado pelo delegado geral Artur Dian, em junho, foi “perseguição política”.

“Reuniram gente do CDHU [Conjunto Habitacional Vila Lucinda, conhecido pela sigla da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano], patrocinada por um certo prefeito e pela esquerda, levaram para São Paulo, levaram um monte de denúncias vazias, que já foram inclusive investigadas, foram até arquivadas, e jogaram na mesa da Corregedoria Geral. Fizeram pressão lá e nos afastaram com base num processo em Indaiatuba [no interior paulista]”, declarou.

Não é bem assim. Dos oito inquéritos abertos em 2024 e localizados pela Ponte, três estão em sigilo e não puderam ser verificados e apenas um foi arquivado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). Todos os outros ainda estão em andamento. Parte das denúncias foi encaminhada por um grupo de familiares de vítimas, acompanhado pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, à Corregedoria Geral da Polícia Civil, que tem sede em São Paulo. Há casos em apuração que partiram de outras vítimas sem vinculação.

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Sobre Indaiatuba, ele se refere à apuração em que ele e os investigadores Bruno Bolpete Ceccolini, o K9, e Fábio Consales Xavier de Freitas, também afastados das atividades, foram acusados de invadir uma residência e furtar três caixas contendo joias e bijuterias do neto da moradora de um condomínio da cidade, que é vizinha a Itu, em 2021.

O tribunal arquivou o caso ao acolher o entendimento do promotor Marcelo di Giácomo Araújo de que havia “fragilidade” das provas obtidas, uma vez que a moradora do prédio, a única testemunha a mencionar a invasão dos policiais, faleceu oito meses depois sem prestar depoimento em juízo. Já o neto dela, dono das joias, disse na Corregedoria da Polícia Civil que as teria levado com ele em uma viagem ao Chile, mas não chegou a ser ouvido no processo. Por fim, a ex-esposa do dono das joias declarou em audiência, no dia 25 de junho, que ele lhe teria dito que o crime não tinha ocorrido.

Em 2022, os agentes já tinham sido punidos administrativamente pela Corregedoria sobre esse caso por não terem informado a realização de diligências na cidade vizinha — os dois alegaram estar atrás de um endereço em que haveria a receptação de eletrônicos furtados. Moacir foi penalizado com repreensão e Ceccolini, com advertência. Os dois negaram terem entrado na casa da moradora e disseram que foram a outro endereço, mas o colega Fabio Consales confirmou a ida ao apartamento, afirmando que a mulher permitiu a entrada no local.

Em setembro deste ano, o delegado geral encerrou o afastamento dos três investigadores. Procurada, a Polícia Civil não informou o motivo da decisão.

‘Não acredito mais em punição’

No mesmo podcast, Moacir acusou um jornalista, que se candidatou a vereador e repercutiu as denúncias contra o investigador, de se aliar “à parte da criminalidade para pedir meu afastamento”. Em mensagens reveladas pela Ponte em junho, Moacir já havia afirmado, sem provas, que o grupo de denunciantes era “financiado pelo crime”.

“Não tem nada a ver com perseguição política”, rebate a familiar de uma das vítimas, que prefere não se identificar. “A gente tem medo e eu, sinceramente, quero sair dessa cidade porque foi tudo levado para a Corregedoria e eles continuam nas ruas. Eu não sei se acredito mais em punição”.

Mensagem enviada por Moacir em grupo de WhatsApp após manifestação de moradores de Itu (SP) na Corregedoria Geral da Polícia Civil, em junho | Imagem: Reprodução

Um dos casos ainda sob investigação é o das mortes de Rian Gustavo Alves de Campos e Antony Juan Nascimento Lisboa, baleados durante uma ação do “bonde”, em 16 de maio. Testemunhas ouvidas pela Ponte relataram que Rian não estava armado e que a arma encontrada com ele teria sido “plantada” pelos investigadores. Os policiais negam.

Envolvido com o tráfico local, Rian estaria sendo monitorado por Moacir, Ceccolini e Cirineu Yasuda Alves de Lima, que atuam na Delegacia de Polícia Central de Itu. Segundo o boletim de ocorrência, os policiais civis, sabendo que o jovem usava um espaço na mata próximo ao conjunto habitacional para fazer a contabilidade do dia, teriam se escondido lá e aguardado a sua chegada.

O documento afirma que Rian reagiu à ordem de parada e disparou duas vezes contra os policiais civis usando um revólver. A arma não foi encontrada no local pela perícia, mas apresentada pelos investigadores na delegacia. Além disso, a versão dos policiais no boletim não explica por que duas pessoas foram mortas se apenas uma supostamente estava armada.

Horas após a morte de Rian, Bruno Ceccolini fez uma postagem comemorando o desfecho da ação nos stories de seu perfil no Instagram, onde acumula mais de 13 mil seguidores. “A morte sorriu para mim e para o Moacir… Nós, sorrimos de volta. Revidamos com técnica, velocidade e precisão!!! 2 CPFs cancelados”, postou, marcando o parceiro.

Story publicado por Bruno Bolpete Ceccolini, o K9, após morte de Rian Gustavo Alves de Campos e Antony Juan Nascimento Lisboa | Imagem: Reprodução

A publicação já era a sexta postagem feita naquele dia por Bruno, que tem perfil verificado, usa foto de perfil com uniforme da Polícia Civil e cita o cargo e a instituição na descrição. Seu perfil é fechado, não permite que pessoas não identificadas possam ver o que é postado.

Foi nessa conta que Bruno fez um vídeo, logo após a morte de Rian e Antony, dizendo que “mãe de bandido deveria chorar”. O conteúdo foi repostado por Moacir no Facebook, com os dizeres “eles ou nós”.

‘Levei pancadas dos policiais’

No podcast, Moacir nega ser um justiceiro. “Quem nós alvejamos e morreu em decorrência da nossa intervenção, eu apresentei a ocorrência, mostrei minha cara, falei [se] foi eu, se foi o Bruno ou se foi outro que atirou. Justiceiro é quem mata e se esconde. [Nas] minhas ocorrências com morte todo mundo sabe quem atirou”, exaltou. “Faço polícia para tentar salvar e ter uma sociedade melhor. Eu não faço polícia para humilhar ninguém, para constranger ninguém, para matar, para prender inocente. O que eu busco é livrar a molecada do crime.”

Em suas redes sociais, no entanto, os três policiais costumam fazer piada e celebrar mortes ocorridas durante as ações. Há vídeos mostrando operações e apreensões, expondo pessoas detidas ou suspeitos — inclusive crianças e adolescente —, exibindo agressões e fazendo chacota com pessoas presas ou seus familiares.

Em portaria publicada em 2023, o Delegado-Geral da Polícia Civil, Artur Dian, proibiu a postagem de material relacionado à corporação em perfis pessoais dos policiais.

Entre os inquéritos investigados pela Corregedoria, está o de um homem de 33 anos acusado de tráfico de drogas em abril deste ano. A vítima, que vamos chamar de Heitor e afirma ser usuário de drogas, disse que teve a casa invadida e foi agredido por Moacir e Cirineu. “Levei pancadas no abdômen e na barriga dos policiais”, relatou em audiência de custódia.

À Corregedoria, Heitor disse ter sido obrigado a assinar o papel de depoimento na delegacia em que nega ter sofrido violência policial. Também relatou já ter sido ameaçado de prisão pelos agentes antes.

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De acordo com o homem, as duas porções de crack e 32 de cocaína, que juntas somavam 20,6 gramas, era para consumo pessoal, já que não conseguiu largar a dependência mesmo passando por duas internações. O laudo do exame de corpo de delito identificou escoriações no peitoral de Heitor.

Já os os policiais afirmaram que faziam campana no local quando viram um homem que investigavam entregar uma sacola de drogas para Heitor e que, ao anunciarem a abordagem, conseguiram prender apenas ele porque o outro homem fugiu. Os investigadores dizem que Heitor confessou informalmente integrar o tráfico de drogas.

Tortura com sacola plástica

Um dos casos arquivados a pedido do Ministério Público foi a denúncia de um adolescente de 17 anos que relatou ter sido agredido para confessar participação no tráfico de drogas, durante uma abordagem do “Bonde do Moacir” ocorrida em janeiro. A abertura da investigação sobre a conduta dos policiais foi determinada na audiência de custódia, pois o laudo de corpo de delito identificou hematomas no cotovelo direito, na coxa esquerda e escoriações nos punhos do menino.

Não há fotos dos ferimentos nos autos. Ele foi apreendido junto com outros três adultos que também denunciaram os investigadores Cirineu, Bruno e Moacir de agressão durante a abordagem. “Eles começaram me bater, algemaram pé e mão, chutaram e passaram fezes no meu rosto. Foi o Moacir. Tinha uns nove policiais: Cirineu, Carioca e o Bruno. Não tentei fugir”, disse o adolescente. Familiares dele confirmaram a versão à polícia.

Segundo os policiais, Cirineu e Bruno montaram campana próximo à quadra de futebol do bairro Portal do Eden para fazer um flagrante de tráfico de drogas. Moacir teria descido a pé para “surpreendê-los pela área verde” enquanto os outros dois aguardavam na viatura. Quando Moacir se aproximou para fazer a abordagem, houve correria. Ele fez sinal à dupla, os investigadores perceberam que um dos jovens, de 20 anos, foi baleado na perna por Moacir porque teria corrido em direção a Bruno “com algo nas mãos”.

O Bonde do Moacir: na sequência, Thiago Cunha, o Carioca; Cirineu Yasuda; Moacir Cova e Bruno Ceccolini em foto relacionada a uma ocorrência de tráfico de drogas | Foto: reprodução

Em seguida, os agentes teriam abordado os quatro jovens, “usado de força física moderada para contê-los e algemá-los, podendo ter causado escoriações ao serem derrubados ao solo e em virtude da luta corporal com os policiais”. E que houve pedido de apoio da Guarda Municipal. Foram apresentadas drogas e dinheiro.

O jovem baleado declarou que não tentou fugir e que, depois de atingido, “foi arrastado até o banheiro público existente no local, onde foi sufocado com uma sacola plástica por Moacir, enquanto Bruno o agredia com chutes nas costelas e pernas”. Laudo do Instituto Médico Legal (IML) identificou escoriações no rosto, antebraço esquerdo, pescoço e punho direito do adolescente. Também não há fotografias.

‘Estrito cumprimento do dever’

O promotor Luiz Carlos Ormeleze não solicitou perícia complementar para questionar se os ferimentos das vítimas eram compatíveis com a dinâmica relatada e concluiu, por conta própria, que as lesões não convergem com as versões dos jovens. “Dos elementos constantes dos autos, forçoso concluir que os policiais agiram dentro do estrito cumprimento do dever legal, em uma abordagem policial na qual
houve oposição dos ofendidos”, argumentou.

O membro do MP-SP ainda justificou que os jovens maiores de idade foram condenados a prestar dois anos de serviços à comunidade e multa de meio salário mínimo e não quiseram recorrer — embora a apuração de possíveis abusos no momento da abordagem corra de forma independente.

O juiz Hélio Villaça Furukawa, o mesmo que condenou os jovens, acatou o entendimento e arquivou a investigação sobre a denúncia das agressões dos policiais.

Escrivão que não é policial

No inquérito arquivado, é a primeira vez que Thiago Santos de Almeida Cunha, conhecido como Carioca, aparece como integrante do “bonde”. Ele declarou que se recordava “parcialmente” dessa ocorrência, sendo que apenas “ajudou a contar os entorpecentes, sem contato com os presos”. Disse que só acompanhou o jovem e o adolescente na audiência de custódia no dia seguinte e não agrediu ninguém.

Thiago não é policial e consta identificado como “terceirizado” ou “escrivão ad hoc” a serviço da delegacia de Itu — figura de um servidor nomeado para exercer de forma temporária a função de escrivão. Essa possibilidade é indicada no artigo 305 do Código de Processo Penal, que prevê: “Na falta ou no impedimento do escrivão, qualquer pessoa designada pela autoridade lavrará o auto, depois de prestado o compromisso legal”.

Em 2018, a Polícia Civil tinha informado ao deputado Jorge Xerife do Consumidor (Republicanos) que a delegacia de Itu tinha 27 funcionários cedidos da Prefeitura para a função de escrivão “ad hoc”.

A reportagem não localizou ato público que indicasse a nomeação de Thiago como escrivão “ad hoc”, cargo que ele ostenta inclusive em seu Instagram, além de aparecer em fotos com os demais investigadores nas operações.

Reprodução da página do perfil de Thiago Carioca no Instagram

Contudo, Carioca exerce desde julho de 2024 o cargo comissionado de “assessor de área” na Secretaria Municipal de Administração. Antes, esteve de abril de 2019 a março de 2024 como “assessor geral” na Prefeitura de Itu, segundo informações do Portal da Transparência. Um holerite obtido pela Ponte, referente ao mês de outubro de 2023, indicava como local de trabalho a delegacia central da cidade.

Reprodução trecho de holerite de Thiago Santos de Almeida Cunha, o Carioca

Fontes da Polícia Civil informaram à reportagem que pode acontecer, especialmente no interior, de a prefeitura da cidade ceder funcionários para exercer funções administrativas em delegacias por falta de efetivo, mas que isso é “muito mal fiscalizado”. Função administrativa não permite participar de abordagens e operações.

Thiago, na verdade, quer ser guarda municipal. Ele entrou com um processo contra a Prefeitura de Itu, no ano passado, por ter sido considerado “inapto” a prosseguir nos testes para a GCM por não ter a altura mínima de 1,68 metro exigida no edital. Ele tem 1,67 metro e ganhou em primeira instância a oportunidade de prosseguir nas etapas do concurso. A Procuradoria está recorrendo.

O que dizem as autoridades

Questionamos a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre as investigações que recaem contra os policiais civis, bem como a atuação de Thiago Cunha como escrivão “ad hoc” na delegacia de Itu. A Fator F, assessoria terceirizada da SSP, enviou a seguinte nota:

A Polícia Civil esclarece que os inquéritos policiais e os procedimentos disciplinares mencionados pela reportagem seguem em andamento pela corregedoria da instituição e tramitam sob sigilo, de acordo com a Lei Orgânica da Polícia Civil.

Procuramos a Prefeitura de Itu para falar sobre a situação funcional de Thiago Cunha, o Carioca, mas não houve resposta.

Não conseguimos localizar os demais policiais civis ou eventuais contatos de defesa. Moacir não respondeu ao pedido de entrevista da reportagem. O espaço segue aberto a eventuais esclarecimentos.

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