Igor Melo foi baleado por PM aposentado quando voltava para casa na garupa de um mototáxi segunda-feira (24/2). Justiça determinou relaxamento da custódia só na tarde de terça (25/2). “O corpo preto é sempre o alvo”, diz especialista

Internado em estado grave após ser baleado por um policial militar aposentado e, em razão disso, perder um rim, o jornalista Igor Melo de Carvalho, de 31 anos, era mantido no Hospital Getúlio Vargas, no subúrbio do Rio de Janeiro, nesta terça-feira (25/2) sem o acompanhamento de familiares, que esperavam do lado de fora.
Ao lado dele, era permitida somente a presença de dois policiais militares: a vítima da tentativa de homicídio estava sob custódia, como suspeito de um roubo que não cometeu.
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“Essas primeiras 24, 48 horas são essenciais para que ele consiga se recuperar, mas a gente não pode visitar, então ele está muito desesperado. O ideal seria ele acordar e ver um familiar, ter alguém ali dando um suporte, mas ele está acordando e vendo um policial militar. Então, ele tem acordado desesperado, falando ‘eu sou inocente, eu não fiz nada'”, diz Pâmela Carvalho, que é prima de Igor e tem recebido informações, junto dos outros familiares, dos profissionais de saúde que atuam no hospital.
PM aposentado ‘procurava por suspeitos’
Igor foi baleado na madrugada de segunda (24/2), quando voltava para casa na garupa de um mototáxi que pediu por um aplicativo, após fazer um “bico” de garçom em um bar. No caminho, o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor.
O agressor e a mulher foram embora sem prestar socorro e também sem acionar a Polícia Militar. Igor conseguiu enviar mensagem aos colegas do bar onde trabalha, que lhe prestaram os primeiros socorros.
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Josilene afirmou à Polícia Civil ter reconhecido Igor e o motociclista de aplicativo Thiago Marques Gonçalves, de 24 anos. O condutor sofreu escoriações leves ao cair com a moto e foi levado à Cadeia de Custódia de Benfica, onde passou por audiência de custódia e foi solto na tarde desta terça — na mesma ocasião, foi determinado o relaxamento da custódia de Igor, para ter agora os familiares ao lado.
‘Racismo do início ao fim’
Na versão de Carlos e da esposa, ela teria sofrido um assalto à mão armada por dois homens em uma motocicleta em uma rua do bairro da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, por volta das 23h do domingo (23/2). A mulher teria então pedido ajuda ao marido, quando saíram em busca dos suspeitos. Foi nessa altura em que encontraram Igor e Thiago. O PM alegou que, inicialmente, teria dado uma ordem de parada aos dois e só atirou em reação ao passageiro da moto, que teria sacado uma arma.
A suposta arma não foi encontrada com Igor ou Thiago. Também não foi achado com eles o telefone celular que a mulher disse ter tido roubado. Além disso, os funcionários e as imagens das câmeras de segurança do Batuq, bar onde Igor trabalhava naquela noite, desmentem a versão do PM e da esposa: o jornalista permaneceu em serviço o tempo todo e só deixou o local às 1h16 da segunda. Há ainda o registro da corrida de motocicleta solicitada por ele no aplicativo ao final do expediente.
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“Essa situação é racismo do início ao fim, na questão de atirar no meu primo sem sequer perguntar, no reconhecimento fotográfico que fizeram dele, que parece que deram uma foto do RG dele para essa senhora reconhecer. Então, é mais uma vez esse reconhecimento fazendo vítimas negras, é mais uma vez um homem negro saindo do trabalho e sendo confundido com um assaltante”, diz Pâmela.
“Meu primo está sendo tratado como um criminoso sob custódia. E toda a família, que também é negra como ele, está recebendo olhares atravessados. Então, o meu primo está sendo vítima de racismo e toda a família está sendo revitimizada com isso”, diz a prima de Igor, que é historiadora e educadora popular.
Jornalista trabalha em faculdade e faz ‘bicos’
Pâmela diz ainda que o primo sempre foi referência às pessoas mais próximas pela dedicação ao trabalho e à família — ele é pai de um menino de dois anos. Formado em jornalismo pela Unisuam, Igor cursa atualmente publicidade na Universidade Celso Lisboa, onde ainda trabalha como inspetor de segunda a sábado.
Ele também se divide entre os “bicos” de garçom aos finais de semana e as atividades como jornalista esportivo: Igor faz transmissões de futebol de dentro de estádios para uma rádio online, a Vitrine Esportiva, e conduz o Informe Botafogo, um canal sobre seu clube do coração — a equipe chegou, inclusive, a prestar solidariedade a ele nas redes sociais, assim como as empresas para as quais ele trabalha.
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Igor e Thiago também receberam manifestações de apoio de diversos movimentos sociais e autoridades, entre elas a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. “Queremos os nossos jovens negros vivos, em liberdade, não sendo alvos de injustiças e violências fatais”, escreveu em publicação nas redes sociais, na qual também anunciou ter oficiado o governo do Rio de Janeiro, sob gestão Claudio Castro (PL), para prestar esclarecimentos sobre o andamento do caso.
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SSP-RJ) sobre por qual razão Igor era mantido sob custódia e se, além do suposto roubo, era também investigada a tentativa de homicídio contra ele. Não houve retorno até esta publicação.
Genocídio da população negra
Especialistas ouvidos pela Ponte afirmam que o caso de Igor expressa, assim como vários outros, a dimensão racista da política de segurança pública do Rio de Janeiro e da ideia de “justiçamento”.
“Esse caso materializa mais uma vez que há um genocídio da população preta a partir da política de segurança pública do Rio. E essa ideia de ‘justiçamento’ parte desse processo histórico que a sociedade branca e colonizadora construiu: com relação aos corpos pretos, eu posso fazer qualquer tipo de ‘justiçamento'”, explica Fransérgio Goulart, coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR).
“O corpo que pode sofrer dor, que pode ser morto é o preto. É mais um exemplo de que a gente vive uma política de genocídio. Não se trata de extermínio, é algo programado, institucionalizado, que faz parte dessa sociedade branca quando ela quer produzir ‘justiçamento'”, complementa.
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A advogada popular Rhaysa Ruas, que é também secretária-executiva do Fórum Popular de Segurança Público do Rio de Janeiro (FPOPSEG), diz que um suposto roubo de celular justificar uma tentativa de homicídio também evidencia a lógica de genocídio.
“Um PM assume o risco de matar uma pessoa por conta de um roubo, então realmente é um retrato da política de segurança público do Rio de Janeiro”, diz a advogada. “Essa política carrega essa lógica de ‘justiçamento’ e de execução extrajudicial, de execução sem nenhuma garantia legal.”
“É uma política ainda pior do que nos países onde existe pena de morte, porque, onde tem, existe ainda um devido processo legal antes de a pessoa ser executada. Aqui, não, nem isso existe. A pessoa pode ser baleada só por ser negra e ser confundida com alguém que tenha roubado um celular. É indignante.”
A defesa de Igor Melo foi feita pelo Instituto de Defesa de Pessoas Negras (IDPN), que além de imagens das câmeras de segurança que provavam que o jornalista trabalhava no horário em que o assalto ocorreu, apresentou também o horário da solicitação da corrida por aplicativo e testemunhos de empregadores.
Na decisão que deu liberdade ao jornalista, a juíza Rachel Assad da Cunha escreveu que “todas as informações indicam que tanto Carlos Alberto quanto Josilene [companheira do policial] teriam confundido os ora custodiados com os supostos autores do crime de roubo, de forma que os indícios de autoria restam totalmente esvaziados”.