Felipe Cabulon, 27 anos, está preso há 94 dias e Justiça de SP concedeu liberdade provisória nesta quarta-feira; família luta, agora, para provar sua inocência
O rapper Felipe Cabulon França, 27 anos, saiu para comprar pão para a avó por volta das 15h30. Deixou o pão em casa e saiu novamente para comprar cigarro. Morador de Heliópolis, maior favela da cidade de São Paulo, localizada na zona sul, decidiu sentar com os amigos para tomar uma cerveja entre o Bar do Bahia e o Bar do Luiz Peixe, na rua Michel da Silva, em Heliópolis. Lá ele ficou até as 17h, quando foi preso no dia 6 de abril de 2020.
Felipe é artista independente e compõe, desde 2012, o grupo de rap ML Suburbanos. Foi acusado pelos PMs da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) Bruno Alves do Carmo e Henrique Cesar Gomes da Silva Monteiro Faria de ter roubado um carro na esquina da rua Juntas Provisórias com a rua do Grito, ao lado de K., adolescente de 17 anos. Ele está preso há mais de 90 dias e a Justiça concedeu nesta quarta-feira (8/7) liberdade provisória, no entanto, Felipe ainda não saiu da prisão.
No registro policial feito 26º DP (Sacomã), pelo delegado Rogério Nunes Belelli, os PMs afirmam que o carro roubado foi encontrado na comunidade de Heliópolis e três pessoas estavam dentro do veículo, que correram quando viram os PMs. Os policiais, então, perseguiram os suspeitos e conseguiram deter dois, apesar de não terem encontrado nada ilícito com eles.
Leia também: Jovens negros são presos por roubo e reconhecidos por vítima branca pela foto do RG
No depoimento, a vítima branca afirmou que “estava dirigindo na rua das Juntas Provisórias, no Ipiranga, quando foi abordado por três pessoas portando uma arma de fogo”. A vítima também garantiu que reconheceu “sem sombra de dúvidas” que Felipe era um dos autores do roubo e que ele é quem estava armado. Também reconheceu o adolescente K. por causa da camiseta azul. Ele foi apontado como sendo a pessoa que assumiu a direção do carro.
Ainda no boletim de ocorrência, Felipe e K. afirmaram que não se conheciam. O adolescente contou que foi chamado para participar de um roubo, mas que Felipe não fazia parte dele. K. declarou que praticou o assalto com outros dois menores de idade.
Apesar disso, a promotora Letícia Stuginski Stoffa afirmou que havia provas de autoria e materialidade que apontavam para Felipe autor do roubo, além de corrupção de menores. Ao solicitar a conversão da prisão em flagrante para preventiva, a promotora afirma que o fato de o crime ter sido cometido durante a pandemia agrava ainda mais a situação.
Na delegacia, Felipe pode falar brevemente com a namorada, Karoline Guedes de Oliveira, e com o pai, Paulo Aparecido França. Ele usou o pouco tempo que tinha para afirmar que era inocente. Karoline, então, ligou para a mãe de Felipe, a cabeleireira Rosemary de Barros Cabulon França, 60 anos, e contou da prisão dele por volta das 22h. Karoline está grávida do primeiro filho com Felipe.
Leia também: Como Heliópolis, maior favela de SP, luta contra o coronavírus e a perda de renda
No dia seguinte, Rosemary, que é moradora do Jardim Sul, a 11 km da favela onde Felipe morava com o pai desde os 17 anos, foi tentar entender o que aconteceu. Ela começou a investigar o que havia acontecido e encontrou sete pessoas que afirmam ter visto e conversado com Felipe no bar e que ele não é o autor do roubo.
“Ele ia passar a terça-feira comigo. Ia fazer o cadastro do auxílio emergencial para mim e para ele almoçar comigo. Um dia antes, aconteceu tudo isso. Eu sempre me achei muito forte. Meu pai teve câncer, cuidei dele, cuidei da minha mãe e ela faleceu tem 6 meses. Tive bastante sofrimento nesses dois acontecimentos. Mas a prisão do Felipe foi o meu pior momento”, lamentou à Ponte.
Durante os três meses que Felipe ficou preso, Rosemary não desistiu de encontrar provas para inocentar o filho. Ela chegou a procurar a família do adolescente que assumiu ter feito parte do assalto, que confirmou que Felipe não estava com eles. Rosemary também percorreu o caminho feito pelo carro depois do assalto, para verificar se encontrava imagens de câmeras de segurança, sem sucesso.
Conversando com o adolescente e as testemunhas, Rosemary descobriu que o reconhecimento do filho foi irregular. Para a defesa, dias depois, Felipe afirmou que foi fotografado dentro da viatura, sem camiseta e algemado. Uma testemunha ouvida pela mãe do rapper afirmou que viu o momento em que essa foto foi mostrada para a vítima, antes do reconhecimento oficial.
“Eu vi a verdade no olho das testemunhas. Eu vi o dono do bar, o professor de capoeira, todo mundo falando que meu filho era inocente. Tá tudo contra o meu filho. A luta agora vai continuar para obter a absolvição dele”, contou Rosemary.
Leia também: Auxiliar administrativo negro saiu para comprar cigarro e foi preso por roubo
O ato de mostrar uma imagem para a vítima vai contra o previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê uma série de etapas para o reconhecimento, como a necessidade de a vítima descrever o suspeito antes de mais nada. Tudo isso para evitar que a pessoa seja induzida a reconhecer alguém inocente. No boletim de ocorrência, não há informações de como o reconhecimento foi feito, tampouco as características dos suspeitos.
Também não há informações de que outros policiais, além dos dois que estão como testemunha e condutor no registro, estavam na ação. Testemunhas ouvidas pela mãe, que posteriormente foram anexadas ao processo, afirmam que havia pelo menos mais três motocicletas da Rocam e duas viaturas, já que Felipe e o adolescente foram levados em carros separados.
Após a conversão da prisão em flagrante para preventiva, Felipe foi levado para o CDP (Centro de Detenção Provisória) de Belém, na zona leste, onde, por carta, contou para a mãe que passou frio e fome. Em 23 de abril, ele foi transferido para o CDP II de Guarulhos, na Grande SP.
Leia também: Brancos reconheceram atendente negra por pele e cabelo. Ela foi presa por roubo
As sete testemunhas encontradas pela mãe do rapper, cujos depoimentos foram anexados aos autos do processo pela defesa, afirmam que Felipe estava sentado na frente do Bar do Bahia e do Peixe no momento em que duas pessoas passaram correndo pelo local, seguidas pela PM. Só depois da perseguição, Felipe levantou do bar e foi em direção ao carro roubado.
Nesse momento, segundo uma testemunha ouvida pela defesa, ele foi abordado. “A polícia abordou falando que ele era o bandido, que tinha roubado o carro. Não foi ele, eu cheguei até ir lá conversar com o policial e falar que ele não tinha nada a ver com o roubo desse carro, mas o policial não quis saber”, detalhou.
Outra testemunha afirmou que ela e a mãe, que trabalha no 14º DP, perguntaram por que estavam levando Felipe. Um dos PMs, identificado pelas testemunhas como sargento, disse que era apenas para averiguação “ele vai ser liberado, a gente tem ciência que ele não tem nada”, teria afirmado o PM.
“Eu não tenho uma palavra para explicar esses três meses. Foi raiva, angústia, tristeza, infelicidade. Eu confiava na polícia, hoje eu tenho medo. Eu cumprimentava. Hoje eu não consigo olhar”, criticou Rosemary. “Tem laranja podre na polícia e hoje eu vejo o que realmente é ser podre, tramar contra uma pessoa que você não conhece. Como você pode dormir sabendo que você tá mentindo? Colocando um inocente na cadeia? Eu não sei como um policial, que deveria proteger a gente, faz isso com um ser humano”, critica.
Defesa culpa PMs por reconhecimento irregular
Nesta quarta-feira (8/7), o juiz Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira, da 25ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, concedeu a liberdade provisória para Felipe, mas avaliando que não é possível considerar absolvição sumária nem descartar os depoimentos da PM e da vítima, únicas provas contra Felipe. Uma audiência para um novo reconhecimento foi marcada para 11 de dezembro de 2020. O juiz também solicitou que o MP intimasse as testemunhas colhidas pela defesa e, das 18 testemunhas, pediu a redução para 8.
Em entrevista à Ponte, a advogada criminalista Maira Pinheiro, que cuida do caso de Felipe, explica como foi a atuação da defesa no processo. “O caso tem vários elementos emblemáticos, de problemas que temos com frequência na atuação policial”.
“O primeiro, que chama a atenção, é o fato de diversas pessoas terem intercedido junto aos policiais no momento da detenção, informando sobre a inocência, que elas estavam com ele e que presenciaram que ele ficou no bar por toda a tarde. Os policiais não só não deram ouvidos a essas pessoas como deixaram de informar na delegacia que havia essas testemunhas no momento da perseguição dos reais autores do fato e da prisão do Felipe”, aponta.
Um outro ponto que chama a atenção, explica Pinheiro, é o fato de um dos PMs ter fotografado Felipe, algemado e sem camisa no porta-malas da viatura e, em seguida, ter exibido essa fotografia para a vítima. “Isso inviabilizou um procedimento de reconhecimento confiável. A memória humana não é como uma câmera fotográfica, a partir do momento que a vítima é exposta a essa imagem ela é fortemente induzida para acreditar que aquela pessoa é a pessoa que, de fato, praticou o roubo”.
Leia também: Induzidas pela polícia e aceitas pela justiça, falsas memórias condenam inocentes
Outro agravante, avalia a defensora, é que a vítima entrou na delegacia no mesmo momento que os PMs tiraram Felipe e o adolescente da viatura. “Depois, quando ocorreu o procedimento formal, não tivemos o cuidado, por parte da autoridade policial, de perfilar o Felipe ao lado de pessoas que efetivamente tivessem características físicas similares a dele. Como ele foi perfilado ao lado do autor confesso do roubo, que foi a pessoa que ele foi levado algemado, isso também contribuiu para um falso reconhecimento positivo”.
Apesar de estar feliz com a liberdade provisória, Pinheiro critica a decisão judicial. “É preocupante que exista a intenção de repetir esse procedimento em juízo. O procedimento de reconhecimento que vai acontecer no Fórum, daqui há meses, só vai confirmar que a vítima vai reconhecer quem ela viu na delegacia, não necessariamente quem ela viu no momento dos fatos”.
“Isso não é questão de opinião, temos vastas evidências científicas sobre a irrepetibilidade da produção dessa prova. Não é como se um reconhecimento irregular em delegacia pudesse ser suprido em juízo, uma vez que o reconhecimento foi feito em desacordo com as diretrizes baseadas em evidências científicas não tem como suprir esse prejuízo fazendo esse reconhecimento de novo, porque a vítima já foi induzida a reconhecer positivamente aquela pessoa, então ela tende a reconhecer novamente”.
Fala dos PMs valem ouro; a das testemunhas, nada
Para a advogada Ana Gabriela Ferreira, professora de Direito Penal e Criminologia, a prisão de Felipe é absurda, entre outras razões, porque considera o depoimento dos policiais e ignora todas as declarações que indicam inocência do jovem. “Assim como no caso Babiy Querino, inúmeros são os pontos que chamam a atenção, a iniciar pelo mais evidente: o jovem possui mais de quatro testemunhas que afirmam sua inocência”, destaca.
“Dentre as testemunhas, o adolescente K., que confessou a participação no ato infracional, desde o princípio, alertou aos policiais que seus dois colegas que cometeram com ele o delito haviam fugido. K. informou à polícia que desconhecia Felipe e este não havia cometido crime”, aponta.
Ferreira também chama a atenção para a quantidade de pessoas que argumentam que Felipe é inocente. “Ignora-se em absoluto todos os dados concretos do caso, ausência de vínculo de Felipe com o menor infrator que confessou o ato infracional, o fato de ele estar em outro local com inúmeras testemunhas, focando apenas no testemunho genérico e incapaz de reconhecimento dos policiais utilizado como evidência”.
A única pessoa que identifica Felipe como co-autor do crime foi a vítima, aponta a advogada. “A polícia mostra o jovem como ‘o criminoso’, algemado, ao lado do menor infrator confesso, em identificação não respeitosa de qualquer procedimento legal, sendo evidente a indução”, pondera.
“Os diversos atores do sistema judiciário criminal reiteraram, neste caso, prática que contraria orientação de Tribunais superiores, não apontaram quaisquer elementos objetivos que justificassem a prisão de Felipe e demonstraram-se, mais uma vez, autores de práticas racistas reiteradas pelo sistema criminal na promoção do encarceramento”, finaliza.
Outro lado
A reportagem procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo e da Polícia Militar para questionar a ação dos policiais no reconhecimento e na omissão de outros policiais envolvidos na ação.
Em nota, a SSP não respondeu se o procedimento adotado pelos PMs estava correto, apenas informou que “a autoridade policial, após análise dos fatos, da oitiva das partes e do reconhecimento pessoal positivo por parte da vítima, determinou a prisão em flagrante dos suspeitos. O caso foi encaminhado à Justiça, que homologou a decisão e determinou a prisão preventiva dos autores”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, ao ser questionado sobre o caso, informou que “não pode emitir nota sobre questão judicializada” e que “o andamento do processo está disponível na internet, com decisões e seus fundamentos disponíveis para consulta”.
Em nota, o Ministério Público de São Paulo informou que “os elementos colhidos na investigação sinalizam autoria” de Felipe, “razão pela qual deverá ser aguardada audiência de instrução para verificar se os indícios até então colhidos serão confirmados”.
“As testemunhas arroladas tanto pela acusação quanto pela defesa serão ouvidas na audiência de instrução mencionada. E somente após a coleta da prova em juízo é que o MPSP se pronunciará. Caso sejam confirmados os indícios, o MPSP sustentará a condenação. Caso não se confirmem, poderá pedir a absolvição”, finalizou o MP.
[…] do Tribunal de Justiça de São Paulo, reconheceu nesta segunda-feira (1/3) que o rapper Felipe Cabulon França, 28 anos, não cometeu o roubo do qual foi acusado em 6 de abril de 2020. Foram 235 dias de […]