Os documentos de Caio Vinicius foram achados com o irmão dele, preso em Minas Gerais por suspeita de roubo a um shopping; com base apenas no reconhecimento ele foi denunciado pelo crime
O motoboy e empresário Caio Vinicius Gonçalves de Souza, 32 anos, está preso há cerca de um mês acusado integrar um grupo que roubou o Bragança Garden Shopping, em Bragança Paulista, interior do estado de SP. Uma das vítimas o reconheceu pela foto do RG e, sem que houvesse aplicação do procedimento de reconhecimento previstos no Código de Processo Penal (CPP), ele foi denunciado. A família de Caio diz que ele nunca esteve na cidade e que trabalhava vendendo açaí e cachorro-quente no Parque Edu Chaves, zona norte da capital paulista, no dia do crime.
O roubo ocorreu em 31 de março deste ano. Segundo o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), um grupo invadiu um quiosque do shopping armado com uma pistola e uma submetralhadora artesanal. Eles levaram 107 celulares que estavam armazenados no cofre. Funcionários do estabelecimento, um segurança e uma cliente teriam sido ameaçados e mantidos como reféns durante a ação.
O grupo fugiu pela saída de emergência da praça de alimentação, em um carro roubado que tinha placas adulteradas. Eles se deslocaram em direção a Minas Gerais, onde mantinham, segundo apurado pela Polícia Civil mineira, uma espécie de quartel-general em um condomínio.
Três foram encontrados pela polícia tentando esconder-se em um matagal próximo do condomínio no município de Extrema, em Minas Gerais. Com eles, a PM encontrou os celulares furtados, três armas, munições e o RG e a CNH de Caio, único elemento que liga o motoboy ao crime. O caso foi apurado em Minas Gerais pelo delegado Luiz Felipe Brizzi Santos.
Um dos suspeitos presos é irmão de Caio. A família alega que não sabia que ele estava com os documentos. Em depoimento, o preso confirmou a versão de que teria pego o RG e a CNH sem consentimento.
“Nós não sabemos porquê. Provavelmente o irmão dele pegou o documento e se apossou do documento, mas não era nada que a gente estivesse ciente. Eu nem imagino quanto tempo faz”, conta Lidiane Regina da Silva de Araújo, 32 anos, esposa de Caio.
A denúncia do Ministério Público, assinada pelo promotor Adonai Gabriel, diz que Caio foi reconhecido por uma das quatro vítimas do roubo. Ela teria dito, com base apenas na foto 3×4 dos documentos, que era ele que portava a submetralhadora.
Outra vítima descreveu que um dos autores do roubo tinha pele parda e usava aparelho ortodôntico, características físicas que batem com as de Caio. Contudo, a família diz que o irmão do empresário, também preso pelo roubo, usa igualmente o apetrecho nos dentes.
O mandado de prisão preventiva foi expedido apenas com base neste reconhecimento irregular. O artigo 226 do CPP diz que o suspeito deve ser colocado, se possível, ao lado de outras pessoas que tiverem características semelhantes. A advogada Débora Roque, que atua na Rede de Proteção ao Genocídio, defende que seja seguido o procedimento do CPP e que ele, seja realizado da forma mais “desembaraçada, trazendo maior certeza”.
“Os procedimentos descritos na lei, também se relacionam às garantias do contraditório e da ampla defesa, já que esse direito tem total ligação com a forma que seremos acusados”, afirma. Débora argumenta que não seguir o procedimento pode ter como consequência uma condenação injusta.
“Não há como se defender em um sistema arbitrário, onde provas são coletadas sem seguir os procedimentos descritos na lei, e o juiz(a) é quem deveria zelar por essas formalidades, já que estamos em um Estado Democrático de Direito. Uma decisão condenatória deve vir fundamentada em provas concretas e cabais, evitando-se assim, a insegurança jurídica”, pontua.
Família nega participação de motoboy no roubo
Casada com o motoboy há 16 anos, a recepcionista diz que o marido também nunca esteve em Extrema (MG). Segundo seu relato, Caio trabalha em uma lanchonete adquirida pela família em março. O estabelecimento fica no Parque Edu Chaves, na zona norte da capital paulista, mesma região do bairro Vila Maria, onde ele mora com a esposa e o filho Gabriel, de 11 anos.
A prisão de Caio ocorreu 45 dias depois do roubo ao shopping quando o motoboy estava em casa com a famíllia. “Uma equipe do [batalhão de] Choque invadiu minha casa e reviraram tudo aqui. Vieram com um mandado já expedido no nome do meu esposo”, conta Lidiane.
A recepcionista conta que, no dia do roubo, o marido foi até a lanchonete em um carro de aplicativo porque a moto que usava quebrou. Lidiane relata que passou mal e só foi até o local por volta das 21h encontrar com Caio, a mãe dele e as irmãs para comer um lanche.
“A gente fecha às 23h30 na sexta e no sábado, só que como estávamos com as crianças e conversando, acabamos fechando um pouco mais tarde, 0h e pouquinho. Aí ela [a mãe de Caio] pegou um Uber para casa dela e a gente pegou um para nossa casa”, conta Lidiane.
Lidiane compartilhou com a reportagem da Ponte os recibos das viagens citadas. O material também foi incluído no pedido de habeas corpus feito pela defesa de Caio. Ainda não foi publicada decisão.
“Esse dia a gente estava junto e mesmo se não estivesse eu confio nele e sei a pessoa que ele é. Ele não jamais iria fazer uma coisa desse tipo”, relata a esposa.
A família também contesta a versão de que Caio se juntou aos suspeitos presos para cometer crime de receptação de veículos dias antes do roubo ao shopping. A denúncia do MP-SP fala que entre os dias 26 e 31 de março, o grupo adquiriu um veículo produto de crime.
No dia 26, Caio comemorou com familiares o aniversário de 11 anos do filho. A esposa compartilhou com a reportagem a imagem com o histórico disponível no celular indicando a data em que ela foi tirada.
Um abaixo assinado com mais de 90 assinaturas foi feito por amigos e familiares de Caio pedindo a liberdade do motoboy.
“Caio Vinicius foi está detido por conta que não percebeu que o seu irmão pegou seu documento para se passar por ele e assim foi solicitada sua prisão preventiva. Mas existem provas e declarações de idoneidade que o Caio Vinicius estava trabalhando em seu comércio no dia do assalto que originou o processo”, diz o texto do abaixo-assinado.
Imagens do roubo não estão no processo
Além do reconhecimento não ter seguido o CPP, o inquérito foi concluído sem que imagens do roubo fossem coletadas. Isso ajudaria, por exemplo, a confirmar uma inconsistência que há em relação ao relato das vítimas sobre o número de pessoas envolvidas no crime.
À época do assalto, a Polícia Civil de Minas Gerais disse ao G1 que as câmeras de monitoramento do shopping não estavam funcionando. Contudo, o Bragança Garden informou para a mesma reportagem que tinha sistema de câmeras de vigilância constante de profissionais.
A Ponte questionou o Bragança Garden Shopping sobre o funcionamento das imagens registradas pelas câmeras, mas não teve retorno até a publicação do texto. O mesmo pedido foi feito pela defesa de Caio ao Tribunal de Justiça de São Paulo. O pedido foi aceito pelo juiz Laércio José Mendes Ferreira Filho em decisão publicada na última sexta-feira (23/6). Uma audiência de instrução foi marcada para o dia 12 de setembro.
Outro lado
A reportagem questionou a Polícia Civil de Minas Gerais sobre o motivo da identificação irregular ter baseado o pedido de prisão preventiva de Caio e também sobre o porquê das câmeras de segurança do shopping não terem sido anexadas ao inquérito. O mesmo questionamento sobre as câmeras foi feito à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP).
O MP-SP foi questionado sobre a denúncia baseada em um reconhecimento irregular. Não houve resposta de nenhum dos citados.