Reconhecimento irregular faz paisagista negro responder há 12 anos por atentado na Bahia

Marcos Costa chegou a ser preso por tentativa de homicídio. Localização do celular mostrou que ele estava distante do local do crime

Marcos Costa segurando panfleto com destaque do carro que ganhou pelo trabalho exercido com vigor | Foto: Arquivo pessoal

Em 2011, o Fiat Uno foi o segundo carro mais vendido no Brasil. Segundo ranking da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), 273.551 motoristas adquiriram o modelo. O de Marcos Antônio dos Santos Costa, 58 anos, era vermelho. Motivo de alegria, o veículo foi presenteado anos antes como recompensa pelo trabalho exercido com vigor. “Ele merece, ele merece”, comemoravam os colegas. A felicidade, contudo, virou motivo de angústia. Há 12 anos, Marcos é considerado suspeito de um atentado. Ele e o veículo foram reconhecidos por uma vítima de um atentando a tiros enquanto circulava por Salvador, na Bahia. Mesmo com a prova de que Marcos estava longe do local do crime, o paisagista ainda pode ir a júri popular. Na próxima terça-feira (11/6), ele será finalmente ouvido e terá seu destino traçado.

O crime pelo qual Marcos é acusado é uma tentativa de homicídio que ocorreu no dia 7 de maio de 2011, na Avenida Antônio Carlos Magalhães, em Salvador. Um homem teria emparelhado um carro contra o outro veículo em que estava uma família. Conforme contaram as vítimas em depoimento, ele teria proferido xingamentos e sacado uma arma. Uma das vítimas disse que encontrou na lataria sinais de ao menos três tiros após conseguir fugir do agressor.

Um ano depois, uma das vítimas procurou a delegacia novamente. Disse ter encontrado na rua o suspeito que atentou contra a família. Segundo ela, o agressor estava no mesmo veículo usado no dia do crime: um Uno vermelho. A placa, anotada pela vítima, foi levada à Polícia Civil, que por meio dela chegou ao técnico agrícola paisagista Marcos.

O carro estava em nome do chefe do paisagista, o empresário Jorge Alex Sá Gomes. Foi ele quem comprou o veículo para o funcionário anos antes como prêmio pelo trabalho. Jorge Alex sempre acreditou no funcionário e amigo. Para ele, Marcos seria incapaz de cometer qualquer crime. “Ele é aquele cara sensível, pacífico, que nunca levanta a voz para ninguém”, afirma.

À margem do que diz o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), que orienta que o reconhecimento seja feito ao lado de pessoas parecidas com o acusado, a vítima teve apenas a foto de Marcos apresentada no reconhecimento pessoal. Essa é a única prova que conecta o paisagista admirado pelos colegas ao atentado. Em março deste ano, uma perícia feita no celular que ele usava à época dos fatos mostrou que o paisagista estava distante do local do crime.

A análise mostrou que, entre as 18h30min até as 19h30min do dia 7 de maio de 2011, quando houve o atentado, o celular estava no bairro Chame-Chame de Salvador, próximo ao Shopping Barra. O crime ocorreu na Avenida Antônio Carlos Magalhães. Com o endereço que aparece na análise, não é possível colocar a localização exata no Google Maps.

Mapa mostra localização de Marcos às 18h30 do dia 07/05/2011 | Foto: reprodução

Contudo, se for traçada a distância entre o Shopping da Barra, indicado no documento como sendo próximo do local registrado, e o local onde as vítimas foram alvo, a distância é de até 11 quilômetros. De carro, segundo o Google Maps, o trajeto demoraria entre 20 a 25 minutos a depender da rota. Durante todo o período analisado (das 18h30min às 19h30min), a localização consta como a mesma: as proximidades do Shopping da Barra.

Mapa mostra localização de Marcos às 19h23 e 19h26 do dia 07/05/2011 | Foto: reprodução

Em 2012, Marcos foi preso temporariamente pela tentativa de homicídio. Passou quatro dias detido e ganhou um trauma que se estende até hoje. “Tenho medo, vergonha”, diz.

Investigação falha

Uma das linhas de investigação da Polícia Civil era de que um policial pudesse ter sido o responsável pelos tiros. Uma perícia mostrou que os tiros disparados contra o carro eram de calibre.40, de uso restrito das forças policiais. Em um primeiro momento, foi tentado identificar policiais que tivessem características físicas semelhantes às do suspeito.

Em depoimento logo após o atentado, uma das vítimas descreveu o agressor como um homem “moreno escuro”, não negro, forte, com braços fortes, cabelos baixos e que não usava barba nem bigode e vestia uma camiseta. Segundo o delegado Jackson Carvalho da Silva, nenhum policial com essas características foi identificado e a linha de investigação foi abandonada.

Em agosto de 2012, uma das vítimas relatou ter visto o agressor enquanto trafegava pelo bairro Stiep, em Salvador. Passaram então a revirar a empresa de Jorge Alex, identificado como proprietário do carro. Analisaram dados de todos os funcionários e interrogaram o dono. Marcos teve uma foto tirada pelos investigadores e ela foi apresentada para a vítima.

Depois, já com a certeza de que Marcos era o autor do crime, as vítimas foram submetidas ao reconhecimento pessoal, onde confirmaram a versão. Marcos teve um mandado de prisão temporária e de busca e apreensão expedidos com base nessa identificação.

A denúncia contra Marcos foi oferecida pelo promotor Nivaldo dos Santos Aquino em novembro de 2013. O documento não descreve como Marcos se tornou suspeito, se limitando a denunciá-lo por três tentativas de homicídio. Nivaldo escreveu assim no documento: “Fútil, portanto, a motivação do delito, haja vista, ter o denunciado tentado contra a vida das vítimas tão somente para saciar o seu desejo homicida, traduzindo o egoísmo intolerante, prepotente, que vai até a impossibilidade moral, revelando-se do ponto de visto do ‘homo medius’”.

A denúncia contra Marcos foi aceita pela juíza Andrea Teixeira Lima Sarmento Netto, do 2º juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri, em agosto de 2014.

Reconhecimento irregular

A pedido da Ponte, o advogado criminalista e mestrando em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Dezidério de Luca, analisou o inquérito O criminalista diz que é comum situações como a de Marcos: reconhecimento irregular usado como elemento principal de uma denúncia. O que costuma acontecer é que, ao invés de esse tipo de prova ser tornada nula, ela é valorada e serve como base para condenações.

Para o advogado, além do reconhecimento irregular, a duração do processo viola o princípio constitucional da razoável duração. A norma – estabelecida no artigo 5º da Constituição Federal – visa a garantia de que a tramitação ocorra em tempo razoável. Um dos impactos da falta de celeridade é que a memória de vítimas e testemunhas sobre o fato é prejudicada.

Sobre o reconhecimento irregular, Rafael diz haver consolidação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconhece a ilicitude deste tipo de reconhecimento de pessoas, tornando esse tipo de prova nula e impossível de ser usada para condenar ou pronunciar alguém. Assim, ao se considerar que o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) sobre o reconhecimento de pessoas não é mera recomendação, completa o criminalista: “trata-se de verdadeira garantia processual do investigado ou acusado”.

Ele explica que o modelo ideal apresentado pela doutrina jurídica é a realização do procedimento de modo presencial com a utilização do chamado line-up (que é o alinhamento de pessoas parecidas em uma sala para ser feito o reconhecimento). Esse modo é apresentado como em detrimento do show-up, quando apenas uma foto ou a apresentação individual do suspeito é feita.

Acrescido a isso, destaca o criminologista, há o double-blind (o duplo-cego), onde a própria autoridade que conduzirá o procedimento não sabe quem é o suspeito. “Isso também tem um potencial indutivo, tem o potencial de uma influência sobre essa vítima que está fazendo o reconhecimento.”

Outro ponto é que o reconhecimento feito irregularmente não pode ser convalidado em juízo, e não pode, por si só, ser usado como prova. “Há uma dependência da necessidade de outras provas mais contundentes para corroborar o que o reconhecimento mostra”, avalia o criminologista.

No caso do Marcos, é como se o reconhecimento fosse feito por fotografia com uma imagem apresentada isoladamente (configurando o modelo show-up), a vítima não foi convidada a descrever o suspeito detalhadamente e a autoridade que conduziu o reconhecimento sabia quem era o suspeito.

Prisão injusta

Marcos diz sentir como se uma espada atravessasse a cabeça desde o dia em que foi preso. Descrito pelos amigos como “incapaz de fazer mal a uma mosca”, ele trabalha há 35 anos com paisagismo.

Foi com a profissão que conheceu Jorge Alex, quando ambos eram técnicos na prefeitura de Itabuna, também na Bahia. Alex resolveu abrir uma empresa de paisagismo em Salvador e, quando o negócio cresceu, contratou Marcos.

Ele conta que o amigo e funcionário sempre foi querido pelos clientes. É uma pessoa muito dedicada ao trabalho e tem um conhecimento sobre arte e cultura invejável. O carro símbolo da prisão foi dado a Marcos em uma festa de Natal da empresa. Na entrega, todos os colegas se emocionaram. Em coro, aplaudiram e gritaram: “ele merece, ele merece”

Foi Alex que trouxe o caso para as redes sociais há algumas semanas. Ele conta que postou sobre a história do amigo ao ver uma reportage, do Fantástico, da TV Globo, sobre uma prisão injusta. A reportagem contou a história de um homem confundido que passou 12 anos preso. Alex lembrou do amigo. “Poderia ser Marcos”, pensou.

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“Quantos Marcos não tem por aí no Brasil que, por falta de condições, de uma rede de relacionamentos, estão penando na cadeia simplesmente porque são negros e pobres? É muito cruel isso”, completa.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Polícia Cilvil do estado, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia, Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) solicitando entrevistas com porta-vozes e agentes públicos citados, além de esclarecimentos sobre os pontos citados na matéria.

Em nota, o MP-BA e o TJ-BA se limitaram a informar a data da audiência. O Tribunal de Justiça disse ainda que a Lei Orgânica da Magistratura impede que juízes emitam qualquer opinião sobre processos em andamento. Já a Polícia Civil informou que não dispõe de ninguém para dar entrevista.

A SSP não retornou até a publicação do texto. O espaço segue aberto.

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