Reconhecimento por foto leva homem negro a ser condenado e inocentado em processos

Foto de homem de 20 anos estava em álbum de fotografias da Polícia Civil de SP e era a única prova de um caso de roubo e de outro de latrocínio tentado; para Defensoria Pública, decisão do STJ sobre fragilidade desse tipo de reconhecimento tem auxiliado a reverter condenações

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu uma condenação de sete anos de prisão por roubo contra um homem negro de 20 anos. A 16ª Câmara de Direito Criminal entendeu que a única prova contra Miguel (nome fictício) deveria ser anulada, já que ele foi reconhecido de forma irregular, unicamente por foto, ao ser apontado como o autor de um assalto contra um casal, ocorrido em março de 2020.

No acórdão, proferido em 28 de junho, o desembargador e relator Marcos Alexandre Coelho Zilli argumentou que as vítimas não informaram, em nenhum momento, quais seriam as características físicas dos seis suspeitos que as abordaram e que Miguel foi reconhecido unicamente por foto e sozinho, duas semanas após o crime, descumprindo as normas previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina, primeiramente, essa descrição para depois serem apresentadas pessoas que sejam semelhantes em sala apropriada para serem reconhecidas.

Com base em uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), de outubro de 2020, que considerou o reconhecimento por foto insuficiente para uma condenação, o relator destacou que desde a fase de investigação essas normas não foram seguidas no caso de Miguel, o que “contamina” e “fragiliza” o reconhecimento. “Afinal, teriam as vítimas o reconhecido em juízo por se recordarem da fisionomia dos assaltantes ou o reconhecimento judicial fundamentou-se em seus anteriores apontamentos realizados durante a fase preliminar? Não se descarta a possibilidade de induzimento, ainda que involuntário, em decorrência das sucessivas irregularidades verificadas”, criticou Coelho Zilli.

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De acordo com o boletim de ocorrência, o roubo aconteceu no dia 22 de março de 2020, mas foi comunicado pelas vítimas apenas em 2 de abril daquele ano. As identidades do casal foram protegidas no registro no qual são indicados seis suspeitos: cinco desconhecidos e Miguel, sem informação de como chegaram a ele. No histórico, o casal informa que havia combinado de comprar um televisor por um site de revenda de produtos e que a retirada seria feita na Rua Alfredo Lucio, no bairro da Brasilândia, na zona norte da capital paulista.

Ao chegarem no local, os dois afirmam terem sido abordados por seis indivíduos, sendo que um estaria armado com um revólver calibre 38 e lhes roubaram R$ 1,4 mil, dois celulares e as chaves do carro que estavam. Três dos assaltantes ainda teriam revistado o veículo a fim de procurar objetos e depois se dispersaram.

De acordo com o relatório de investigação do delegado Tiago Contatto Trindade, do 74 DP (Parada de Taipas), o casal consultou, no dia 2 de abril de 2020, um “álbum fotográfico de suspeitos” e reconheceu Miguel. As fotos dele, anexadas ao processo, foram retiradas de redes sociais. Ele estaria nesse álbum por causa de uma passagem por roubo de 2017, já cumprida.

O delegado solicitou mandado de prisão contra ele, que foi realizado no dia 22 daquele mês. Nenhum dos objetos roubados estava com o jovem, que informou conhecer quatro rapazes que costumam praticar roubos como aquele. Dois desses rapazes foram à delegacia na ocasião, segundo o auto de reconhecimento, mas não foram reconhecidos.

Esses autos de reconhecimento também não informam características físicas que as vítimas teriam informado nem como aconteceram, se foi em sala apropriada com outras pessoas ou não. Miguel foi indiciado por roubo pelo delegado.

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O Ministério Público Estadual também pediu a prisão preventiva (por tempo indeterminado) e o acusou por roubo, com agravantes de concurso de agentes (praticado por mais de uma pessoa), emprego de violência ou grave ameaça com arma de fogo e o crime ter acontecido em uma situação de calamidade pública (pandemia). “As vítimas Alpha e Beta, sem saber que tudo não passava de um golpe, iniciaram as tratativas com Miguel [nome trocado] e seus comparsas para a compra do tal televisor”, escreveu o promotor Rodolfo Bruno Palazzi, embora em nenhum momento o delegado tenha apontado que realizou investigação no site onde foi combinada a venda ou busca pelos aparelhos celulares que levassem ao rapaz.

A juíza Fernanda Galizia Noriega acatou as duas solicitações do MPE. “Destaque-se que o presente caso reveste de maior gravidade, pois, como bem observado na denúncia, o réu foi preso em flagrante pela prática de novo roubo em um cenário de pandemia”, escreveu a magistrada. No entanto, Miguel não foi preso em flagrante e sim após a expedição de um mandado a pedido do delegado do 74 DP.

Durante as audiências, uma das vítimas disse ter reconhecido Miguel com certeza e a outra com “70%”, mas que estava com dúvidas. A magistrada, com base nos reconhecimentos, condenou Miguel a sete anos, três meses e três dias de reclusão em regime fechado e pagamento de 16 dias-multa, em dezembro de 2020. Essa sentença foi revertida na segunda instância e cabe recurso.

Como a Ponte já mostrou em outros casos, há medidas para realização de reconhecimento. De acordo com o pesquisador Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho, em entrevista em 2018, realizar um reconhecimento prévio por foto não é correto porque acaba se tornando uma forma de sugerir um culpado à vítima e gerar falsas memórias.

Foto levou a condenação por morte de homem

Por outro lado, Miguel segue preso por conta de outro processo. No dia em que a prisão dele foi realizada, os agentes Sidnei Marques da Hora e Juliana Fahr, do mesmo distrito policial, informaram em seu relatório parcial de investigação que decidiram mostrar uma foto dele a um sobrevivente de uma tentativa de assalto que aconteceu em 20 de março daquele ano, na mesma semana do roubo contra o casal. Esse sobrevivente teria identificado que Miguel tinha uma tatuagem no braço semelhante a um dos assaltantes que emboscaram ele e o amigo Roberto Ferreira de Lima, 44, que foi morto quando tentou acelerar o carro e fugir na Rua Rio Tubarão, na região do Jaraguá, na zona noroeste da cidade de São Paulo.

Esse reconhecimento também aconteceu da mesma forma: sem informações de descrição no boletim de ocorrência, inicialmente por foto, depois com Miguel sozinho, e semanas depois do crime.

Marcos (nome fictício), 23, viu um anúncio de venda de uma moto num site cujo vendedor teria se identificado com o nome de Vinícius. Eles teriam combinado o encontro na Rua Tufik Mereb para fazer a transação. Marcos foi com Roberto, de carro, ao local e, durante o trajeto nessa rua, segundo o boletim de ocorrência, dois homens com capacetes em uma motocicleta apareceram e anunciaram o assalto. Um deles estava armado. Roberto acelerou o veículo e um dos assaltantes deu diversos disparos, atingindo-o. Ele perdeu o controle do carro, subiu um canteiro e bateu em uma árvore. A dupla fugiu sem levar nada. Roberto foi socorrido ao Hospital Geral de Taipas, mas não resistiu aos ferimentos. Nesse registro, não há nenhuma informação de características físicas dos suspeitos.

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Com a prisão de Miguel, Marcos foi chamado na delegacia para reconhecê-lo. No termo de depoimento de 22 de abril de 2020, é informado que Miguel foi reconhecido “inequivocamente” por causa das “tatuagens que ostenta na mão esquerda, quais sejam, desenho de uma flor e um peixe”, como um dos assaltantes, sem saber se foi ele quem atirou, e que Marcos não saberia descrever o comparsa por não ter visto rosto nem se lembrar de características físicas. O delegado Luciano de Paula Freitas decidiu indiciá-lo por latrocínio tentado. No início da investigação, em 7 de abril de 2020, ele chegou a solicitar que a operadora do telefone que contatou Marcos fosse oficiada para ter informações sobre o número, mas nos autos não consta nenhum ofício e nem novos pedidos para tal. O inquérito na Polícia Civil foi finalizado apenas com o reconhecimento.

A Polícia Civil anexou um vídeo de uma reportagem do programa Balanço Geral, da TV Record, sobre esse caso, em que apareciam imagens de câmeras de segurança na rua que mostravam o momento em que os ocupantes de uma motocicleta aparecem e um deles atira contra o carro que tenta fugir da abordagem. Nessa matéria, também é apresentada a foto de um outro homem negro como sendo de Miguel, mas que nada tem a ver com ele. Essas filmagens, que apenas aparecem na reportagem televisiva e estão em baixa qualidade, não foram submetidas a perícia.

Trechos das filmagens reproduzidas pelo programa Balanço Geral, da TV Record, cujo vídeo da reportagem foi anexado aos autos do processo

A promotora Laurani Assis de Figueiredo denunciou Miguel por roubo, com agravantes de resultado morte (latrocínio), concurso de agentes e pelo crime ter ocorrido em situação de calamidade pública. A denúncia foi aceita pelo juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares.

Em juízo, Marcos “reconheceu o acusado, mesmo estando este ladeado a dois outros indivíduos, deixando claro que o seu reconhecimento se dava e bastante pelo detalhe das tatuagens, já que a fisionomia do acusado mudara demais desde a data da prisão até a data da audiência”.

O magistrado Fabio Soares cita essas imagens veiculadas pela TV Record apenas para argumentar que o crime ocorreu ao redigir a sentença, em janeiro deste ano, tendo como base o reconhecimento, condenando Miguel a 36 anos, três meses e 16 dias de reclusão em regime fechado e pagamento de 16 dias-multa por latrocínio.

A Defensoria Pública, que assiste Miguel, tentou recorrer da sentença, argumentando que o reconhecimento é frágil e insuficiente, com base na decisão do STJ, além de que a fotografia mostrada na reportagem da TV Record era de outra pessoa. A 3ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP negou o pedido de absolvição e manteve o veredito, diminuindo a pena para 34 anos, 11 meses e seis dias de reclusão em regime fechado e pagamento de 16 dias-multa, em 1º de junho.

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O relator e desembargador Jayme Walmer de Freitas argumentou que não houve irregularidades no reconhecimento e que a palavra da vítima tem força como conjunto probatório. “Outrossim, como se revelou cristalino e é assente em nossa doutrina e jurisprudência, nos crimes clandestinos a palavra da vítima ganha incomensurável valor. E no caso dos autos, a palavra do ofendido se apresentou plenamente crível e confiável, narrando com detalhes o ocorrido e reconhecendo o acusado em todos os momentos em que lhe foi mostrado”, escreveu. Também cabe recurso a esse acórdão.

Para o defensor público e assessor Criminal e Infracional da Defensoria Pública de SP Glauco Mazetto, a decisão do STJ quebrou um paradigma que os tribunais tinham de que o artigo 226 do Código de Processo Penal era uma mera recomendação, o que favorece reversões de condenações, como em um dos processos de Miguel. “Esse entendimento de que a palavra da vítima é inquestionável, e que o processo de reconhecimento da forma como é previsto não era obrigatório, era consolidado em primeiro e segundo graus, por isso muitas vezes tinha chegar numa instância superior, como o STJ, para se reavaliar isso”, explica. “O que a gente sempre questionou não é a vítima estar errada ou querer incriminar alguém, mas que ela pode se equivocar porque o reconhecimento tem falhas”.

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Por outro lado, ele aponta que há três fatores que influenciam que o reconhecimento irregular perdure em um processo: a falta de investimento em estrutura e inteligência na Polícia Civil para investigar os casos, o punitivismo ao tentar compensar a vítima de um crime de forma rápida e a não adequação dos tribunais em seguir o que é determinado em lei. “A única forma que tem [para resolver a questão] é uma mudança na cultura do sistema de justiça que passa pelos tribunais superiores, o que já começou, mas também por capacitações de todos os entes sobre o reconhecimento porque quem quer decidir de forma contrária à lei vai ter um argumento. É muito mais uma questão de cultura do judiciário do que legislativo”, pondera.

O que diz a polícia

A Ponte solicitou entrevista com os delegados Tiago Contatto Trindade e Emilio Carlos Pernambuco, do 74 DP, Luciano de Paula Freitas e Gisele Maciel Rocha, ambos do 72 DP, também questionou a Secretaria de Segurança Pública a respeito dos registros, provas e processo de reconhecimento. A assessoria da pasta não respondeu.

O que diz o Ministério Público

A reportagem também solicitou posicionamento dos promotores Rodolfo Bruno Palazzi e Laurani Assis de Figueiredo, questionando, por meio da assessoria do órgão, sobre os registros, provas e processo de reconhecimento. Em nota, o MPE disse que “as manifestações do MPSP estão contidas no autos, não cabendo qualquer outro tipo de comentário”.

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